terça-feira, 11 de setembro de 2012

A turbulenta relação do Brasil com a Corte de Direitos Humanos da OEA


  10 DE SETEMBRO DE 2012


Mapa da obra da usina
Como governo brasileiro mudou sua postura em relação ao tribunal, sobretudo depois do episódio da condenação pela construção da Usina de Belo Monte
Por Rachel Duarte,  no Sul 21

Críticas de vários países latino-americanos escondem um jogo político que ameaça a existência e eficácia da maior e mais antiga organização internacional das Américas, a Organização dos Estados Americanos (OEA). Na linha de frente desta articulação, unindo interesses de Equador, Venezuela e Estados Unidos está o governo brasileiro, a serviço também dos interesses econômicos ligados a construção da Usina de Belo Monte. A afirmação é da professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), Deisy Ventura. “Alguns atribuem à postura da presidenta Dilma Rousseff, que se considera a mãe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – e a Usina de Belo Monte é a menina dos olhos deste programa. Eu creio que são interesses mais profundos”, afirmou, em entrevista telefônica ao Sul21.
Presidente da Comissão de Cooperação internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e ex-consultora jurídica da Secretaria do Mercosul, a doutora em direito internacional avalia que um dos maiores problemas causados neste processo é o risco de enfraquecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, composto pela Comissão e pela Corte Interamericana. “Eles dizem que estão agindo para valorizar o Sistema, quando fazem exatamente o contrário. Como se trata de um sistema complexo e desconhecido no Brasil, esta distorção pode passar despercebida e nós perdermos muito do que já conquistamos no Brasil em termos de Direitos Humanos”, defende.
Entre 1998 e 2011, o Brasil foi alvo de 27 medidas cautelares emitidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e acumula quatro sentenças condenatórias, entre elas a do caso da Guerrilha do Araguaia. O poder de fiscalizar os governos e incomodar os estados que violaram ou violam os diretos humanos está sendo ameaçado pela articulação política do governo que enfrenta bem a crise econômica global e sediará a próxima Copa do Mundo. “O Brasil está na moda e se encoraja para fazer isso. A conjuntura favorece a não trazer nenhum dano político com esta atuação junto a OEA”, avalia a professora.
Com quais elementos a senhora trabalha e que informações dispõe para afirmar que o Sistema Interamericano está sob ataque?
Deisy Ventura – Os estados devem se reunir neste semestre e até onde eu sei as posições se mantém as mesmas e são bastante ambíguas. Os estados falam que querem fortalecer o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, quando, na verdade estão se articulando para o contrário. Todos nós, defensores do SIDH, tememos que, por se tratar de um sistema complexo e pouco conhecido no Brasil e com toda esta hábil distorção sobre o que está realmente acontecendo, passe despercebida uma mudança no sistema, em que percamos muito do que já conquistamos em termos de Direitos Humanos.
O que efetivamente está em jogo por trás desta ameaça ao SIDH?
Deisy Ventura- É difícil falar sobre isso porque as propostas são aparentemente técnicas. A grande preocupação do Brasil é com as medidas cautelares que podem ser expedidas pelo SIDH aos países, obviamente devido ao caso da Usina de Belo Monte. Eles querem restringir os poderes do sistema. Basta olhar o discurso do Brasil na proposta que ele apresentou. Eles pedem para tornar mais claras as razões para se adotar medidas cautelares. Mas, se analisarmos, isso prejudica a expedição de medidas a pequenos grupos. Por exemplo, como justificar cada um dos beneficiários dos grupos indígenas atingidos com a construção da Usina de Belo Monte? Então, são propostas técnicas, mas que trazem efeito políticos extremamente impactantes. Mas o mais absurdo, para mim, é a capacidade de articulação do Brasil para com outros estados, compondo interesses para uma atuação coletiva. O Equador está preocupado com o capítulo 4, que trata sobre a Liberdade de Expressão e quer retirar da Comissão de Direitos Humanos a competência sobre isso. E, com isso, provavelmente vai apoiar o Brasil na derrubada da competência da CIDH sobre Medidas Cautelares em troca do apoio brasileiro na derrubada do capítulo 4. O temor que temos é que cada país passe a querer tirar da CIDH aquilo que lhe incomoda. Se isso acontecer, não sobrará muita coisa. Incomodar é o papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, isto é que está sendo a grande incompreensão dos estados.
Qual a importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos?
Deisy Ventura – A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos sempre tiveram papel importante no Brasil, como na criação da Lei Maria da Penha. O Brasil nunca tinha reagido desta maneira ao Sistema. Era compreendido pelo governo brasileiro que o SIDH era algo positivo e que serve de apoio ao estado brasileiro. A maior parte das demandas da SIDH está relacionada às questões que são de competência dos estados federados. Por exemplo, a segurança pública e a situação do sistema carcerário. Para o Brasil, cumprir as decisões da CIDH e as recomendações da Comissão, fazia acordo com os governos estaduais, como no caso da prisão Urso Branco (Rondônia). Lá foi feito acordo com Defensoria Pública e o governo do estado para o cumprimento da sentença. Então, se o governo federal está comprometido mesmo com os direitos humanos o SIDH se torna um grande aliado. Auxilia na cobrança sobre os governos estaduais que estão violando direitos. É justamente para provocar tensão e incomodar os governos que foi criado o Sistema. É para constrangê-los. Se eles não disserem alguma coisa em âmbito internacional, ficam constrangidos. O Brasil vinha tentando cumprir cada vez mais as sentenças que recebeu e buscando dar respostas à comunidade internacional, como no dificílimo caso Araguaia. Nos aspectos em que o governo não fosse ter enfrentamento com o STF, ele vinha se esforçando claramente para cumprir a sentença. De repente, há uma ruptura desta linha. Isto preocupa.
Seu reconhecimento ao esforço do governo brasileiro no caso Araguaia está baseado na criação da Comissão da Verdade? Ela não será de caráter punitivo aos torturadores, acreditas que teremos uma verdadeira reparação?
Deisy Ventura – Acho que o esforço para cumprir a sentença da Guerrilha do Araguaia é perceptível. Vejo notícias quase diárias sobre iniciativas do governo federal quanto ao tratamento psicológico às vítimas, dezenas de eventos da Comissão Nacional de Anistia para resgate da memória e debates sobre a justiça. Os grandes problemas no cumprimento da sentença são a busca dos restos mortais no Araguaia e a impunidade dos torturadores. Neste ponto, infelizmente, o governo brasileiro não consegue avançar. Mas nem por isto acusou ou atacou o SIDH. Ao contrário, declara sempre que está cumprindo a sentença. Sobre a Comissão Nacional da Verdade, seus membros têm declarado que remeterão os resultados do trabalho ao Ministério Público Federal. Se o fizerem, e se o Judiciário respeitar o princípio da convencionalidade e cumprir a decisão da Corte Interamericana, sem dúvidas pode haver efeitos sobre a impunidade.
Então, Belo Monte foi decisivamente o divisor de águas na postura do governo brasileiro para com o SIDH?
Deisy Ventura – Sem dúvida. Sem dúvida nenhuma. O próprio Brasil admite isso. No começo, o Brasil tinha dificuldades de responder as recomendações da Corte. Quanto mais a democracia foi se consolidando no país, mais o Brasil foi se preocupando em atender às exigências do Sistema Interamericano. Havia uma gradativa preocupação em atender ao máximo as sentenças. Estávamos em um caminho oposto ao atual. Belo Monte foi algo impressionante. Surpreendeu negativamente a todos. Alguns atribuem essa mudança à postura da presidenta Dilma Rousseff, que se considera a mãe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e tem a Usina de Belo Monte como menina dos olhos deste programa. Mas eu considero que se trata de razões mais preocupantes. Os mecanismos de controle internacional de direitos humanos começaram a tocar em questões que comprometem interesses econômicos muito poderosos. Pode ter sido uma maneira de determinados setores dizerem para não nos metermos nos interesse econômicos porque eles não irão tolerar. É mais fácil dizer que é a personalidade da presidenta. Eu considero que é algo bem mais profundo.
O Brasil está liderando este processo de enfraquecimento do sistema, servindo aos interesses do desenvolvimento econômico. Quais os danos políticos deste protagonismo?
Deisy Ventura – É um momento em que o Brasil está muito bem internacionalmente e está na moda, com o fato de sediar grandes eventos. Enfrenta com altivez a crise econômica, enquanto o restante do mundo desenvolvido encontra inúmeras dificuldades. Acredito que diante disso, o governo brasileiro se sinta blindado, fortalecido para tomar este tipo de atitude. E outro fator que encoraja o Brasil é o fato de que há países da América do Sul com posições muito mais graves do que as do Brasil. O presidente da Bolívia, Evo Morales defendeu em discurso de abertura na última Assembleia Geral dos Estados da OEA, realizada na Bolívia, o fim da OEA. Ele acenou com esta ameaça. É um contexto que deixa o custo político para o Brasil bem baixo.
Quais outros países estão aliados com o Brasil nesta articulação de enfraquecimento do SIDH?
Deisy Ventura – Os Estados Unidos apoiam a proposta do Brasil de retirar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos as competências para adotar medidas cautelares. Isto ocorre porque, embora os EUA não façam parte do sistema de proteção aos direitos humanos, a Comissão dirige anualmente Medidas Cautelares aos EUA, com base na Carta da OEA e na Declaração Americana de DH.
O Itamaraty negou as informações solicitadas pela ONG Conectas Direitos Humanos, com base na Lei de Acesso à Informação, sobre a Missão Brasileira na OEA, em Washington. Que informações foram negadas?
Deisy Ventura – Eles pediram os telegramas da missão do Brasil em Washington e não estão conseguindo. Já foram para a CGU, nem é um assunto do Itamaraty mais. Todos os pedidos não tiveram sucesso. A Conectas diz que, se o governo brasileiro não tem a intenção de enfraquecer o Sistema Interamericano, então que mostrem os telegramas. Foram catalogados com informações reservadas. Isto é um assunto questionável agora que vigora a Lei de Acesso à Informação. O ministério das Relações Exteriores respondeu a Conectas que apenas 7,5% dos documentos do Itamaraty são reservados. Achamos curioso um número tão baixo e esta impossibilidade de abrir telegramas. A Conectas irá pedir a lista de documentos para saber que informações são sigilosas. Eu acompanho isso de longe. Eles até podem falar melhor, eles estão levando adiante esta história.
O SIDH está enfraquecido estruturalmente?
Deisy Ventura – Ele realmente precisa ser fortalecido. Mas de verdade, não com manobras. São poucas pessoas trabalhando e o orçamento do SIDH é muito modesto. É menor que 5% do Orçamento total da Organização dos Estados Americanos. Isto mostra que para a OEA o SIDH não tem importância nenhuma, é só uma incomodação mesmo. Precisaria aumentar o pessoal e os recursos. Aumentar a periodicidade das reuniões, restrita hoje a poucas sessões anuais. Deveria ser um sistema prestigiado. Se olharmos para a Europa, que tem um grau de respeito ao estado de direito e a democracia muito mais maduro que o continente latino-americano, lá há um sistema muito eficiente. Por quê? Porque ser um regime democrático não é salvo-conduto para ninguém. Não é porque um país é uma democracia que ele deixa de correr o risco de cometer violações aos direitos humanos — por vezes, graves. Na Corte Europeia, países como França, Alemanha e Reino Unido, por exemplo, cumprem à risca as sentenças. Muitos são frequentemente condenados. Eles têm a compreensão de que nenhum estado é infalível. A existência por si só de um regime democrático deve ser saudada, mas não garante a mudança cultural e política da violação de direitos humanos. Não se muda a mentalidade das polícias por decreto. Portanto, os mecanismos de controle internacionais são fundamentais, inclusive para prevenir que estas violações graves aconteçam. Para que ditaduras militares como as ocorridas no Brasil, Argentina, Chile e Peru não se repitam. A presidenta Dilma Rousseff não seria jamais Presidenta da República se não tivesse havido a garantia dos direitos que acabaram com a ditadura militar no Brasil. Quem chegou ao poder graças a estes direitos deveria ter uma maior responsabilidade em relação a eles. Enfraquecer o SIDH significa que, se um dia voltarmos a um sistema ditatorial no país, nós não teremos a quem recorrer. Os casos de Honduras e Paraguai ficaram por isso mesmo porque não temos um organismo internacional capaz de impedir golpes e rompimentos da ordem democrática, como há na Europa. Como disse o Boaventura de Souza Santos: há uma cegueira do governo federal em agir muito no interesse imediato e não se dar conta da preservação destes mecanismos para garantia diante das violações da ordem constitucional.
O Brasil conseguiu eleger o advogado Roberto Caldas como juiz da CIDH. Qual a importância disso?
Deisy Ventura – O Brasil manteve a candidatura do Roberto Caldas e felizmente ele foi eleito na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Espero que tenhamos em breve a audiência sobre o caso Araguaia. Mas, infelizmente, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi retirada a candidatura do ex-secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. É nocivo para o Brasil, pois é importante ter representatividade nestes órgãos. Os juízes da Corte dependem da denúncia da Comissão para receber os casos de violação que ocorrem em âmbito internacional.
Como a senhora avalia, de modo geral, as consequências do período de exceção no regime democrático brasileiro atual? Que aspectos ainda não foram superados?
Deisy Ventura – A principal herança dos regimes de exceção, particularmente da ditadura civil-militar de 1964-1985, agravado pelo atual modelo de inclusão social por intermédio do consumo, é a despolitização nossa de cada dia. A falta de consciência política — no sentido de ausência de busca do interesse coletivo, e não apenas defesa do interesse pessoal imediato — e a escassa participação das pessoas nos processos decisórios é o que permite a manutenção de um Estado burocrático, violento e ineficaz.
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