segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Indígenas da Amazônia cobram agenda com Dilma e buscam apoio no exterior


Coordenador do Conselho Indígena de Roraima recebe na Espanha o prêmio Bartolomé de las Casas pelos 40 anos de trabalho da associação e denuncia que o reconhecimento da luta dos povos autóctones do Brasil é maior em terras estrangeiras do que no país. Além disso, revela, a burocracia faz com que o financiamento de projetos seja mais fácil com ONGs internacionais do que com o governo federal.

Madri - Na sexta-feira 19 de outubro, o Príncipe de Astúrias Don Felipe de Borbón, herdeiro do trono espanhol, entregou uma medalha ao coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Mario Nicacio Wapichana. A distinção com o prêmio Bartolomé de las Casas foi um reconhecimento as quatro décadas de luta dessa organização criada e mantida por tribos que habitam a floresta.

Não deixa de ser curioso que o representante de uma coroa que 500 anos atrás dizimou grande parte da população indígena da América Latina - o Brasil incluído - hoje renda homenagens a uma entidade que congrega 10 povos autóctones do norte do país.

Mais surpreendente, entretanto, é a constatação do jovem líder de 29 anos: a atenção que recebem de organizações do exterior é fundamental para a segurança dessa população, já que o Estado brasileiro não faz a sua parte

“É muito importante a pressão externa porque no Brasil não temos proteção nenhuma: a polícia, que deveria nos defender, nos bate, o Exército prende indígenas, e os fazendeiros que sequestram, violam e matam estão todos impunes”, denunciou Nicacio em sua passagem por Madri. Por isso, reivindicou uma agenda da presidenta Dilma Rousseff com os povos indígenas, o que ainda não aconteceu neste mandato.

Desde que o CIR foi criado, no início dos anos 70, 21 lideranças foram assassinadas. Atualmente, 60 processos sobre agressões a habitantes nativos no Estado tramitam na Justiça. “Nenhum culpado até hoje foi responsabilizado”, lamenta o coordenador do Conselho Indígena de Roraima.

Pior. Parte da violência é exercida por aqueles que deveriam lutar por seus direitos. É o caso do deputado federal por Roraima Paul Cesar Quartieiro (DEM), fazendeiro que foi indenizado pela União para deixar uma terra indígena onde mantinha atividades ligadas ao agronegócio. Nicacio conta que ele destruiu os bens que haviam no terreno após receber os recursos de Brasília.

O enfrentamento a interesses econômicos de pessoas influentes e ligadas ao poder institucional é uma constante. “Romero Jucá (PMDB) presidiu da Funai (no governo de José Sarney) e hoje é senador da República por Roraima. É a pessoa que mais tem projetos de mineração em terras indígenas na Amazônia”, revela.

Nesta entrevista à Carta Maior, o líder indígena cobra o cumprimento das leis nacionais de proteção aos povos autóctones, a revisão imediata do Estatuto do Índio - paralisada desde os anos 90 - e a desburocratização dos mecanismos de financiação internos; hoje, é mais fácil obter recursos para projetos com organizações internacionais.

Carta Maior - A manutenção econômica do Conselho Indígena de Roraima é feita com recursos do governo federal?

Mario Nicacio Wapichana - Nosso financiamento é feito com base em três eixos: a contribuição comunitária, convênios com os governos federal, estadual e municipal e cooperações internacionais focadas em atividades na área ambiental, de direitos humanos e fortalecimento da organização política indígena. Temos projetos com a Embaixada da Noruega e entidades da Suíça, Inglaterra, Estados Unidos e Espanha, como o Cáritas, e o banco Kfw da Alemanha. Fomos muito criticados por causa dessas contribuições internacionais, diziam que estávamos vendendo a Amazônia. Mas claro que não é isso, porque tudo tem regulamentação. Essa é uma crítica pessoal de políticos e parlamentares de Roraima.

Dá para fazer uma leitura inversa, de que a falta de empenho no país leva os indígenas a buscar dinheiro de organizações internacionais?

Claro. O Brasil tem recursos na linha ambiental e direitos humanos, mas é preciso possibilitar o acesso para o CIR. Somos uma associação que está dentro da floresta, que tem pouca informação. As regras do uso desses recursos são muito difíceis para nós cumprirmos. Por exemplo, num lugar que só se chega de barco – e depois de uma viagem de uma semana – querem que a gente faça uma compra com licitação. Nesses lugares não tem internet, não tem telefone... na Amazônia os meios de comunicação tem um acesso muito restrito.

E as ONGs internacionais facilitam o repasse de recursos?

A regra é diferente, muito mais flexível, tanto no uso quanto na prestação de contas desses recursos, embora tudo tenha que passar pelo Tesouro Nacional. Agora no Brasil não, tem muitos documentos para assinar, a regra é muito extensa e não dá pra fazer nada porque são processos longos.

Qual é o balanço de conquistas dos 40 anos do Conselho Indígena de Roraima?

A primeira bandeira foi de luta pela terra e tivemos uma conquista bem recente (neste âmbito) com a (demarcação da) Raposa Serra do Sol, que se concluiu parcialmente. Mas houve também avanços na área de educação: hoje nós temos 1.400 professores indígenas; antes eles tinham que vir de fora, não se adaptavam nas comunidades, iam embora logo. Agora já tem professor e escola indígena, com estrutura. Estudantes que iam para a cidade já começaram a ficar na comunidade. E hoje 600 índios de Roraima estão em cursos superiores de Direito, Medicina...

Também se reconhece mais o direito ao uso da medicina tradicional indígena...

É outro avanço, antes se atendia a um indígena com base na medicina convencional. Agora não, temos 460 agentes indígenas de saúde formados, 235 centros de saúde nas comunidades. Também conseguimos o reconhecimento do trabalho das parteiras.

E qual é a sua avaliação do trabalho da Funai nessas políticas?

A Funai atuou em educação e saúde, via governo federal. Mas critico essa instituição porque foi coordenada por pessoas mais interessadas nos recursos naturais das comunidades indígenas do que na qualidade de vida dessa população. Por exemplo, Romero Jucá foi presidente da Funai e hoje é senador da República por Roraima. É a pessoa que mais tem projetos de mineração em terras indígenas na Amazônia. Isso é alarmante, porque conheceu as terras indígenas, fez um mapeamento delas e hoje tem projetos privados nessas áreas. E a Funai passa por uma situação difícil também porque foi omissa na defesa e garantia do direito dos povos indígenas.

Em que aspectos a Funai se omitiu?

Em Roraima, e também em outros estados, muitas comunidades foram expulsas de suas terras. Na minha comunidade pedimos uma terra de área contínua, com rios e matas ciliares dentro dos limites indígenas. Mas a visão da Funai, que contratou antropólogos, foi deixar tudo isso fora. Como vamos viver? Os rios ficaram todos dentro das fazendas. Por isso que a gente coloca que o maior responsável pela violação dos direitos dos povos indígenas é o próprio governo federal, através da Funai e do Ministério da Justiça! No Mato Grosso, os Xavantes são outro exemplo: há 20 anos a terra deles foi demarcada, mas eles ficaram fora dessas terras e o fazendeiro ficou lá dentro.

E como é possível que se levem adiante projetos privados de exploração de recursos naturais em terras indígenas?

Na lei diz que tem que ter autorização do Congresso Nacional, mas a maioria dos deputados federais são empresários ou estão ao lado deles. E são a favor desses empreendimentos. Romero Jucá é empresário de construções, mineração... Outro senador (de Roraima) Mozarildo Cavalcanti (PTB) também é a favor de mineração em terras indígenas. Está na Constituição Federal a necessidade de consultar os povos indígenas, só que colocam as máquinas a funcionar e depois é que vão nos consultar. Infelizmente é essa prática no Brasil: aconteceu em Belo Monte e em outras hidrelétricas do rio Madeira. E houve cooptação de lideranças indígenas. Há muitos relatos, algo grave, e fizemos denúncias em nível internacional...

Como está a situação da Raposa Serra do Sol?

Foi aprovada a criação da terra indígena, mas antes do martelo final, o STF impôs 19 condições. As mais graves são a exploração de recursos naturais, como a mineração, e a entrada de militares sem consulta da comunidade, o que é muito ruim. Os povos não teriam autonomia nem se consultaria a Funai (nestes casos). E a Advocacia Geral da União (AGU) diz que Raposa Serra do Sol não pode ter ampliação (de território). E ainda quer essa norma estendida para outras terras indígenas, mais de 300 em todo o Brasil – tem algumas com 600 hectares! Como se pode ter certeza de que daqui a 20 anos aquela comunidade vai ter a mesma população? A AGU quer que terra demarcada e homologada não possa ser mais ampliada. Um retrocesso!

Mas o conflito com fazendeiros foi solucionado?

Temos muitas ações criminais contra fazendeiros. O Paulo Cesar Quartieiro, que hoje é deputado federal do Democratas por Roraima é um deles: deu muito trabalho para a Força Nacional do governo federal. Explodiu pontes, destruiu o Centro de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, perseguiu funcionários que trabalharam em defesa dos povos. Sequestrou indígenas, praticou atos violentos, destruiu escola, posto de saúde, estrada, fez estrago. O governo federal indenizou a estrutura que ele construiu na terra indígena (quando se criou a Raposa Serra do Sol), pagou por esses bens e ele destruiu tudo.

Por isso essa preocupação com a segurança dos índios em Roraima, já que enfrentam interesses de pessoas que estão no poder?

É. Para a segurança dos povos indígenas a gente conta muito com o apoio da Polícia Federal. Polícia Civil, Polícia Militar e outras polícias municipais são ligadas a partidos, a gente não conta muito com isso. Recentemente recorremos à Justiça Interamericana pelo reconhecimento de um indígena que foi brutalmente assassinado dentro de uma delegacia de polícia. Hoje tem um memorial em Boa Vista para o índio Olevário Tames. Não dá pra contar com proteção policial, ao invés de nos proteger eles nos batem. E na Polícia Federal teve que vir pessoas de outros estados para mudar, porque com os de Roraima havia essa desconfiança interna, de interesse institucional...

A presidenta Dilma ainda não recebeu os indígenas. Como foi a relação com os últimos governos.

O Fernando Collor, apesar de tudo, deu uma resposta positiva aos indígenas, recebeu os Ianomamis, fez a demarcação da terra deles. Fernando Henrique também teve reuniões com os indígenas e o presidente Lula conseguiu fazer uma agenda específica para a gente. Agradecemos, mas esperávamos mais. Um governo popular poderia ter muito mais avanços... E agora ainda não fomos recebidos no governo Dilma. Já mandamos várias cartas em assembleias nacionais pedindo reuniões com ela. Até porque o presidente tem como intervir em alguns momentos, por exemplo, em eletrificação, mineração. Apesar de a Dilma ser da base popular - foi prisioneira na ditadura militar, sabe como é difícil a luta - ela ainda não nos recebeu. Mas somos esperançosos de que numa agenda próxima ou no final do mandato a gente possa ser recebido. E que não piore a política nacional para o setor.

Essa atitude pode se dever a ela ser considerada mais desenvolvimentista?

Ela é defensora do PAC, tem uma ligação com o desenvolvimento econômico do país. Só que “desenvolvimento econômico” que derrama sangue das pessoas não é desenvolvimento, porque passa como um trator pelos direitos humanos. Apesar de muitas conquistas jurídicas, o Brasil ainda tem uma fragilidade enorme nessa área e isso tem muita relação com a questão econômica.

Falta colocar em prática as leis?

A prática ainda está longe de acontecer. O Brasil tem leis interessantes de defesa dos povos indígenas, até na Constituição. O Ministério Público Federal, por exemplo, tem um departamento específico para essas questões - outros países não tem isso. Agora não consigo entender porque ocorre essa omissão se existem tantos órgãos. Também é urgente retomar a revisão do Estatuto do Índio, que está parada há quase 20 anos.

Os povos indígenas de Roraima são vizinhos da Venezuela e da Guiana. Como é a relação dos governos com os indígenas desses países?

Conhecemos os governos através dos povos indígenas. E comentam que na Venezuela existe a defesa dos direitos e garantia territorial. Estamos tentando aumentar nossas relações, porque o direito dos povos indígenas é uma questão que atravessou as fronteiras. No caso da Guiana, há pouco incentivo à proteção de terras indígenas e a atividades produtivas desses povos. E está havendo um êxodo para o Brasil. Isso é grave, porque deixa um território em aberto. E o governo da Guiana acaba aceitando a proposta de empresários brasileiros para o plantio de arroz e retirada ilegal de madeira de terras indígenas.

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