quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Intelectuais a serviço da nakba palestina


06/08/2012 | Soraya Misleh

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“Ninguém é bastante poderoso ou bastante rico para deslocar um povo de um lugar de habitação e transferi-lo para outro. Só uma ideia pode realizar esta grande tarefa.” A frase é expressa na obra O estado judeu, de Theodor Herz, publicada em 1896. Pai do sionismo político moderno – movimento colonialista que surgiu na Europa no final do século XIX - e idealizador do Estado de Israel -, o autor argumentava que a única saída para os judeus seria partir da Europa, dado o antissemitismo. A Palestina foi o destino escolhido no I Congresso Sionista realizado na Basileia, Suíça, em 1897. Como estratégia para convencê-los a imigrarem – pois não havia esse ímpeto num primeiro momento –, o sionismo procurava reinventar a noção de regresso para um local ocupado por “forasteiros”. Como afirma Ilan Pappe, em seu livro La limpieza étnica de Palestina, a designação era dada a não judeus - os quais, para muitos sionistas, ou eram invisíveis ou um obstáculo a ser eliminado.
Assim, criava-se o mito da “terra sem povo para um povo sem terra”. O palestino, conforme a tradição orientalista, era transformado num não povo. Somente tamanha desumanização poderia conceber a limpeza étnica planejada e levada a cabo em 15 de maio de 1948, quando da criação unilateral do Estado de Israel. A partir de 29 de novembro de 1947 – quando foi aprovada na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, a Resolução nº 181, relativa à partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe, sem consulta aos seus habitantes -, foram expulsos cerca de 800 mil nativos árabes de suas terras, que se tornaram refugiados, e destruídas 531 aldeias, como aponta Ilan Pappe, em seu livro História da Palestina Moderna. Esse processo teve continuidade ainda em 1949, portanto mesmo após a instalação do Estado teocrático judeu. 
O papel da intelectualidade europeia num primeiro momento – e depois estadunidense – é indicado pelo escritor palestino Edward Said, que em sua obra Orientalismo não deixa dúvidas de que a colonização é justificada de antemão por um discurso cultural que divide o mundo entre “ocidentais” e “orientais”. Os primeiros, como explicitado em seu livro, seriam basicamente os civilizados, com raciocínio lógico, pacíficos, capazes de valores reais; já os últimos equivaleriam a uma massa uniforme de povos atrasados, bárbaros, afeitos à violência por natureza, que não podem se autogovernar, precisam ser temidos e, portanto, controlados. 
O Orientalismo não é um conceito novo. Data tradicionalmente, para o “Ocidente cristão”, do século XII, quando houve o surgimento de várias cátedras de estudos sobre o “Oriente”. Não obstante, o século XVIII é entendido pelo autor como um marco de sua fase moderna, em que teria tido uma espécie de “renascimento”, com a ampliação das representações sobre os povos “orientais”. A pretensão era fortalecer a ideia de uma civilização europeia superior. 
Na Palestina, o mandato britânico nas primeiras décadas do século XX - após a queda do Império Otomano que detinha o domínio daquelas terras até sua derrota na Primeira Guerra Mundial - sustentou um projeto que manteria essa esfera de poder e influência sobre a população nativa. Essa perspectiva consideraria que os habitantes do local seriam inferiores e por isso não deveriam ter os mesmos direitos que os demais. Traria ainda a crença de que há bons e maus árabes – estes últimos os que se recusariam à passividade e seriam, portanto, considerados terroristas. Para Said, nesse sentido, “o Orientalismo rege completamente a política de Israel para com os árabes”.
O que explicaria um conjunto de leis discriminatórias em Israel em relação a estes, e mais. Na ótica de Said, um mito acaba por sustentar e produzir outros. As representações são muitas e servem para manter o status quo. Entre elas, a de que Israel sempre reage e se defende e mantém sua política militarista por uma questão de segurança ante vizinhos hostis, sempre prontos a atacar, que desejam sua destruição sistemática. O discurso orientalista tem sido hábil em desumanizar esses “vizinhos” e manter acesa a chama do medo e do desconhecimento do “Outro” na sociedade israelense. 
Modernizar a população indígena
Esse estilo de pensamento refletia a atitude comum dos europeus em relação à Palestina ainda antes, no século XIX. A população indígena deveria ser modernizada para seu próprio bem ou dar lugar aos recém-chegados e às suas ideias – entre os mais ambiciosos e enérgicos estariam os sionistas. Um número bastante reduzido de estrangeiros não se enquadraria nesse grupo, mas não teria sido impeditivo à colonização na localidade.
Conforme Ilan Pappé, viajantes, missionários e escritores europeus publicaram mais de 3 mil livros e relatos de viagem sobre a Palestina durante aquele século, todos eles pintando-a como um local primitivo, à espera de redenção por parte desses estrangeiros. Uma organização arqueológica britânica, intitulada Palestine Exploration Fund [Fundo de Exploração da Palestina], considerava esse movimento uma espécie de operação de salvamento. Como escreve o historiador israelense, a visão corrente era de que “a Palestina tinha urgente necessidade de modernização, visto que as pessoas que os exploradores europeus encontravam eram obviamente infelizes no seu mundo pré-moderno”. O que não se sustenta minimamente, quando se levam em conta as memórias e relatos dos palestinos. Mas, para os orientalistas, estes não tinham voz – portanto, não eram ouvidos, tampouco lhes era dado o direito de expressão.
Reinvenção dos lugares
Os orientalistas tiveram papel fundamental também na reinvenção das aldeias destruídas durante a chamada nakba palestina – termo utilizado pelos árabes, que designaria a catástrofe que se abateu sobre eles há 65 anos. O processo de “limpeza” incluiu apagar quaisquer vestígios de sua existência anterior e reinventá-las sob outra forma, segundo Pappe, como lugares hebreus puros. 
O historiador israelense revela no livro La limpieza étnica de Palestina que o espólio resultante da limpeza étnica promovida naquele território foi acompanhado da mudança de nomes dos vilarejos. O autor chega a utilizar o termo “memoricídio” para descrever esse trabalho, que teria sido realizado com o auxílio de arqueólogos e especialistas em estudos bíblicos, “que se ofereceram voluntariamente a colaborar com um comitê de nomes oficial cuja tarefa era hebraizar a geografia da Palestina”. Como parte desse movimento, a língua hebraica também foi recriada.
O objetivo, puramente ideológico, era desarabizar a região, mudar sua história e, assim, garantir o sucesso do projeto colonial. Na ótica de Said, “reconstruir uma língua oriental morta ou perdida significava, em última análise, reconstruir um Oriente morto ou esquecido”. E preparar o terreno para o que viria a ser feito no local posteriormente. 
Muitos dos vilarejos destruídos deram, assim, lugar a parques e bosques israelenses, numa negação sistemática da nakba e uma busca por fazer com que aquelas paisagens tivessem aparência europeia. A escolha por espécies não nativas a serem plantadas nesses locais encontraria essa justificativa, de acordo com Pappé. O historiador israelense lembra que o Fundo Nacional Judeu apresenta em seu site oficial esses lugares como atração turística. A organização é apresentada como responsável pelo florescimento do deserto e a aparência europeia da paisagem. Esse processo continua em curso, e as representações sobre os árabes – no caso específico, palestino – são fundamentais para tanto.
Contudo, esse discurso tende a perder força. A consciência crítica ao longo desse percurso seria o caminho para se desafiar a visão orientalista. O que implica necessariamente um reconhecimento histórico das injustiças cometidas ao longo desse percurso. Pode acelerar esse processo o fato de se intensificar, perante um mundo cada vez mais conectado globalmente, a repercussão negativa das últimas ações de Israel. A resistência heroica desse povo, somada ao crescimento de ações em todo o mundo como o boicote acadêmico e cultural a instituições que sustentam esse sistema de opressão – e são a espinha dorsal do orientalismo –, mostra que o caminho para uma Palestina livre passa por não silenciar.
Artigo publicado originalmente no boletim Al Thawra.
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