terça-feira, 14 de agosto de 2012

A desordem climática e o acervo da esquerda


Em julho, uma seca abrupta irrompeu no meio oeste norte-americano. Apenas um mês antes, previsões apontavam para uma colheita de promissora a excelente no cinturão do milho. Os EUA tem o melhor sistema de previsão de tempo do mundo. A NOAA - National Oceanic Atmospheric Administration, nasceu nos anos 60; já disparou dezenas de satélites e sondas para a atmosfera; hoje opera com pelo menos quatro satélites potentes e dezenas de sensores e sondas. O sistema tem abrangência para rastrear ininterruptamente a superfície da terra e do mar. Dados transmitidos a uma vasta rede de estações alimentam modelos de previsões meteorológicas e estudos climáticos levados a cabo por algumas centenas de cientistas ao redor do planeta. Nem assim a seca, mas sobretudo a sua intensidade, a mais destrutiva em quase 50 anos, foi antecipada. 

Surpresa de dimensões equivalentes colheu a Agência Espacial Europeia. A instituição admitiu nesta 2ª feira que subestimou em quase 50% a extensão do degelo no Ártico no último verão. Informações de satélites constataram agora que 900km³ do gelo desapareceram no Pólo Norte em 2011, o dobro das estimativas. Os erros superlativos sugerem que ainda falta muito para equiparar a capacidade de análise da ciência ao poder destrutivo acumulado em relação ao clima. 

O custo dessa dupla vulnerabilidade é explosivo. Os EUA, por exemplo, abastecem a metade do comércio internacional de milho, grão estratégico na cadeia alimentar tanto de humanos quanto das criações. O revés não previsto pela meteorologia deve reduzir em cerca de 17% a contribuição do corn-belt no atendimento da demanda mundial em 2012/2013. Há estoques, mas são apertados. Seu declínio dispara uma espiral de adversidades tão ou mais drásticas que as originárias do aquecimento do clima. A especulação nas bolsas de commodities nos últimos 60 dias fez as cotações do milho subirem quase 55% em Chicago. Os níveis estão muito próximos das máximas atingidas no colapso de 2008, quando o século XXI atingiu a marca de um bilhão de famintos.

A seca imprevista afetou também a soja, que rivaliza com o milho em importância na cadeia produtora de carnes. Mas o tempo quente não se limitou ao corn-belt. Seca ou chuvas abaixo do normal afetaram a produção de arroz na Índia e a de trigo na Sibéria. Incêndios consomem bosques inteiros na Europa, destruindo o triplo da área normalmente atingida pelo fenômeno. No extremo oposto, inundações afligem cidades e regiões rurais da China, Coréia do Sul , Japão e Filipinas. Não são eventos inéditos. Na verdade, eles guardam sintonia com o padrão do clima para esta época do ano. Mas a virulência, a simultaneidade e a irrupção abrupta, que nem mesmo a NOAA consegue prever, sugerem uma desordem climática que remete às piores advertências dos pesquisadores há décadas. 

A narrativa da quebra de safra norte-americana foi rapidamente capturada pelos mercados que cuidam de bombar as projeções de alta de preços, ao mesmo tempo em que engrossam o coro da escassez iminente. Uma espécie de lança chamas financeiro reforça o trabalho da fornalha climática no impulso às cotações. Sugestivamente, a origem do problema, o descontrole ambiental, saiu do centro do radar noticioso. 

Quando alguns se perguntam, geralmente aqueles recém convertidos às virtudes dos mercados autorreguláveis, de que serve a distinção direita/esquerda nos dias que correm é possível argumentar com uma biblioteca inteira de história contemporânea. Mas é cada vez mais pertinente indagar se a capacidade de convencimento desse acervo subsistirá, em breve, se os partidos de esquerda não assumirem como sua a responsabilidade de afrontar a lógica predadora --essa que empurra o planeta para o limiar do abismo e depois especula com a valorização do m2 na borda do precipício. A ver.
Postado por Saul Leblon às 17:52

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