sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A deliciosa atualidade da comédia italiana


  17/08/2012

Lançamento de DVDs sugere relembrar (ou conhecer) tradição cinematográfica ofuscada à sua época, mas mordaz, irreverente e carregada de crítica social
Por José Gerado Couto*, no blog do IMS
A comédia à italiana – gênero que teve seu apogeu entre meados dos anos 50 e meados dos 70 – foi relegada por muito tempo a um injusto segundo plano. Ficou à sombra, de um lado, do grande “cinema de autor” de Fellini, Visconti, Antonioni etc. e, de outro, do cinema diretamente político de Francesco Rosi, Elio Petri, Giuliano Montaldo e um punhado de outros.
Mas numa época triste como a nossa, em que, no mundo todo, o conceito de comédia parece ter-se corroído pelo humor estúpido do besteirol e das sitcoms televisivas, cabe uma revisão urgente da deliciosa filmografia de mestres como Mario Monicelli, Dino Risi, Pietro Germi e Luigi Comencini. Eles detinham um segredo alquímico que aparentemente se perdeu.
Um bom começo para conhecer ou relembrar as obras-primas do gênero é a recém-lançada caixa de DVDs “Clássicos da Comédia Italiana”, da Versátil. São três filmes: um de Monicelli (Os eternos desconhecidos, 1958) e dois de Germi (Divórcio à italiana, 1961; Seduzida e abandonada, 1964).
Há no mercado outros clássicos disponíveis em DVD: Aquele que sabe viver (Risi, 1962), O incrível exército de Brancaleone (Monicelli, 1966), Meus caros amigos I e II (Monicelli, 1975 e 1982) e os filmes de episódios tão característicos daquela fase italiana:Amores na cidadeAs bonecasBoccaccio 70Casanova 70 etc.
Poesia do fracasso
Mas fiquemos, por enquanto, nos três títulos que acabam de ser lançados. Eles sintetizam grande parte do espectro temático e dos trunfos narrativos da chamada “comédia à italiana”. As duas linhas mais frequentes na filmografia do gênero – a comédia picaresca e a farsa de adultério – estão presentes com força: a primeira no filme de Monicelli, a segunda nos dois de Germi. O malandro e o cornudo são, por excelência, os personagens centrais desse tipo de cinema.
Em Os eternos desconhecidos, uma trupe de pequenos vigaristas da periferia de Roma planeja um grande golpe: o roubo de uma casa de penhores, fazendo um buraco na parede do apartamento vizinho. O plano é perfeito – “científico”, como diz um personagem –, mas seus executores estão longe de sê-lo. Aqui, uma sequência crucial:
Sem prejuízo da graça impagável das cenas, situações e diálogos, há uma certa melancolia na inadequação social dos personagens, uma autêntica poesia do fracasso que reencontraremos em BrancaleoneMeus caros amigosRomance popular e Parente é serpente, entre tantos trabalhos memoráveis do diretor.
O elenco extraordinário inclui o veterano comediante Totó e os então jovens Marcello Mastroianni, Vittorio Gassman e Renato Salvatori, além de uma Claudia Cardinale pouco mais que adolescente.
Tragicomédias morais
Já os dois filmes de Pietro Germi, ambos ambientados em aldeias remotas da Sicília, são tragicomédias morais em torno do adultério. Com seu humor corrosivo, sua observação implacável da cultura e da moral sicilianas, eles são a prova contundente de que a comédia italiana de costumes não tinha nada de frívola, inconsequente ou “alienada”.
Divórcio à italiana é irônico desde o título. Como não existia na Itália o divórcio (que só seria aprovado em 1970), o protagonista, um barão falido (Mastroianni), precisa dar um jeito de se livrar da esposa (Daniela Rocca) para poder se casar com a prima (Stefania Sandrelli). A solução seria matá-la, mas para se livrar da cadeia ele precisa dar ao crime ares de “reparação da honra”. Com esse intuito, empurra a mulher para o adultério. O barão falido, no caso, é um cornudo por iniciativa própria, como comprova esta sequência, que se inicia com uma reunião política em que um enviado do Partido Comunista pergunta aos proletários locais o que pensam da mulher que tem um caso fora do casamento:
Há uma piada intertextual irresistível: a certa altura, entra em cartaz no cinema da aldeia A doce vida, realizado um ano antes do Divórcio e estrelado pelo mesmo Mastroianni. A Igreja execra o filme e excomunga o diretor, mas toda a população do lugarejo, em especial a masculina, vai assisti-lo. Vemos na tela imagens de Anita Ekberg e chegamos a ouvir a voz de Mastroianni no filme dentro do filme.
Reparação da honra
A “reparação da honra” também é o móvel dramático de Seduzida e abandonada, comédia ainda mais cruel que a anterior. Aqui, uma adolescente, Angese (Stefania Sandrelli), é desvirginada pelo noivo (Aldo Puglisi) da irmã. O pai da moça (o fabuloso Saro Urzì), ao saber do fato, tenta evitar o vexame das maneiras mais estapafúrdias, ampliando cada vez mais o desastre. Estamos num terreno muito próximo das tragédias morais de Nelson Rodrigues.
Dois grandes acertos fazem desse filme um clássico: o retrato sem nenhuma condescendência da boçalidade agressiva das massas e o modo como extrai todo o seu humor de uma exacerbação do melodrama. Há cenas – em particular as confrontações entre a família e a população do vilarejo – que escapam do realismo e adentram a dimensão do delírio e do pesadelo. Nesta sequência, vemos o sequestro de Agnese por seu violador, planejado pelo pai da moça para ser encenado diante de toda a população da aldeia durante uma procissão. Uma curiosidade: Lando Buzzanca, que seria astro de pornochanchadas italianas nos anos 70, aqui aparece como irmão de Agnese:
Resta esperar que outros títulos importantes dessa rica filmografia cheguem o quanto antes até nós, para contrabalançar um pouco o humor histérico e vazio das produções globais.
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*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas também no blog do IMS e na revista Carta Capital.
Para ler as edições anteriores da coluna, clique aqui.
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