quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A ironia e o apocalipse


A ironia e o apocalipse: entrevista de Slavoj Zizek ao jornal Valor Econômico

Diego Viana
Slavoj Zizek encerra uma hora e meia de entrevista com um desafio. “Sou um bom totalitário, então deixo aqui a autorização para distorcer tudo que eu disser”, concede o filósofo e psicanalista esloveno, por telefone, de sua casa em Liubliana. “Este é o desafio: o bom jornalista é aquele que consegue me fazer dizer o oposto do que eu disse sem mudar minhas palavras.” Para Zizek, autorizar a distorção das próprias declarações é divertido. Trata-se de mais uma forma de ver emergir “a ironia das coisas”, e o termo “ironia” não surge ao acaso: é recorrente no discurso do filósofo, ao lado de “paradoxo”, “cinismo” e “pessimismo”.
Ele se queixa dos tempos politicamente corretos, em que o senso de ironia, o gosto pelo humor e a disposição para o combate estão se perdendo. “Acontece o tempo todo comigo. Digo coisas que claramente devem ser tomadas como piada e sou bombardeado por causa delas, porque todo mundo me leva a sério!” Mas os tempos não são só politicamente corretos, no entender de Zizek: o título de seu livro mais recente é “Vivendo no Fim dos Tempos” (Boitempo, 368 págs., R$ 52). O autor busca mostrar que, embora as coisas não possam continuar como estão – crise financeira, degradação ambiental, avanço da biogenética, favelização, os atuais “quatro cavaleiros do apocalipse” -, ninguém tem nada de animador a propor para mudar a situação. Nem a direita, nem muito menos “a velha esquerda”.
São dois os gêneros em que o filósofo divide suas publicações, que são muitas: só em livro, contam-se mais de 50, a partir de 1974. Os textos teóricos, a maioria sobre o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), o filósofo alemão G.W.F. Hegel (1770-1831) e a cultura popular, analisada sob a ótica desses autores, são a verdadeira paixão do esloveno. Mas “Vivendo no Fim dos Tempos” pertence ao segundo grupo de textos, aqueles que lhe conferem a celebridade e a fama de polemista folclórico: os escritos embebidos em engajamento político.
“Se pudesse escolher, eu só escreveria os livros filosóficos”, diz o autor. “Escrever sobre política, falar com a imprensa, esse é o meu lado iluminista, ou melhor, meu lado socrático. Nós, filósofos, não sabemos mais do que os outros, mas parece que entendemos um pouquinho melhor que não sabemos o que pensamos saber”, afirma. Na mesma época em que escreveu “Vivendo no Fim dos Tempos”, ele também publicou um livro sobre Hegel (“Less Than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism”) que conta mais de mil páginas e sairá no Brasil em versão reduzida no ano que vem.
Sua produção prolífica é atribuída à sorte. “Minha tese, na Iugoslávia comunista do período mais linha-dura, foi considerada ‘não marxista’, então não me deram uma cátedra para lecionar”, relembra. O emprego que apareceu foi no Centro Marxista da Eslovênia, um instituto de pesquisas. “É o emprego perfeito. Não tenho nenhuma obrigação, não dou satisfação a ninguém e não dou aulas – odeio estudantes, eles fazem perguntas. Posso passar o dia todo lendo e escrevendo.” Junte-se a isso a verborragia de alguém que recebeu dos amigos o apelido de “Fidel”, em referência a Fidel Castro. “Não é pela política. Ele engata discursos de seis horas quando promete só fazer um comentário.”
Zizek se define de maneiras variáveis: como um comunista atípico, um esquerdista radical, um socialista oposto a Marx. “Meu esquerdismo radical é mais o resultado de um insight pessimista. Vejo que estamos chegando perto de uma catástrofe, e não estou falando daquela profecia maia idiota”, explica. “Acontece que não se pode ir indefinidamente nesse caminho de desastres ecológicos, segregação racial, novos muros de apartheid, apropriação da criatividade intelectual e guerra biológica.” Em “Vivendo no Fim dos Tempos”, a tarefa autoimposta é a de propor uma volta à filosofia de Hegel, superando a tradição da leitura de Marx, que, em seus textos de juventude, virou do avesso o pensamento hegeliano.
“O sistema de Hegel é muito mais apropriado para entender o mundo de hoje, porque temos uma totalidade em crise – o capitalismo neoliberal – e não sabemos ao certo para onde estamos caminhando”, afirma. “Não sou um marxista da velha escola. Só sigo Marx na percepção de que, no longo prazo, o capitalismo não será capaz de regular suas contradições internas. Mas a história não tem uma tendência inerente para o comunismo. Ela é confusa, não tem tendência nenhuma.”
A organização do livro segue um esquema psiquiátrico, inspirado nos estágios do luto, como definidos por Elisabeth Kübler-Ross, psicóloga suíça morta em 2004. Zizek vê negação (a primeira etapa e primeiro capítulo) nos “modos predominantes de obscurecimento ideológico”. Um exemplo é a ambiguidade libidinal de “A Noviça Rebelde”, tratada à moda de Zizek: com enorme ironia. “O poder do filme reside em sua representação obscenamente direta de fantasias íntimas embaraçosas”, escreve o filósofo, citando a cena em que a noviça Maria, apaixonada pelo barão von Trapp, volta ao convento e ouve da madre superiora que deve corajosamente “escalar todas as montanhas”.
A raiva (segunda etapa) está identificada às reações violentas contra o sistema global. Na Europa, segundo Zizek, os embates entre direita e esquerda foram substituídos por uma disputa entre a política e a “pós-política”, em que o lado mais perigoso é o da política. Pós-políticos são os “grandes partidos de centro”, “economicamente neoliberais, mas um pouco mais tolerantes socialmente”. Do outro lado está uma oposição politicamente belicosa, racista, xenófoba e conservadora. “Só uma nova esquerda poderia romper este quadro”, diagnostica o pensador.
Essa nova esquerda não há de ser encontrada, ele diz, em movimentos como o Ocupe Wall Street, que tomaram as ruas e fizeram muito barulho em 2011. “É simpático, mas um pouco idiota”, diz. “O que o movimento fez de bom foi puramente negativo. Fazia décadas que um movimento político não se estruturava com a percepção de que o sistema econômico tem uma falha estrutural.” As conversas com participantes do movimento, porém, o deixaram “decepcionado e pessimista”. “Tudo que eles dizem querer são platitudes moralistas abstratas ou uma estranha atitude humanitária keynesiana.”
À raiva se sucede a barganha: Zizek defende que se refaça a crítica da economia política (subtítulo de “O Capital”), mas com um “Marx não marxista”. Nesse capítulo, Zizek atinge o núcleo de sua proposta de retorno a Hegel. “A esquerda tem de pensar muito mais radicalmente. Para começar, temos que acabar com essa ideologia de ver o Estado como inimigo, aquele que controla e oprime”, afirma. “O estado do mundo, hoje, exige muito mais organização em nível global.” Enquanto isso, a esquerda se divide entre aqueles que esperam a derrocada do sistema por si só e aqueles que propõem pequenos ajustes social-democratas. “No Leste Europeu sob regime soviético, a oposição propunha o socialismo com face humana. Hoje, que ironia, querem o neoliberalismo com face humana”, diz.
A quarta etapa é a depressão, o desinvestimento libidinal. Neste capítulo, Zizek analisa o impacto da catástrofe que espera para breve, na forma de “algum novo tipo de regime levemente autoritário, não como o antigo autoritarismo fascista, mas algo entre a China, Cingapura, a Itália de Berlusconi e a Rússia de Putin”. No nível privado, a liberdade ficaria intocada: sexual, sobretudo. “Mas as relações econômicas tendem a ser menos transparentes e mais cartelizadas.” A explosão de novas favelas no mundo tem “potencial para uma guerra civil mundial”, refletindo eventos como as revoltas suburbanas de Paris em 2005 e 2008 e de Londres em 2011. “Não tinha ideologia nenhuma aí, no máximo o consumismo. Roubar as lojas e levar as roupas bacanas”, lembra Zizek. “Isso é uma indicação muito triste de como perdemos até mesmo a imaginação para sonhar com algo diferente. Só conseguimos responder com uma violência reativa.”
Outro sintoma daquilo que Zizek chama de uma “stasis mundial”, ou seja, a incapacidade para agir que acomete tanto os poderosos quanto os dissidentes, pode ser encontrado na Grécia. “Fiquei arrasado com o que aconteceu com o Syriza [partido de esquerda que chegou em segundo lugar nas eleições]“, relata. “Eles não são nada do que a propaganda dizia deles. Não são idiotas malucos e não queriam sair do euro. Só queriam tornar o Estado grego mais responsável: todo mundo teria de pagar impostos, incluindo os ricos.” Lembrando das acusações que recaíram sobre a Grécia, considerada pelos europeus do Norte como clientelistas e corruptos, Zizek arremata: “e foram apoiar justamente o Nova Democracia, partido do clientelismo e da corrupção”.
Depois de tantas etapas, chega-se à aceitação. No quinto capítulo, Zizek aproxima essa aceitação de uma “nova subjetividade emancipatória”, “germes de uma cultura comunista”. O filósofo propõe que a esquerda aprenda a usar uma estratégia associada à direita: a “doutrina do choque”, a partir do livro homônimo da ativista canadense Naomi Klein. Ela afirma que as principais reformas liberalizantes na economia foram introduzidas enquanto a população estava em estado de choque: o Chile de Pinochet, a Rússia de Ieltsin, o Iraque sob domínio americano etc. Para Zizek, “no choque, as pessoas perdem seus antigos pontos de orientação. Elas estão abertas a novas políticas, de direita ou de esquerda. É preciso agarrar a oportunidade”.
Indícios de possíveis novas subjetividades emancipatórias são encontrados em uma das áreas de estudo preferenciais de Zizek: a cultura popular. A banda de “rock industrial” alemã Rammstein, por exemplo, parece exibir uma forma de violência e intolerância que remete ao fascismo, mas “destrói a ideologia totalitária não com a distância irônica dos rituais que imita, mas confrontando-nos diretamente com sua materialidade obscena e, assim, suspendendo sua eficácia”, como escreve Zizek.
Levando ao paroxismo seu pessimismo e seu gosto pela ironia, Zizek encerra o argumento afirmando que nos aproximamos de “tempos interessantes”, ou seja, um período “de inquietação, guerra e luta pelo poder, em que milhões de inocentes sofrem as consequências”. Em seu hegelianismo pessimista, o filósofo esloveno encerra o livro apontando novamente para os impasses da esquerda: a situação é diametralmente oposta à vivida no século XX, “em que a esquerda sabia o que tinha de fazer”. “O comunismo, hoje”, escreve Zizek, “não é o nome da solução, mas o nome do problema”. O que está em jogo, portanto, são “as áreas comuns da natureza como substância da vida” e “espaço universal de humanidade”.


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