quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Meio século em cinco minutos



Um aniversário serve, antes de tudo, à reflexão, especialmente quando se completa meio século. Depois que comecei a pensar na minha história de vida e o mundo em que vivemos, descobri coisas fascinantes.

Ricardo Alvarez
A primeira delas é que nasci em meio à crise dos mísseis em Cuba, talvez o momento mais crítico da Guerra Fria. Foi quando Kennedy descobriu que a URSS instalava mísseis na ilha, ficou muito bravo e mandou parar com este negócio. Os comunas não obedeceram aí a coisa esquentou. Foi tenso. Se o mundo explodisse naquela época eu iria durar somente alguns dias.
Muitos cantaram em verso e prosa que a terceira Guerra Mundial estava prestes a acontecer, só não entenderam que os tempos eram outros: ela já estava em curso. Não era mais uma guerra clássica, mas um combate de longa duração, que perdura por décadas e hoje passa pela Síria. E não tem data para terminar.
O mais engraçado no episódio dos mísseis é que os EUA são a maior nação armada do mundo, tem bases militares em dezenas de países e gastam os tubos na indústria da guerra. Por que eles podem e os outros não? Acho que é uma questão de concorrência. Mas como não sou belicista, defendo o banimento de todas as armas.
Minha querida mãe nunca comentou nada comigo deste episódio. Estava mais preocupada com meus berros, que eram insuportáveis, diziam minhas tias e tios, além dela própria e de papai.
Num momento de descontração após uma cansativa reunião de análise de conjuntura sobre os efeitos da “Crise dos mísseis” em Cuba e suas consequências na Nova Ordem Internacional.
Quando nasci o presidente do Brasil era João Goulart, traído por seus subordinados em farda e o derrubaram, na melhor das intenções, é lógico. Livraram-nos da “ameaça externa” para padecermos pela repressão interna. Os milicos sabiam o que era melhor para nós, muito inteligentes. Não deixavam a gente saber de nada, nem pela grande imprensa que os apoiavam.
Cresci entre Ribeirão Pires, onde nasci na primavera de 1962 e onde moravam meus avós paternos. Circulava também por Santo André, onde moravam meus avós maternos. Tive uma infância fantástica, apesar da Guerra Fria.
Quando comecei a dar meus primeiros passos veio o golpe militar de 1964.
Ainda chorava bastante, segundo minha mãe, mas muitos choravam mais. Estavam na linha de frente contra o poder autoritário do regime de repressão, lutaram pela democratização do país e o direito de escolha de nossos representantes. Básico. Muitos morreram, deram a vida por uma causa. Hoje parece piegas, mas tem gente que se entrega por um ideal. Eu os respeito e admiro. Em tempos de barriga sarada e carro veloz, dou mais valor para os idealistas.
Diante da oposição o regime foi se fechando cada vez mais. E cada vez mais. O sumiço era constante, as torturas intermináveis e o clima de perseguição insuportável. Chupar picolé não dava cadeia, mas discutir política sim. O consumo vem na frente.
Alguns têm saudades daquela época, eu a abomino. Acreditam que as coisas estavam mais organizadas e a corrupção era menor. Não dá para saber se era, pois ninguém tinha acesso a nenhuma informação. Eu prefiro saber o que acontece e lutar por mudanças. É meu direito.
Quando mudei para Santo André, em 1969, o presidente ainda era um fardado. Em 1970 entrei no Américo Brasiliense, no antigo ginasial, escola estadual tradicional e rígida. Aprendi muito, apesar dos militares. Montamos até um centro acadêmico: o MMM (abdico da tradução por educação aos leitores).
Se na escola as coisas estavam bem, na sociedade nem tanto. Culturalmente só se podia experimentar o que os milicos permitiam. Imagine passar um domingo na TV com a Hebe Camargo (que Deus a tenha)? Ou ver novelas na Rede Globo que mostravam pobres alegres e ricos tristes e cheios de problemas? Empregadas domésticas negras e patroas brancas? Sim, a TV deu uma contribuição inequívoca à consciência política do brasileiro.
Muitos hão de se lembrar da ficha assinada pela Solange Hernandes que autorizava a exibição do programa.  Ou não. Acho que foi a figura mais proeminente do Departamento de Censura dos governos militares. Talvez ela nem existisse, nunca vi uma foto dela. Há se existisse o facebook...
Quando sai do colegial o calendário marcava 1980. Loucura total. Os trabalhadores do grande ABC enfrentaram os militares, em especial os metalúrgicos. Queriam salário, condições de trabalho e...liberdade de organização sindical e política. Que ousadia.
Achei aquilo muito estranho. Como questionar o poder de semi-deuses, que só faziam o bem e governavam o país com amor e dedicação? Alguma coisa estava errada. Podem os trabalhadores assumir o protagonismo de seu próprio destino, ou devem passar toda sua vida produzindo bens e ganhando salários que são apenas parte do valor que geraram?
O ano de 82 foi demais. Entrei na geografia da USP e aprendi o que é mais-valia. Os militares não gostavam muito de aprendizado, apreciavam mais a passividade e a subserviência. Mas dei de ombros, afinal um novo mundo se abria e a força da farda começa a fazer água. Crise na economia mundial, fragilidade nas hostes do governo.
Ainda em 82 conheci minha companheira que me atura até hoje: Isabel. Neste mesmo ano comecei a dar aulas. Muita coisa junta. Pirei. Leituras mil, aulas, namoro. Foi demais para um adolescente bobão e alienado, que achava que sabia muito, mas não sabia nada.
Trabalhei por 12 anos num supletivo em Santo André. Aprendi demais com meus colegas. Era engraçado. Naquela época estudavam trabalhadores das fábricas do ABC que tinham filhos mais velhos que eu, mas eles me chamavam de senhor. Como pode? Nem barba eu tinha?
Com as lutas operárias e as mudanças na conjuntura política internacional avanços foram conquistados. Ouvir música já era permitido. Os militares relaxaram um pouco a repressão em nome do crescimento cultural de seu povo. Sergio Malandro grava “Vem Fazer Glu Glu”, Almir Rogério “Fuscão Preto” e Gretchen “Melo do Piripipi”. A felicidade se espalhava.
Em meados dos anos 80 entrei para o sindicato dos Professores das Escolas particulares. Virei tesoureiro e presidente. O sindicato se filia à CUT. Uma década depois sai da direção do sindicato para não apagar o brilho de Lula, garoto novo e promissor que emergia como liderança política no grande ABC.
As coisas iam se encaixando. Os estudos na faculdade, a prática docente, as lutas operárias no ABC, enfim, ser de esquerda seria uma consequência. Fiquei velho, mas não larguei mais dela. Apesar de seus erros, não dá para ser de direita num sistema que subjuga bilhões de pessoas à míngua.
Mas também aprendi que este mesmo sistema é muito inteligente. Ele gera muita riqueza numa ponta e muita pobreza na outra. E ainda consegue enganar uma parte da patuleia mostrando por A + B que um nada tem a ver com o outro. É apenas o resultado entre esforço versus preguiça, diriam os liberais.
Para os donos da rapadura dinheiro público bom é dinheiro público vivo - em suas mãos. A corrupção passa um pouco por ai: privatização marginal.
Um programinha chinfrim chamado Bolsa-Família, que repassa alguns tostões do orçamento federal para milhões de brasileiros pobres gera repulsa indomável. Uma parte dos críticos nem quis estação do metrô perto de casa para nem se misturar com esta “gentalha”. Em qualquer outro lugar do mundo menos reacionário haveria briga por estar mais próximo possível da estação.
Para se ter uma ideia de valores, Eike Batista (“àquele  que deu certo”) pretende construir um porto no Rio de Janeiro. Precisa, para tanto, de R$ 4,8 bilhões. Receberá um financiamento com dinheiro público de R$ 4,2 bilhões (88% do total). O Bolsa Família custará em 2013 R$ 22,1 bilhões. Deu para comparar? Se não deu, a coisa é mais ou menos assim: 20% do Bolsa Família vai para o Eike. Será que ele vira vagal come esta ajudinha?
A pergunta é pesada, mas cabe, pois um dos argumentos de quem combate a ajuda social é o de que os pobres com ela ficam folgados e não querem mais trabalhar. Bacana, com RS 170 mensais fico em casa de papo para o ar. Gastar com pobres não faz mal para o país, faz mal apenas para quem não precisa da ajuda. E olha que eu nem sou fã destes programas. Acho-os tímidos demais.
Mas voltando à cronologia.
Estamos nos anos 90. Em 93 e 96 nascem meus dois meninos. Aprendi que o nascimento de um filho é uma alegria que nunca mais para de acontecer. Nos primeiros meses de vida do mais novo foi lançada minha candidatura a vereador em Santo André.
Em 1996, estimulado por um grupo de militantes dentro do PT, que eram mais loucos do que eu, saí candidato a vereador. E o mais estranho de tudo: fui eleito com 3.333 votos. Os místicos se assanharam.
Selei a 13º maior votação da cidade. Surpresa geral, pois a candidatura corria por fora no partido, que tinha seus candidatos preferidos da direção, além de ser marinheiro de primeira viagem. Gastei saliva e sola de sapato aos montes, mas o apoio dos militantes da candidatura fez a diferença. Mais do que uma candidatura tratava-se de um projeto político. Meus alunos e ex-alunos também deram a maior força, menos os que tinham repetido de ano em geografia.
Existe uma máxima no magistério e eu mesmo já ouvi várias vezes. Os alunos costumam perguntar: além de dar aulas, você trabalha? Antes eu dizia que não, agora podia dizer, sim, sou vereador. Muitos achavam que o mais adequado ainda era o não. Tudo bem, eu não era milico, era possível discordar de mim.
Foi duro, mas dei aulas e exerci o mandato concomitantemente. Olhando para trás, acho que não fiz nem um nem outro direito. Mas não foi o que passou na cabeça de meus eleitores. Candidatei-me uma segunda vez e me reelegi com 5.846 votos. Ainda sou um dos vereadores mais votados de toda história do grande ABC. Que chique.
Durante o mandato as brigas foram muitas. Saí até no NYT. A morte do prefeito Celso Daniel foi um fato muito marcante para mim. Não acreditava nesta hipótese durante os dois dias de seu desaparecimento. Infelizmente o desfecho foi trágico.
Trágico também seriam os tempos vindouros para os trabalhadores.
O neoliberalismo, doença infantil do capitalismo, começava a conquistar corações e mentes. Tudo que era público não prestava. A ideia era aparentemente atraente, reforçada violentamente pelos grandes meios de comunicação que repetiam a ladainha das vantagens do mercado privado em relação às ações públicas.
O FHC parecia um príncipe. Fez até plástica. Vendeu quase tudo, não distribuiu nada para o povo, a não ser para os grandes capitalistas. O povo, como resposta,  o negligenciou. Entrou em desuso. O PSDB foi se esquecendo que ele existia. O Estadão ainda o adora. A Veja também.
O neoliberalismo no Brasil foi um arraso, uma metástase econômica. A cada leilão uma liquidação de patrimônio público. Muitos aplaudiram. Pertenci ao grupo dos críticos. Para a esquerda é preciso fortalecer o papel do estado na geração de riquezas e distribuição de renda. Isto não pode ser deixado a cargo do capital, pois ele concentra por sua própria natureza.
Minha cabeça começava a entrar em parafuso. O PSDB nasceu sob a esfinge da Social Democracia, mas aplicava o receituário do Consenso de Washington. Aprendi coisa diferente na faculdade. Os trabalhistas eram neoliberais, Getúlio revirava no caixão. Poucos não aderiram ao pensamento dominante.
Quem sobrou? O PT foi contra, naquela época. Hoje ele privatiza, mas agora a coisa se chama “Concessão”. Faz bastante diferença.
A chegada do PT ao Governo Federal deu um alento, a coisa seria diferente. Lula tinha estofo. Foi um importante líder sindical, sabia negociar, levava jeito para a coisa.
Mas seu governo foi, no máximo, Social Democrata. Os tucanos ficaram bravos e cobraram direitos autorais. O PT alegou que estava sem uso há décadas. Em política não há vácuo, já sabemos. Continuam a brigar até hoje, e não se lembram mais da origem da peleja. Parecem duas velhinhas birrentas, mas bem parecidas e que não se largam. Uma faz tricô, a outra crochê, e por caminhos diferentes remendam o tecido social sem produzir as reformas de base necessárias há séculos.
Os braços do neoliberalismo também alcançaram a política. Ela também foi privatizada. Há partidos que compram e os que se vendem no bolsão de apostas de Brasília. Os trezentos picaretas com anel de doutor se distribuem em porções bem generosas num bloco intermediário, que por desconhecerem as origens das divergências entre tucanos e petistas, oscilam entre um ou outro, mas não largam o osso.
Seja quem for o vencedor, pode contar com a gente. O PMDB fez escola. É o partido mais vencedor do Brasil. Vence mesmo perdendo.
Enfim, quando comecei a entender a modernidade, chegou a pós-modernidade. Agora nada tem sentido. Acabaram as utopias, o que vale é viver o momento, consumir excessivamente e praticar a individualidade ao extremo. Acho que isso não vai dar certo. Parimos verdadeiros frankensteins sociais.
Filhos de juízes ateiam fogo num indígena. Calouros de medicina afogam colega na piscina num trote. Jovens ricos batem em empregada doméstica por acreditaram que ela era prostituta. Outros jovens agridem pai e filho por estarem abraçados, pensaram ser gays. Quando não quebram lâmpadas na cabeça. Enfim, retrocedemos numa sociedade que perdeu seus referenciais de solidariedade, tolerância e respeito. Mas não esquecemos os fundamentos aprendidos nos shopping-centers pasteurizados da vida: comprar, comprar e comprar.
E eu não sou mais o mesmo, pois 50 anos se passaram. Fiquei rabugento.
Apesar do tempo ainda me indigno com a miséria, com a falta de justiça, com as brutais desigualdades sociais neste país tão rico, cheio de gente de valor, lutadores pela sobrevivência e solidários com seus semelhantes. Se o sal da vida existe, ele está entre os mais pobres. Creio que a grande mudança vem daí, do dia que eles, cansados e extenuados por séculos de opressão e descaso, agarrarem a história com suas próprias mãos e derem um basta geral.
Torço e luto cada dia da minha vida para poder ver esta profecia se realizar.
Abraços cinquentenários.
Ricardo Alvarez
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Personalidade 58 18/10/2012 - 05h 13894 Ricardo Alvarez


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