quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Nova classe média e velha enganação



A PRESIDÊNCIA da República acaba de divulgar um novo programa de governo. A Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) revelou que uma de suas prioridades será o “Vozes da Classe Média”, um conjunto de medidas que pretendem ser a base das políticas públicas para esse setor de nossa sociedade. Em tese, tudo parece correto e adequado. Porém, nos detalhes daquilo que passa a ganhar destaque nas páginas dos grandes órgãos de imprensa, a realidade é bem mais complicada do que aparenta.

Paulo Kliass

Tudo parte de um fato indiscutível. Desde 2003, a base da sociedade  brasileira tem sentido reflexos  positivos sobre seu nível de rendimento e qualidade de vida. Para tanto, contribuíram a política de valorização do salário mínimo e os programas assistenciais, como o Bolsa Família. O nível de renda mensal das famílias cresceu, inclusive com participação das pensões e aposentadorias do INSS, que tiveram seus valores também reajustados. Porém, isso não significa  que o nível das desigualdades sociais e econômicas tenha sido reduzido. Pelo contrário! Como a outra prioridade do governo também tem sido o favorecimento do capital financeiro, os ricos ficaram ainda mais ricos em relação à pequena melhoria dos pobres. Tanto que mais de 40% do orçamento destinam-se a despesas com juros e serviços da dívida pública. Benefício puro aos setores rentistas da sociedade.
Isso significa que a concentração de renda entre os assalariados melhorou, mas a distância entre os 0,5% mais ricos e a absoluta maioria da população aumentou. Mas como na base da pirâmide há uma enorme quantidade de pessoas, uma pequena melhoria já oferece uma falsa sensação de redução das desigualdades. O governo passou a usar cada vez mais o discurso de incorporação de “não-sei-quantos” milhões de pessoas à chamada classe “C”. Ora, a melhoria na renda é inegável: as pessoas passaram a consumir mais, melhoraram as condições de suas moradias, abriram crediário para aquisição de novos bens. No entanto, isso não significa que todo mundo já possa se considerar integrante da classe média.
De acordo com a SAE, os limites de renda mensal per capita para se enquadrar no conceito de classe média seriam de R$ 291 a R$ 1.091. Segundo esse critério sem pé nem cabeça, todas as situações típicas de nossa triste pobreza passam a ser de classe média. Como num passe de mágica, os problemas de uma vida sofrida desaparecem. Imaginemos o caso bem comum de um casal sem filhos, onde um dos cônjuges esteja desempregado e o outro receba um salário mínimo por mês. A renda da família é de R$ 620, correspondendo a R$ 310 para cada. Logo, estão na classe média! Os responsáveis pelo programa do governo parecem não saber o quanto se gasta a cada mês com transporte, gás, luz, telefone, cesta básica, para poder mal e mal sobreviver nessas condições em uma grande cidade.
No outro extremo, temos um casal típico, em que ele receba o piso de uma categoria de trabalhadores, como os metalúrgicos do ABC. E a esposa receba o piso salarial de outra categoria, como os bancários de São Paulo. Ora, esses dois assalariados recebem um pouco acima do limite superior desse conceito arbitrário de classe média. De acordo com o programa, eles já pertenceriam à classe alta, à elite brasileira! Uma loucura!
Aparentemente, o objetivo do governo é vender a ilusão de que as políticas de transferência de renda transformaram o Brasil de forma radical. “Não, não somos mais um país com elevado grau de pobreza e bolsões de miséria. Não somos mais um país marcado pela injustiça e pela desigualdade. Agora somos um país de classe média”. De acordo com o programa Vozes da Classe Média, mais de 53% de nossa população pertencem a essa nova camada social. Seriam 104 milhões de pessoas.
Ao invés de vender a enganação de uma falsa ascensão social generalizada, o governo deveria é se preocupar em resolver as graves questões sociais que afligem a grande maioria de nosso povo. Isso implica mudar a orientação de corte de recursos e liberar verbas orçamentárias para programas públicos essenciais na área de saúde, educação, saneamento e outros. Mas a opção tem sido a de promover benesses para favorecer o grande capital, por meio de subsídios, concessões e isenção de impostos. E enquanto isso,  tenta convencer o povo pobre de que – agora sim – ele pode se orgulhar de fazer parte da classe média.
Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

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