quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Diário da Bolívia 2012 (2)


Quase nunca se chega a La Paz diretamente. O deslocamento do eixo econômico mais dinâmico para Santa Cruz de la Sierra faz com que praticamente todos os voos (alguns passam por Cochabamba) parem primeiro na capital dessa província, com troca de aviões para ir a La Paz.

Essa parada serve para o contraponto entre uma região quente e o frio da capital, mas também para a mostra de uma província que se pretende branca, não indígena, mais vinculada ao Brasil do que ao resto da Bolívia – considerada por eles improdutiva, que viveria às custas do Estado, dos impostos que eles pagariam, um país corrupto. Essa visão alimentou a chamada Meia-lua, o conjunto das províncias orientais, que pretendiam até mesmo separar-se do resto do país, dinâmica pela produção de soja (transgênica), que passou a ter um papel essencial (como em vários outros países do continente) com o desmantelamento das grandes minas de estanho, que tinham sido o setor mais dinâmico da economia até a chegada de governos neoliberais, que mataram o cliente junto a doença, desarticulando a produção mineira, por considerá-la ineficiente.

A uma hora de avião se chega a La Paz e a primeira impressão já é impactante. Chegar a 4 mil metros de altura – se diz que os aviões não aterrizam, apenas estacionam – implica desde uma visão de cima da capital, até o ar rarefeito. O aeroporto fica em El Alto, cidade plebeia, de indígenas vindos de outras zonas do país, que mantem seus hábitos em meio a um conjunto de atividades, que vão da pequena produção a todo tipo de comércio, em condições de pobreza. A cidade foi um núcleo duro de resistência na luta dos indígenas pelo governo, aparecendo para a direita de La Paz como um cinturão que não apenas cerca a capital, mas a vigia desde cima. A visão que se tem de El Alto desde La Paz é assustadora para quem a pensa como um exercito popular que a qualquer momento poderia descer para a cidade – como o fizeram, armados com paus e pedras, tantas vezes.

Pela altitude, os amigos logo aconselham:

- Comer pouquinho
- Andar devagarzinho e
- Dormir sozinho.

Mesmo obedecendo todos os preceitos, é indispensável tomar regularmente chá de coca e/ou mascar a folha, que as índias carregam como colares em torno do pescoço e de que podemos nos servir, como energético, para suportar a raridade do ar. Ainda assim, subir escadas ou andar depressa faz com que sintamos a falta de ar, a que nos acostumamos.

(Para eles, como diz o Evo, o natural é viver e jogar futebol nessa altura ou mais alto ainda, como ele costuma fazer.)

Claro que a impressão mais marcante é a composição étnica dos bolivianos – 2/3 se consideram indígenas, ainda que só agora tenham, pela primeira vez, um presidente indígena -, com suas fisionomias que fazer com que quase todos se pareçam ao Evo. As indígenas gordas, que ainda assim equilibram chapéus tipo Carlitos na cabeça, vestindo orgulhosamente suas coloridas roupas indígenas.

Quando o Evo ia tomar posse pela primeira vez, elas vieram de longe, com suas vassouras, limpar a praça Murillo, onde fica o Palácio Quemado, palácio presidencial onde um deles ia entrar, pela primeira vez, como presidente. Me lembro de uma delas declarando à imprensa estrangeira na noite da eleição do Evo: “Antes vocês vinham porque nós derrubávamos presidentes. Agora vieram porque nós elegemos presidente a um de nós.”

Apesar dos bairros burgueses – como tem todas as grandes cidades latino-americanas -, La Paz é indiscutivelmente uma cidade pobre, com uma grande maioria pobre da população, a quem até há pouco foram negados direitos básicos, sendo além disso discriminados por uma elite branca, que sempre fez rodízio do poder entre seus partidos às custas dos indígenas.

A própria esquerda tradicional boliviana não os considerava como indígenas. Com sua visão economicista, os tomavam como camponeses, porque viveriam do trabalho na terra, importando conceitos europeus – do Marx, no XVIII Brumário -, como se eles fossem pequenos proprietários rurais. Eram considerados assim, aliados vacilante da classe operária mineira, de quem deveriam receber as orientações politicas corretas.

Foi Alvaro Garcia Linera no seu notável artigo sobre Indigenismo e marxismo. (Nota: in A potencia plebeia, Alvaro Garcia Linera, Boitempo Editorial), quem desfez esse equívoco. Demonstrou como a identidade indígena é determinante neles, que eles não produzem como pequenos produtores rurais, mas em comunidades. Esse raciocínio foi fundamental para que os movimentos indígenas passassem a ser os sujeitos do processo politico boliviano.

Como as cidades andinas, se vë sempre ao longe a cordilheira, no caso de La Paz, o Illimani, um vulcão calminho, que impressiona pela imponência, com seus quase 6500 metros de altura. Nesta cidade de alturas, os indígenas caminham, sobem e descem de El Alto, onde vive grande parte deles. São gente boa, humilde, mas orgulhosa de suas civilizações, hoje orgulhosa da Bolívia de Evo.
Postado por Emir Sader às 07:40

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