segunda-feira, 20 de agosto de 2012

"Ministério Público tem feito sua parte. Esperamos que Judiciário faça a sua"


"Ministério Público tem feito sua parte. Esperamos que Judiciário faça a sua"

Em debate realizado em São Paulo, na Plenária Estadual da Articulação pela Memória Verdade e Justiça, o Procurador da República Sergio Suiama relatou as iniciativas do Ministério Público Federal para responsabilizar criminalmente os torturadores da ditadura mililitar. Para Marcio Sotelo Felippe, Procurador do Estado, é necessário construir um Direito no qual a ética subordine a atividade jurídica.

SÃO PAULO - Em outubro de 2011, um grupo de trabalho foi criado no âmbito do Ministério Público Federal (MPF) para investigar casos visando a responsabilização criminal de torturadores da ditadura militar no Brasil. Ao todo, nove procuradores estão trabalhando com base em duas estratégias centrais. A primeira, que há certos crimes cometidos por agentes da ditadura que podem ser configurados como crimes contra a humanidade, conceito cunhado no direito internacional. Por isso, não seriam prescritíveis e suscetíveis à anistia. A segunda estratégia adotada é a de que há crimes que podem ser considerados permanentes, cuja execução ainda está em andamento, já que não se sabe o destino das vítimas. É o caso dos crimes de sequestro e ocultação de cadáver, que não estariam prescritos e assim permitiriam a punição criminal de seus autores, sem precisar evocar do direito internacional.

Neste sábado (18), durante a Plenária Estadual da Articulação pela Memória Verdade e Justiça em São Paulo, o Procurador da República Sérgio Suiama, que integra o grupo de trabalho do MPF, criticou o fato de a Justiça brasileira não ter condenado criminalmente nenhum agente da ditadura militar. O GT já produziu três ações penais e luta pela condenação dos perpetradores pela Justiça. Duas delas foram abertas em Marabá e focam no sequestro de seis vítimas do Araguaia, desaparecidas até hoje. A terceira foi aberta em São Paulo contra o delegado de polícia Dirceu Gravina e o coronel Brilhante Ustra, condenado na última semana em ação civil declaratória movida pela Família Teles, também pelo sequestro e desaparecimento de um sindicalista durante a ditadura: Aluísio Palhano. As duas primeiras já foram negadas pela Justiça em primeira instância, e o MPF recurreu ao Tribunal de Justiça. 

"No MPF temos feito nossa parte. Esperamos agora que o Judiciário faça a parte deles também", afirmou Sérgio Suiama. Segundo o procurador, o argumento usado pelos juízes de primeira instância para negar a condenação criminal nas ações movidas é o de que a Lei 9.140 de 1995 reconhece como mortos, para todos os efeitos, os desaparecidos políticos do período da ditadura miitar. "Para facilitar a vida da família, a lei pode reconhecer a morte de uma pessoa. Mas lei não mata ninguém. Para fins penais, a lei não tem este condão. Para provar que uma pessoa morreu é preciso haver exame de corpo de delito. Ninguém pode ser declarado morto sem isso. E, se não estão mortos, o crise é permanente", argumentou. 

Há um precedente no Supremo Tribunal Federal que reforça esta tese do grupo de trabalho do MPF. Mesmo após o julgamento da ADPF 153 (Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental), que ratificou a validade da Lei de Anistia no Brasil, o Supremo considerou a não prescrição de crimes da ditadura em casos ainda em andamento. Foi esta a decisão da Corte brasileira em dois pedidos de extradição feitos pela Argentina para torturadores de lá que se encontravam aqui no Brasil. "Na sentença, o Supremo disse que o crime de desaparecimento equivaleria ao nosso crime de sequestro e que, enquanto não houvesse corpo, não seria possível dizer que a pessoa está morta. O sequestro, portanto, ainda estaria ocorrendo e o crime não estaria prescrito", explicou Suiama.

A expectativa, portanto, é a de que esses casos, apesar de negados em primeira instância, tenham resultado positivo no Supremo. Além deles, o MPF tem 58 investigações de tortura, execução sumária e desaparecimento forçado em andamento em São Paulo, Rio Grande do Sul, Marabá, Rio de Janeiro e no município de Campos de Goytacazes (RJ). O objetivo é verificar se é possível identificar a autoria desses crimes e se seus perpetradores ainda estão vivos, para então promover a responsabilização penal dessas pessoas. 

Mais de 30 testemunhas já foram ouvidas nessas investigações, entre elas diversos torturadores, como Claudio Guerra, Marival Dias Chaves (ex-Doi Codi) e Carlos Alberto Augusto (Dops-São Paulo). Estão programadas agora as oitivas do Cabo Anselmo e do "J", ex-membro da ALN que teria entregue vários de seus companheiros aos militares. 

Ética e crimes contra a humanidade
A outra estratégia usada pelo MPF para tentar responsabilizar criminalmente os torturadores é a caracterização da prática de crimes contra a humanidade, que não prescreveriam, durante a ditadura militar brasileira. O desafio neste campo parece ser maior.

Durante o julgamento da ADPF 153, o argumento central usado pelo ministro relator Eros Grau foi o de que houve um grande acordo no Brasil que resultou na Lei de Anistia. E que, portanto, não é possível mais punir criminalmente os torturadores. Para o procurador do Estado de São Paulo Marcio Sotelo Felippe, que também participou do debate neste sábado, o argumento é uma falácia. 

"Toda gente que conhece nossa história sabe que este acordo político não existiu. O projeto que foi votado no Congresso não era o que a sociedade queria; pouco antes da votação houve o Dia Nacional de Repúdio à Anistia proposta naquele texto. E o resultado da votação foram 206 votos da Arena contra 201 do MDB. Que acordo foi esse?", relembrou Sotelo. "Ainda que tivesse ocorrido, o acordo não poderia ser fundamento para a decisão tomada pelo STF. Isso porque não se pode fazer um acordo para não se punir crimes contra a humanidade. À luz do direito contemporâneo, esta é uma impossibilidade jurídica", afirmou. 

O conceito de crime contra a humanidade surgiu no mundo jurídico após a barbárie do holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, conta Sotelo, o positivismo jurídico, caracterizado pela rígida separação entre moral e direito, era inquestionável. "Direito era o que estava na lei; o dever incondicional do juiz era obeder as leis. Este positivismo passa a ser questionado por um direito no qual a ética subordine a atividade jurídica e a ação do Estado. Surge aí o princípio da dignidade humana, e em cima disso começa a ser construído o conceito de crime contra a humanidade, caracterizado por três pontos essenciais: existência de uma política criminosa de Estado, que envolva graves violações de direitos humanos, e que seja executada de forma sistemática ou massiva", explica.

Dentro desta nova lógica, o Estado perde o monopólio da norma jurídica e não pode mais se auto-anistiar por ter praticado crimes contra a humanidade. E, devido a seu grau de periculosidade e potencial ofensivo, esses crimes passam a ser imprescritíveis.

"Estas regras são imperativas, não dependem de nada para que sejam aplicadas e tenham eficácia. Não adianta dizer que há acordo sobre essas coisas, esse tipo de norma tem que valer independente da vontade de ação das pessoas que estão envolvidas na relação jurídica", explica Marcio Sotelo Felippe. "Temos então uma decisão do STF que é completamente desamparada de qualquer conceito jurídico moderno. É uma decisão política, admitida por Eros Grau", completa.

Assim, mesmo que não fizesse parte do Sistema Internamericano de Direitos Humanos, que declarou inválida a Lei de Anistia para todos os efeitos que dizem respeito à punição de graves violações de direitos humanos, o Brasil estaria sujeito a alguma condenaçao em esfera internacional. 

A tese, no entanto, é minoritária dentro do Poder Judiciário e no conjunto da sociedade brasileira, reconhecem os procuradores. Se a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ordenou o Brasil a investigar e punir criminalmente as violações no Araguaia, mudou a postura do Ministério Público Federal para buscar punir os torturadores, ainda é preciso avançar muito para que esta visão se torne hegemônica na sociedade brasileira. 

"Nem sempre o uso comum da expressão crime contra a humanidade pode ser caracterizado desta forma juridicamente. Há uma zona cinzenta em que temos que trabalhar", analisa Sergio Suiama. "E temos que começar a dar uma cara para essas pessoas, tanto para os perpetradores quanto as vitimas. Só discutindo abstratamente se a anista é valida ou não vai ser difícil convencer as pessoas. Temos que começar a levar para o Judiciário a história desses homens e mulheres, muitos que sequer pegaram em armas. Talvez assim consigamos sensibilizar o Judiciário", aponta. 

"Não podemos desistir. Recentemente tivemos duas decisões absolutamente surpreendentes, no caso Merlino e no caso Teles. Então estamos avançando. Se nem sempre na cúpula dos Poderes não nos dão boas notícias, na base podemos começar a virar este jogo", concluiu Sotelo. 


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