domingo, 16 de setembro de 2012

O reverendo que odeia os muçulmanos e se tornou um problema para os EUA


O reverendo que odeia os muçulmanos e se tornou um problema para os EUA

O detonador da onda de fúria antiocidental foi a difusão pela internet de um vídeo que mostra o profeta Maomé em diversas situações como mulherengo, homossexual e estúpido. O vídeo é a promoção de um filme que quase ninguém viu, uma peça de propaganda contra a religião muçulmana e que teria estreado há algumas semanas nalifórnia sem que ninguém tivesse prestado muita atenção. Até que chegou o reverendo Terry Jones. O artigo é de Santiago O’Donnell.

Bombardear consulados e matar embaixadores é uma atitude que deve ser condenada. Não importa o país, não importa a razão, assassinar é péssimo. E fazê-lo assaltando um consulado piora as coisas, porque violar o princípio da imunidade diplomática degrada a convivência entre os países. Já sabemos disso. A questão é o que fazemos com o reverendo.

Praticamente todo o mundo condenou a morte do embaixador Chris Stevens durante um ataque com lança-granadas contra o consulado estadunidense na cidade líbia de Benghazi na terça-feira passada. Condenou-se também o ataque à embaixada alemã na Tunísia e as várias agressões a distintas sedes diplomáticas dos EUA em diferentes países com população muçulmana durante a semana a partir de um novo aniversário da derrubadas das Torres Gêmeas em Nova York. Para além do significado e da história da presença estadunidense e europeia em cada um desses países, o detonador da onda de fúria antiocidental foi a difusão pela internet de um vídeo blasfemo e insultante que mostra o profeta Maomé em diversas situações como mulherengo, homossexual e estúpido. 

O vídeo é a promoção de um filme que quase ninguém viu, dizem que muito bizarro, que é uma peça de propaganda contra a religião muçulmana e que teria chegado a estrear há algumas semanas em algum cinema da Califórnia sem que ninguém tivesse prestado muita atenção. Até que chegou o reverendo.

O reverendo Terry Jones é um pastor anglicano de Gainesville, Floriada, que odeia os muçulmanos. Além disso, é um especialista em chamar a atenção. A igreja de Jones quase não tem paroquianos. Começou com uns trinta, mas agora que se tornou famoso só lhe restam “talvez doze”, segundo confessou na coletiva de imprensa que concedeu quinta-feira passada, no mesmo dia em que seu embaixador na Líbia voltava ao país em um caixão. Ele não tem paroquianos, mas o que faz é seguido por milhões de pessoas em todo o mundo. 

Há dois anos ganhou espaço na mídia ao declarar o 11 de setembro como “Dia do julgamento de Maomé” e, para marcar o aniversário da data, anunciar uma jornada de queima do Corão. Os meios de comunicação caíram em massa sobre a igreja para fotografar o pastor com cara de mau e cartazes cheios de insultos. Todo mundo começou a pedir-lhe que não queimasse os livros, até presidentes de vários países. Uma onda de protestos e manifestações varreu o Afeganistão, com um saldo de 11 mortos. Finalmente, às vésperas do 11 de setembro, o comandante em chefe das Forças Armadas dos EUA chamou Jones e pediu-lhe que não queimasse os livros.

O reverendo aceitou, mas depois mudou de ideia. Em março de 2011 promoveu um “julgamento do Alcorão”, declarando-o culpado de crimes contra a humanidade e queimou uma cópia do livro, tudo devidamente filmado, reproduzido e pronto para consumir. Na época, já era ídolo de todos os grupos neonazistas do mundo e começava a formar-se uma rede na internet, de contatos que reproduziam as declarações incendiárias do reverendo e as faziam chegar aos países muçulmanos, disfarçadas de denúncia, para causar o máximo impacto. 

O vídeo da queima do Corão chegou ao presidente afegão Hamid Karzai, que o denunciou em um discurso, provocando outra onda de protestos. Na cidade de Mazar i Sharif, foi atacado um posto de assistência humanitária das Nações Unidas com um saldo de trinta mortos. O reverendo, como de costume, disse que não tinha nada a ver com isso e que a culpa era dos muçulmanos que são muito violentos.

Há três meses o reverendo voltou às suas peripécias e se juntou com uns vinte seguidores para queimar cópias do Corão em frente de sua igreja. Não teve êxito. Os vizinhos o vaiaram, o departamento de bombeiros da cidade de Gainesville impôs-lhe uma multa de 271 dólares por provocar um incêndio sem estar autorizado e, o pior para ele, a notícia só ganhou espaço na imprensa local. Então, ele decidiu dobrar a aposta e, em maio, gerou um pequeno alvoroço, quando armou uma forca no jardim de sua igreja e enformou uma silhueta de papel de Obama, primeiro presidente negro dos Estados Unidos, como se fosse um linchamento dos tempos de Jim Crow. 

A jogada de efeito causou uma boa dose de indignação, mas a figura de papel segue enforcada no jardim do reverendo. Embora o reverendo tenha dito que havia enforcado Obama simbolicamente por ele não denunciar os muçulmanos, a notícia não gerou muito interesse fora dos Estados Unidos. Até que chegou o vídeo.

O reverendo não parou de promovê-lo e difundi-lo pela internet toda a semana prévia ao 11 de setembro e aproveitou para exibi-lo em sua igreja como parte da comemoração de seu “Dia do julgamento de Maomé”. Assim, o vídeo chegou primeiro à imprensa egípcia e daí para o mundo.

A onda de indignação não tardou a chegar. Em alguns lugares foi mais forte, em outros menos, segundo as circunstâncias e os interesses em jogo. A grande maioria dos protestos foi pacífica, mas alguns resultaram violentos e até mortíferos em cidades arrasadas pela guerra como Benghazi ou Khartoum. As delegações diplomáticas foram os alvos escolhidos, sobretudo as dos Estados Unidos, mas também algumas europeias. No Líbano foi atacado um McDonald’s. Em muitos outros lugares a coisa não passou da queima de bandeiras.

Segundo informou a Casa Branca, depois do ataque ao consulado na Líbia, horas antes de ocorrer o ataque, o secretário de Defesa, León Panetta, havia falado com o reverendo para pedir-lhe que deixasse de promover o vídeo. “Não estou fazendo outra coisa que exercer minha liberdade de expressão”, respondeu Terry Jones quinta-feira, em uma coletiva de imprensa em sua igreja, armado como de costume com um revólver de grosso calibre na cintura.

O tema é o que fazer com o reverendo. Até agora, o único castigo que recebeu, além da multa dos bombeiros, foi a retirada de descontos tributários de sua igreja depois que descobriram que ele usava o galpão dos fundos para vender móveis usados pela e-Bay. Esse tipo vive em um país com uma tradição muito forte de liberdade de expressão, onde é muito difícil censurar atos e discursos, ainda que eles venham acompanhados de fortes conteúdos de violência simbólica. Nos Estados Unidos, há décadas, os jovens advogados negros e judeus da Associação de Liberdades Civis (ACLU) defendem da censura estatal a membros da Ku Klux Klan e do Partido Nazista, sob o lema “odeio o que dizes, mas daria minha vida para que pudesse dizê-lo”.

É claro que a liberdade de expressão tem limites e nos Estados Unidos esse limite ficou marcado por uma famosa decisão de Oliver Wendell Holmes, em 1919, quando disse: “Se alguém grita ‘fogo!’ em um cinema, pode provocar uma tragédia”. Ou seja, o limite é uma linguagem falsa e perigosa que pode provocar no curto prazo uma ação ilegal, como pode ser, no caso do cinema, um estouro. Com todas as idas e vindas na jurisprudência ao longo do século no que diz respeito a segredos de Estado, doutrina de real malícia, Lei Patriota, etc., etc., a Justiça e a sociedade estadunidenses tendem a privilegiar o direito à livre expressão sobre todos os outros, como o direito à privacidade ou à segurança.

É difícil provar uma relação direta entre o reverendo e a morte do embaixador. É difícil acusar o reverendo de algo, obrigá-lo a calar a boca, com as leis dos Estados Unidos. Já nem se trata do que diz, mas sim do que reproduz e promove. Mas o reverendo está cheio de ódio e não vai parar na boa vontade. Se deixam ele fazer o que faz e seguem dando atenção a ele, vai seguir provocando até que exploda a próxima tragédia.

Tradução: Katarina Peixoto

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