20/09/2012 | Sâmia Gabriela
Teixeira
Texto
publicado originalmente no Boletim Al Thawra
A
limpeza étnica sistemática de 1948 na Palestina, segundo Ilan Pappé, foi o
principal acontecimento “constitutivo de sua história moderna”. Com o início da
prática de limpeza de Israel, milhares de palestinos, expulsos ou
aterrorizados, se refugiaram no Líbano em busca de abrigo e segurança. Segundo
Pappé, tal limpeza foi praticamente eliminada da memória e consciência coletiva
global, tornando, portanto, o direito à memória uma das ferramentas mais
importantes para a resistência e luta do povo palestino.
Quando
em 1982 Israel invadiu o Líbano em busca da OLP (Organização pela Libertação da
Palestina), na época presidida por Iasser Arafat, o estado sionista encontrou
então a situação perfeita para ocupar o país e aliar-se a um grupo fascista
rumo ao poder. Bashir Gemayel, então presidente eleito do Líbano e carismático
líder cristão no país, defendia uma política alinhada à dos Estados Unidos. Em
entrevista concedida nos anos 80, ao ser questionado se era ou não aliado de
Israel, Bashir explica que sua relação com o estado sionista não é permanente,
e que, politicamente, alia-se a quem lhe for conveniente “tomando o máximo de
vantagens e benefícios para o balanço de poder e o equilíbrio de poderes no
Líbano”. Seu assassinato foi então o estopim para que um massacre de inocentes,
sobretudo de palestinos refugiados, acontecesse com a ajuda prática de Israel.
Mas
os planos de tal crime de guerra foram arquitetados durante encontros
realizados no dia 15 de setembro, com o então Ministro da Defesa de Israel,
Ariel Sharon, e líderes de uma mílicia libanesa falangista cristã ligada ao
governo de Bashir, Elie Hobeika, Fadie Frem e Zahi Bustani. Nesse encontro,
Sharon autorizava as tropas israelenses, responsáveis pelo cerco aos campos
libaneses, a permitirem a entrada dos falangistas.
O
historiador árabe Fawwaz Traboulsi descreve em seu livro História Moderna do
Líbano os interesses firmados antes da morte do presidente Bashir, que planeja
colocar em prática uma “solução radical” para equilibrar demograficamente o
Líbano, “provocando um exôdo geral da população palestina” que, segundo ele,
constituía “um povo em excesso” na região. Junto a responsabilidade destinada a
Ariel Sharon e ao governo cristão libanês, o estado norte-americano também teve
a sua participação ao retirar todas as suas forças de paz, responsáveis pela
supervisão da saída da OLP, e ao evadir os destacamentos militares da região e
pressionando, indiretamente, a retirada de forças francesas e italianas do local.
Na
prática, os ataques aos campos de Sabra e Chatila podem ser definidos como um
massacre de Deir Yassin revisitado, com as mesmas características crueis e de
limpeza étnica executadas durante e a partir da Nakba palestina. O massacre
deixou cerca de 4.000 pessoas entre mulheres, crianças e idosos mortas. Muitas
delas, decapitadas, mutiladas ou desfiguradas.
O
jornalista Odd Karsten Tveit, um dos primeiros a entrar nos campos de
refugiados após o massacre, descreveu em relato para a TV Al Jazeera cenas de
horror. Em um primeiro momento, visitou um hospital e encontrou um jovem garoto
ferido nas pernas e no quadril, e ele gritava “mataram minha mãe e meu pai”.
Depois, um grupo de palestinos, “usando kuffyas”, mostrou o que até então se
tratava apenas de rumores de um massacre.
A
cena real de uma matança: corpos e corpos empilhados por estreitas vielas, e
multidões aos prantos, buscando por sobreviventes ente os escombros. Tantos
mortos, inocentes, esquecidos pela Síria e Jordânia, abandonados, no meio do
jogo político sujo de Israel com os Estados Unidos. Apoiados por Washington, os
soldados israelenses cometeram as mais diversas atrocidades. O massacre acabou
com diversos vilarejos libaneses e muitos acampamentos de refugiados
palestinos. Um soldado israelense, que atuou no massacre, Ari Folman, em seu
documentário relembra o genocídio no Líbano, as execuções sumárias e a noite em
Beirute com o céu iluminado por bombas de fósforo branco e outras de
fragmentação. Quando amanheceu, viu pelas ruas mães e esposas de palestinos
mortos, que choravam sobre os escombros e ruas encharcadas por sangue. O então
primeiro ministro de Israel, Menachem Begin, já possuía um extenso currículo de
matanças executadas contra palestinos. Ele era o líder sionista da Stern Gang,
grupo terrorista responsável pela chacina em Deir Yasin.
Reflexos
do massacre no Brasil
A
representação da OLP em território brasileiro instalou-se no ano de 1979 e, em
1982, com o massacre dos palestinos no Líbano, realizou, com diversas
organizações estudantis, sindicatos e partidos políticos, grandes passeatas em
protesto ao genocídio dos palestinos em São Paulo. Mohamed Al Kadri descreve
que as manifestações contaram com dez mil pessoas pedindo o fim dos massacres e
a Palestina Livre.
Elie
Hobeika, um dos responsáveis junto com Ariel Sharon pelos massacres de Sabra e
Chatila, em 1985 assumiu o posto de chefe da milícia cristã, e pouco tempo
depois alinhou o grupo aos interesses da Síria. Em janeiro de 2002, Hobeika
morreu em um atentado a bomba, e sua morte apontou responsáveis como a Síria e,
principalmente, Israel. Isso pois pretendia depor em Bruxelas em um processo de
vítimas do massacre. Ele seria uma importante testemunha com relatos que
prejudicariam o governo israelense.
No
mesmo ano, meses depois, o empresário libanês Mikhael Youssef Nassar e sua
esposa foram assassinados em um posto de gasolina da avenida Juscelino
Kubtischek, no Itaim Bibi, em São Paulo. Foram mortos com tiros de uma pistola
com silenciador e munição brasileira. O libanês era conselheiro de Hobeika e,
depois dele, seria a segunda testemunha mais perigosa a depor contra os
organizadores e executores do massacre de Sabra e Chatila. Além disso, era
filho do comandante do famigerado Exército do Sul do Líbano, força aliada de
Israel durante a guerra civil. Sobre ele ainda recai a suspeita de tráfico de
armas e negócios ilícitos com áreas em vias de desapropriação para rodoanel. O
motivo de seu assassinato nunca foi esclarecido pelas autoridades brasileiras
mas há grandes possibilidades que seus executores sejam os mesmos de Elie
Hobeika. Tal fato reforçou e, de certa maneira, confirmou a culpa de Israel
pela morte de milhares de civis palestinos e libaneses.
O
massacre 30 anos depois
Apesar
de tal evento ser configurado como uma violação grave diante de um Tribunal
Penal Internacional, nenhuma investigação ou condenação foram diretamente
feitas contra o governo do Líbano. E mesmo com a acusação formal por meio de
inquérito contra Ariel Sharon, o ministro da defesa não foi preso nem deixou o
governo, somando este fato trágico da história da Palestina ocupada a tantos
outros ignorados por quaisquer organizações ou nações da comunidade
internacional.
O
genocídio contra o povo palestino e as violações dos direitos humanos e das
leis internacionais continuam fazendo parte da política assassina de Israel.
Segundo a ANURP – Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos, mais de
500 mil palestinos buscaram refúgio no Líbano e não são considerados pelo
governo libanês como moradores permanentes. Vivem isolados em guetos, como
cidadãos de segunda classe. Somente em 2010, por exemplo, tiveram o direito ao
emprego formal e, ainda assim, sem poder ocupar qualquer cargo.
Um
analista sênior da ONG humanitária Human Rights Watch, Nadim Houry declarou que
“os palestinos que vivem no Líbano têm as piores condições de vida de todo o
Oriente Médio”, sem direitos civis e acesso a serviços públicos como saúde e
educação. Fica claro que, além de genocídios planejados e executados por
Israel, Estados Unidos e aliados, os palestinos sofrem todos os dias com o
apartheid promovido dentro da Palestina ocupada e nos campos de refúgio
espalhados pelo mundo. Sabra e Chatila é perpetuada e velada, então, sob ações
de exclusão étnica, omissão e abandono dos palestinos.
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