segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A FORMAÇÃO DO CAPITALISMO DEPENDENTE NO BRASIL


Tal como qualquer profissional, o economista é também um homem político. A imagem de um técnico que propõe sem tomar partido e deixa a decisão ao político não passe de uma ficção: que economista deixa de ter em consideração os objetivos políticos e as relações de força ao fazer um projeto? Como todo profissional, o economista deve assumir a dimensão política da sua atividade.

Ladislau Dowbor
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Introdução
“O desenvolvimento econômico, reconhecemo‑lo cada vez mais, não é um problema técnico, mas sobretudo político”: Rodolfo Stavenhagen, Les Classes sociales dans les sociétés agraires, Paris, Anthropos, 1969, p. 21.
As principais medidas econômicas indispensáveis ao desenvolvimento do Brasil são conhecidas: trata‑se, antes de tudo, de reconverter a indústria, a fim de servir às necessidades do povo e não às dos grupos internacionais, e de reconverter a agricultura, para que a terra alimente a população que a habita.  Num país onde a agricultura produz para exportar antes de satisfazer as necessidades básicas da população que permanece na miséria e onde a indústria produz para o consumo de luxo antes de produzir o necessário, não há grandes mistérios quanto às medidas econômicas fundamentais necessárias pare vencer o subdesenvolvimento.
O verdadeiro problema reside na sua aplicação: a reconversão da agricultura exige a ruptura da estrutura de poder no campo e na cidade e implica, por conseguinte, uma revolução agrária. A reconversão da indústria exige que esta seja submetida à autoridade do povo, o que não é viável sem a nacionalização das unidades estratégicas e dos estabelecimentos financeiros.
Ambas exigem o movimento de forças sociais capazes de levar as reformas em frente e interessadas em fazê‑lo.
A dificuldade não reside, pois, na "descoberta" de uma política econômica apropriada, mas na sua aplicação. Não se trata de encontrar o caminho, trata‑se de abri‑lo. Noutros termos, a busca de soluções econômicas leva o economista ao problema político, ao problema do poder e das classes que o controlam.
Assim, tentamos modestamente acrescentar a atividade de militante à atividade científica, em vez de fechar discretamente os olhos sobre a realidade e enveredar pela ciência "pura". Com efeito, não basta encontrar técnicas econômicas, é preciso lutar por estruturas que permitam a sua aplicação. Quantos projetos de alfabetização, de nacionalizações, de reformas agrárias dormem na paz das gavetas, porque os privilegiados, no poder, recusam‑se a pô‑los em prática...
O trabalho que segue não é "econômico" no sentido estrito do termo, pois para além da crítica de um sistema econômico investiga as suas bases de apoio e os seus pontos fracos. Para compreendê‑lo, é claro, mas também para contribuir a pô‑lo em questão.
Não nos parece anticientífico enunciar tão abertamente as nossas posições. Ao contrário, a definição clara das opiniões políticas do autor parece‑nos a melhor maneira de garantir a objetividade científica do trabalho. Basta‑nos como prova a imensa mistificação que impregna as análises do subdesenvolvimento efetuadas por "cientistas" americanos e outros, pretensamente apolíticos.
A problemática que constituiu o nosso ponto de partida é a seguinte: por que a modernização das estruturais e a industrialização do Brasil não levaram à ruptura das estruturas do subdesenvolvimento? Neste sentido, situávamo‑nos na linha das pesquisas atualmente realizadas na América Latina. Um trabalho coletivo que reúne contribuições importantes para a análise da situação na América Latina — Amérique Latine, crise et dépendance — situa o essencial destas preocupações: "A maioria dos diagnósticos formulados sobre a evolução do desenvolvimento latino‑americano, bem como as políticas postas em prática por estes países, tinham como denominador comum uma mesma esperança: estas características 'subdesenvolvidas' tenderiam a ser ultrapassadas à medida que se fossem acumulando as transformações introduzidas nestas nações pelo processo de 'industrialização'.
"Se o considerarmos do ponto de vista estatístico e se o medirmos a partir dos indicadores econômicos convencionais, o esforço de industrialização realizado pela América Latina durante os últimos trinta anos apresenta‑se sob uma luz muito favorável. Não só houve uma importante diversificação do sistema produtivo, mas ainda, à exceção de períodos relativamente curtos, o ritmo de crescimento industrial atingiu taxas altamente significativas.
"Apesar destes fatos, a maior parte dos países latino‑americanos entra na década de 1970 apresentando características estruturais bastante diferentes das que se poderiam esperar do papel que devia desempenhar a industrialização. Admitia‑se como seguro que a apa­rição de novas formas de produção tenderia a difundir os benefícios do progresso técnico, provocando a integração econômica destas sociedades e eliminando o que era descrito como o seu caráter 'dualista'. No entanto, o que vemos em toda a América Latina são novos e graves desequilíbrios internos (setoriais, espaciais e sociais). Pensava‑se também que a diversificação dos sistemas rígidos de estratificação social e a aparição de 'setores médios', sempre como resultado das transforma­ções econômicas, teriam por efeito constituir um apoio ao estabeleci­mento de formas 'democráticas' de governo. No entanto, o que vemos é um novo surto de governos autocráticos e militaristas. Julgava‑se enfim que a industrialização levaria à formação de uma 'burguesia nacional' com vocação hegemônica, interessada em romper as bases agrolati­fundiárias da dominação oligárquica e em promover a emancipação destas nações das relações de subordinação que as ligava aos países de alto desenvolvimento capitalista. Porém, o que vemos são novas e mais graves modalidades de dependência internacional e um acordo perfeito entre as diferentes facções das classes dominantes, no que concerne ao projeto de desenvolvimento. Em suma, o sucesso industrial não mudou fundamentalmente a qualidade da vida social e política na América Latina".[1]
A industrialização relativamente mais avançada no Brasil tende a mostrar alguns destes problemas já mais maduros, favorecendo a sua análise e permitindo descobrir elementos de resposta à questão central: quais são os efeitos da industrialização e da ruptura do esquema clássico da fase de supremacia do modelo primário‑exportador sobre o desenvolvimento?[2]
É a problemática que nos lançou no estudo da formação das estruturas econômicas do Brasil. Querendo compreender a dinâmica atual, a importância da herança dos períodos precedentes e a multi­plicidade das interpretações divergentes forçaram‑nos a concentrar sobre as estruturas em formação durante os séculos precedentes.
Depois de criticarmos, num primeiro capítulo, a transposição de teorias do desenvolvimento aplicadas com poucas modificações à realidade profundamente diferente dos países subdesenvolvidos, passa­mos no segundo capítulo a delinear uma abordagem teórica que rompa com as transposições e permita compreender efetivamente a dinâmica do desenvolvimento brasileiro. Neste sentido, privilegiamos uma constante que constitui, a nosso ver, um fio condutor pare a análise da formação das estruturas atuais: economia extrovertida e complementar, o Brasil jamais pôde criar estruturas econômicas orientadas em função das necessidades internas, integradas e coerentes, e é na análise destas relações de dependência relativamente a economias mais potentes que deve buscar‑se a chave do subdesenvolvimento atual. Os capítulos que seguem constituem uma análise da evolução destas relações de dependência e dos efeitos estruturais sobre a economia brasileira: no capítulo III, analisamos a fase portuguesa, que durou até o início do século XIX; no capítulo IV analisamos a dependência relativamente à Inglaterra; no capítulo V, enfim, abordamos a transição pare a fase atual, caracterizada pela dominação dos Estados Unidos e das multinacionais.
As linhas que seguem têm em parte o caráter de um ensaio teórico e poderão parecer ambiciosas. Na realidade, é preciso levar em conta que a análise do desenvolvimento na América Latina e no Brasil se manteve durante longo tempo no quadro das teorias do desenvolvimento da Europa industrializada, transpostas com poucas modificações para uma realidade cuja dinâmica é profundamente diferente. A falência destes esquemas de análise levou recentemente à formação de uma escola teórica que busca, no quadro do marxismo mas sem transposições mecânicas, o conjunto de conceitos que permitam explicar efetivamente esta realidade.
A busca de novas formas de abordar o problema e de novos conceitos oferece evidentemente bem menos solidez do que a simples "aplicação" de esquemas rodados. Pensamos, no entanto, que estes problemas devem ser abordados, com todas as fraquezas que isto implica, mas sem perder de vista o seu caráter hipotético. A longo prazo, parece‑nos que um certo "flutuamento teórico", inevitável durante esta fase de transição na pesquisa latino‑americana sobre o desenvolvimento, levará a análises mais úteis para as forças progressistas do que a repetição de esquemas ultrapassados.
[1] Luciano Martins (dir.), Amérique Latine, crise et dépendance, Paris, Anthropos, 1972, pp. 8 e 9.
[2] A importância deste debate não se limita à América Latina: numa excelente critica ao "relatório Pearson” da ONU, Samir Amin interroga‑se sobre "o sentido das transformações que exige o desenvolvimento: a) as condições e os limites do capitalismo agrário; b) a dinâmica e os limites da industrialização extrovertida fundada no capital estrangeiro" (Samir Amin, Développement et transformations structurelles, "Revue Tiers Monde”, 1972, 111, pp. 467‑490).

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