quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O direito à terra como um direito humano: a luta pela reforma agrária e o movimento de direitos humanos no Brasil


O objetivo deste texto é analisar, por meio da história recente dos movimentos sociais que lutam pela reforma agrária no Brasil, a construção do direito à terra como um direito humano. A partir dos anos de 1970, a interação de movimentos camponeses da Igreja Católica progressista e da rede transnacional de direitos humanos confluiu na produção dessa ideia da posse da terra como um direito humano, que marcou não apenas a luta pela terra no Brasil, como também influenciou a forma como o próprio movimento de direitos humanos foi construído no país e na maneira como ele se inseriu nessa rede transnacional de ativistas.

Rossana Rocha Reis
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O objetivo deste texto é analisar, por meio da história recente dos movimentos sociais que lutam pela reforma agrária no Brasil, a construção do direito à terra como um direito humano. A partir dos anos 1970, a interação de movimentos camponeses, da Igreja Católica progressista e da rede transnacional de direitos humanos confluiu na produção da ideia da posse da terra como um direito humano, que marcou não apenas a luta pela terra no Brasil, como também influenciou a forma como o próprio movimento de direitos humanos foi construído no país e na maneira como ele se inseriu nessa rede transnacional de ativistas.
O texto está dividido em quatro partes. Na primeira, há um breve histórico da luta pela terra no Brasil, com alguns parâmetros para se compreender a situação fundiária do país em meados dos anos 1960. Na segunda parte, trataremos do desenvolvimento da Igreja Católica progressista no Brasil dos anos 1970. Discutiremos alguns aspectos relevantes das ideias que sustentaram esse grupo, destacando a importância do documento Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, e da teologia da libertação na formação das Comunidades Ecleciais de base (CEBs) e de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que terão um papel central no desenrolar da luta pela terra no país. Na terceira parte, trataremos da inserção da luta por justiça agrária no contexto internacional - a partir da busca de seus movimentos sociais por interlocução e apoio em ONGs transnacionais e instituições internacionais -, e de como esse processo de internacionalização se reflete sobre o desenvolvimento dessa luta dentro do Brasil, via aproximação entre a causa dos direitos humanos e da reforma agrária, culminando na elaboração da ideia do direito à terra como um direito humano. Finalmente, na quarta parte, argumentamos que essa elaboração, bem como a centralidade que ela adquire no movimento de direitos humanos no Brasil, é exemplar de um processo mais amplo de questionamento da fronteira estabelecida entre direitos sociais, econômicos e culturais, de um lado, e direitos civis e políticos, de outro. Fronteira esta que foi sendo transformada, através da prática do regime internacional de direitos humanos ao longo das décadas, em uma hierarquia que privilegia direitos civis e políticos.
O desenvolvimento do movimento de luta pela terra no Brasil evidencia a complexidade da relação entre o regime de direitos humanos, as diversas visões de mundo e concepções de justiça que orientam os atores políticos e sociais que mobilizam o discurso acerca desses direitos.
A questão da terra no Brasil
A história do Brasil está povoada de conflitos e revoltas populares relacionados com a distribuição de terra. A Guerra de Canudos (1896-1897) no Nordeste, a Guerra do Contestado (1912-1916) no Sul, a Guerra do Formoso (1950-1960), no Centro-Oeste são alguns dos mais importantes episódios dessa história. De especial relevância nessa narrativa é a organização das Ligas Camponesas, movimento surgido em meados da década de 1950, da luta de arrendatários pelo acesso à terra no interior de Pernambuco (Martins, 1981). O crescimento das Ligas (só no Nordeste, elas tinham em torno de 70 mil associados) e a politização de seu discurso - que passou a incluir temas como a reforma agrária, o desenvolvimento e a questão regional -, foram considerados por muitos analistas como um dos detonadores do movimento que levou ao golpe militar no Brasil em 1964. Antes desse golpe, não apenas as Ligas, mas também o Partido Comunista (PC) e a Igreja Católica conservadora atuavam como agentes de mobilização social no campo, promovendo a sindicalização; o PC buscando aliados para a revolução proletária, a Igreja, diminuir a influência do PC sobre os pobres. Ainda em 1963, respondendo à pressão que vinha do campo, o governo federal vai permitir a formação de sindicatos rurais e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
Não por acaso, portanto, depois do golpe, a questão agrária vai ser um dos primeiros objetos da intervenção do novo governo. Com a ascensão do regime militar, o movimento das Ligas é desarticulado e seus principais líderes são presos, exilados ou assassinados. A Contag vai ficar sob intervenção até 1968. O marco legal da política fundiária do novo regime, o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504) promulgado ainda em 1964, reconhecia o direito de propriedade daqueles que demonstrassem a posse da terra, os direitos daqueles que a arrendavam e também daqueles que trabalhavam em terra alheia. Além disso, sancionava a ideia de "função social da propriedade", que serviria de critério para desapropriações de terras visando a reforma agrária no país. O texto era, sob vários aspectos, bastante avançado; na prática, não funcionou muito bem. Poucas desapropriações foram realizadas pelo governo. A força política dos fazendeiros, somada à importância da agricultura na estratégia de desenvolvimento brasileira, conduziu a ação do governo para a modernização da produção rural. Esta, além da diminuição do uso de mão de obra em praticamente todas as regiões do país - gerando um contingente significativo de trabalhadores rurais sem-terra, ou, ainda que com terra, sem recursos para garantir condições mínimas de subsistência -, produziu uma concentração de terras ainda maior.
As oportunidades de articulação e de reivindicação dos direitos de trabalhadores rurais, posseiros, arrendátarios e outras modalidades, eram mínimas no contexto do Estado autoritário. Como observou o professor José de Souza Martins:
Apesar das variações da política governamental em torno do tema da questão agrária, ao longo destes dezoito anos de governo militar, esse ponto doutrinário permanece intocado: a despolitização da questão fundiária e a exclusão política do campesinato das decisões sobre seus próprios interesses, que redundam basicamente em restrições severas à cidadania dos trabalhadores do campo. Além, é claro, do banimento da atividade política do campo, sobretudo a dos grupos populares e de oposição que assumem como corretas as lutas camponesas (Martins, 1982).
Ao lado do Estatuto da Terra, o governo também implementou uma política de colonização do Norte do país1, visando atrair famílias do Sul e do Nordeste para habitar regiões consideradas despovoadas pelo governo. A ideia era diminuir a tensão social e a demanda por reforma agrária nas regiões de origem e ao mesmo tempo realizar o objetivo estratégico de proteger a fronteira norte do país, dentro da perspectiva da doutrina de segurança nacional do governo militar. A política de "terras sem homens para homens sem-terra" foi levada a cabo sem assistência técnica e econômica para as famílias de migrantes e dentro de um contexto de insegurança jurídica acentuada. Além desses migrantes, as políticas de colonização também atraíram para a região uma série de empreendedores, grandes grupos empresariais, nacionais e estrangeiros, todos interessados nas inúmeras vantagens oferecidas aos investimentos feitos na região. A descoberta de importantes reservas de minérios, a construção de estradas e obras de infraestrutura também funcionaram como um polo de atração de população e de empresas, ao mesmo tempo em que geravam dentro do país o deslocamento de um significativo contingente.
Um dos problemas mais evidentes da ação governamental era justamente o fato de que as áreas destinadas à colonização não eram despovoadas. Nelas havia famílias estabelecidas há anos e também diversas comunidades indígenas, muitas das quais ainda isoladas do contato com os brancos. Ambos os grupos tinham direito à propriedade da terra de acordo com o Estatuto de 1964. O estranhamento entre os estabelecidos e os recém-chegados, a ausência de clareza sobre a posse da terra, a atuação de grileiros, a falta de infraestrutura das regiões, a ideologia de segurança nacional, a discriminação contra os índios associados a uma tradição política onde a posse da terra e o poder político estão profundamente inter-relacionados, criaram uma situação em que as divergências sobre a posse da terra passaram a ser cada vez mais resolvidas através do uso da violência, não apenas por parte de particulares, com a anuência do poder público, mas muitas vezes através da articulação deste com grandes proprietários e até mesmo de ações diretas do Estado contra camponeses.
Nesse contexto, a atuação da Igreja Católica, em sua versão mais progressista, teve um papel fundamental na rearticulação dos movimentos de luta por "justiça" no campo, atuando junto a grupos de índios, posseiros, migrantes, trabalhadores sem-terra e atingidos por barragens.
Rossana Rocha Reis é pesquisadora do Cedec e professora do departamento de ciência política e do IRI da USP.

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