terça-feira, 21 de agosto de 2012

Somos todas Pussy Riot


  20 DE AGOSTO DE 2012

Condenação das garotas da banda russa escancara não só a política autoritária ligada à igreja ortodoxa existente em seu país, mas também as ameaças de retrocesso antifeminista —  presentes inclusive no Brasil
Por Lola Aronovich, em Escreva, Lola, escreva
Em primeiro lugar, quero pedir desculpas por ter sido a última a saber das Pussy Riot. Só soube agora no final de julho. Vou ter que apresentar um resumo no caso de existir uma alma mais desatenta do que eu (pode acontecer, tenho fé).
No dia 21 de abril, três integrantes do grupo de punk rock Pussy Riot (Revolta das Vaginas?), vestindo máscaras de esqui coloridas que cobriam seus rostos, entraram na Catedral de Cristo Salvador, a maior igreja da Rússia, e, no altar, cantaram uma música de protesto que pedia que a Virgem Maria nos livrasse de Putin, então primeiro ministro e candidato a presidente.
A música, cantada (os instrumentos só foram acrescentados nos vídeos depois), também falava dos homossexuais presos na Sibéria e do diretor da KGB ser a mais alta santidade. E ainda implorava: “Virgem Maria, mãe de Deus, vire feminista, vire feminista, vire feminista”, uma mensagem extremamente revolucionária. Pare alguns segundos para refletir como seria uma Virgem Maria feminista, porque é até difícil de imaginar.
As jovens musicistas foram presas em abril e, à medida que ficou claro que elas são prisioneiras políticas – alguma dúvida que se elas tivessem cantado uma canção pró-Putin na igreja nada teria acontecido? –, elas rapidamente conseguiram o apoio de muita gente importante, como Madonna (que escreveu o nome da banda em seu show em Moscou), Paul McCartney, Sting, Red Hot Chilli Peppers, Yoko Ono (que divulgou uma bela mensagem de solidariedade), entre outros. Ontem, durante o julgamento, o maior jogador de xadrez de todos os tempos, Gary Kasparov, foi preso numa manifestação em frente ao tribunal.
Antes de prosseguir, gostaria de explicar pro pessoal do quilate de quem deixa mensagens no YouTube do tipo “Espero que elas sejam estupradas na prisão e depois executadas”, que protestar contra o sistema é sempre um ato de coragem, porque vai atrair, além da polícia e do sistema judicial, as pessoas comuns que pensam ser livres. Aquelas que nem desconfiam que seu pensamento de “Não tenho ideologia mas farei tudo para manter a ordem” seja tão ideológico quanto cantar “Virgem Maria, vire feminista”.
Lembro de como, na Marcha das Vadias do Rio, quando algumas poucas manifestantes entraram numa igreja católica, a opinião pública foi contra. Essa mesma opinião pública provavelmente está contra a ação das Pussy Riot. “As religiões devem ser respeitadas”, gritam os guardiões da ordem. Geralmente essas pessoas ignoram o fato de que não vivemos num Estado Laico, nem na Rússia, nem aqui no Brasil. A religião cristã manda e desmanda nas leis brasileiras. Querem ter seus templos livres de invasões, mas se acham no direito de seus templos invadirem todas as esferas do nosso cotidiano (e de não pagarem impostos).
No caso da Rússia, o mesmo altar da igreja ortodoxa invadida pelas Pussy Riot foi palco, durante as eleições, de pedidos de voto para Putin. Patriarca Kirill, o líder dos cristãos ortodoxos no país (que vem sendo acusado de corrupção), proibiu seus fiéis de participar de manifestações contra o governo e os convocou a elegerem Putin. Pedir voto pro governo em nome de deus pode, mas fazer uma manifestação pacífica de um minuto pedindo pra Virgem Maria que livre o povo de Putin não pode? Estranha lógica.
Putin, recém reeleito para um mandato de seis anos, tem sido implacável com opositores. Antes da prisão do Pussy Riot, grupos de direitos humanos do mundo inteiro já andavam reclamando. A Parada do Orgulho Gay, por exemplo, foi proibida na Rússia pelos próximos cem anos. E juro que vi reaças brasileiros comemorando o “pulso firme” russo. Cadê a liberdade de expressão?
Mais do que protestar contra a igreja, as Pussy Riot protestavam contra a ilegitimidade das eleições. Pediram desculpas às fiéis da igreja que se sentiram desrespeitadas, mas negaram-se a assumir culpa e fechar acordo com a promotoria. Uma das integrantes da banda disse o que soa até óbvio: “Estou considerando isso como o início de uma campanha autoritária e repressiva do governo que procura dificultar a atividade política e criar um sentimento de medo entre os ativistas políticos”.
O julgamento, que durou vários dias, foi um show de horrores. A defesa das integrantes da banda foi proibida de convocar figuras importantes. E uma das promotoras chegou a dizer que o feminismo é um pecado mortal para a igreja e que as moças incentivavam o lesbianismo (outro pecado mortal, suponho). O próprio juiz argumentou que o feminismo estaria causando ódio religioso (como se uma das bases ideológicas da religião cristã não fosse o ódio às mulheres). Um outro promotor queria que as Pussy Riot fossem condenadas a sete anos de prisão. O advogado de defesa declarou: “Mesmo nos tempos soviéticos, nos tempos de Stalin, os julgamentos eram mais honestos do que esse”.
Uma das integrantes afirmou que, mesmo que elas estejam atrás das grades, ainda são mais livres que as pessoas que têm suas ideias eternamente censuradas. Sim, gente, censuradas. É incrível que o pessoal grite “Censura!” quando feministas protestam contra alguma piadinha inocente ou comercial inofensivo dos machistas que dominam a mídia. Mas pelo jeito não é censura que a mídia só abra espaço para CQCs, Pânicos, Pondés, Rafinhas, Gentilis. Ou você conhece muitos programas feministas na televisão? Muitas colunas feministas nos jornais? (participe da Marcha Contra a Mídia Machista que ocorrerá no próximo sábado, 25/8, em várias cidades).
Acho que não resta muita dúvida que estamos no meio de um backlash, uma reação conservadora às conquistas das mulheres. Aqui no Brasil, o início dessa reação mais forte aconteceu no segundo turno das eleições presidenciais, quase dois anos atrás. O debate totalmente unilateral sobre aborto, sempre uma condenação de cunho religioso, deu fôlego para que setores religiosos dos mais conservadores pressionassem o governo desde o começo – uma pressão que um governo que deveria ser diferente aceitou sem espernear.
Nos EUA, os republicanos se aliam cada vez mais à doutrina da extrema direita, culminando na escolha do congressista Paul Ryan para ser vice-presidente do candidato Mitt Romney. Ryan é contra o aborto em todas as situações, inclusive em casos de estupro e risco de vida da gestante, além de ser a favor de investimento zero para campanhas de planejamento familiar. Que um sujeito tão à direita, que quer que o Estado reconheça que a vida começa a partir de um ovo fecundado, seja escolhido para vice em pleno século 21 não é só preocupante, mas também um indício do backlash. De como a fundamental divisão entre Estado e Igreja vem sendo desconsiderada.
Desde já, as três integrantes do Pussy Riot são mártires. Sua luta gerou inúmeros protestos por todo o planeta. Ontem, inclusive, houve um ato de apoio a elas na frente da embaixada russa, em Brasília, e hoje a Marcha das Vadias SP saiu em passeata por elas. Outras manifestações virão, ainda mais agora que elas foram condenadas a inacreditáveis dois anos de prisão por vandalismo. Melhor ignorar a ação  do Femen, que ontem serrou com motosserra uma cruz que parece ser um monumento em memória das vítimas de Stalin. Há manifestações menos provocativas e mais eloquentes que esta que vem de um grupo que, pra mim, está sob suspeita.
Kathleen Hanna, uma das fundadoras do famoso grupo riot grrrl Bikini Kill, nos anos 90, deu uma excelente entrevista apoiando o Pussy Riot e dizendo que quer tocar com elas. Hanna defende o uso do anonimato e de máscaras de esqui (as Guerrilla Girls, que protestam contra o machismo nas artes, cobrem seus rostos com máscaras de gorila) não só como uma forma de não perder o emprego, mas também de não ter uma líder. E declara: “Espero que isso [a prisão da banda] não faça mais mulheres terem medo. Espero que isso faça mais mulheres prontas pra lutar”.
É isso. Que as Pussy Riot inspirem todas as meninas do mundo. Vivemos tempos conservadores, é verdade. Mas somos fortes, somos muitas. Vamos ao combate.
Assine a petição #FreePussyRiot!
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