quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O elogio da miséria


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Como retratar a miséria no cinema? Indomável Sonhadora hesita entre a representação piedosa e a glorificação dos mais pobres.

por Bruno Carmelo, editor do Discurso-Imagem.
Assistindo às primeiras cenas de Indomável Sonhadora, provavelmente o filme mais premiado de 2012, as imagens que me vinham à cabeça era a do ex-presidente norte-americano, George W. Bush. Durante a campanha para a sua reeleição, ele conversava com a população em um comício, e uma mulher veio conversar com o candidato. Ela disse que era mãe solteira, e precisava trabalhar em três empregos para sustentar os dois filhos. Bush pegou sua mão, levantou-a e disse bem forte a todos ao redor: “Este é um exemplo de uma verdadeira americana! Batalhadora, que se sacrifica pela sua família! Parabéns!”. A mulher, emocionada, voltou ao seu lugar.
Não é de hoje que se transforma os mais pobres em heróis, em vítimas e mártires, portanto dignos de piedade ou admiração. A moral cristã sempre foi perita nesta transformação ideológica e semântica, assimilando pobreza à pureza, à inocência. Claramente, este instrumento também servia muito bem à política: ao invés de propor uma mudança na vida daquela mãe solteira, Bush propôs que ela passasse a se orgulhar de sua própria precariedade. O mesmo discurso vale para muitas obras de arte, e esta foi a impressão inicial diante de Indomável Sonhadora (“Beasts of the Southern Wild”), retrato de uma comunidade paupérrima nos Estados Unidos.
No filme, uma unanimidade crítica, uma garota de seis anos, órfã de mãe, vive com o pai “como um bicho”, de acordo com ele, comendo o que ela encontra pelo chão, sempre com as mãos, sempre com pressa. Nas raras ocasiões em que uma comida preparada se oferece à garota, ela é ensinada a recusar. Ela deve ter “orgulho de ser quem ela é”, ou seja, não aspirar a uma ascensão social. A história continua com um desfile de cenas de Hushpuppy (a menina tem nome de filhote, ou “puppy” em inglês) se afogando durante uma enchente, sofrendo dores mas não podendo chorar, sendo abandonada durante dias e cuidando de si mesma, sozinha.
A solução encontrada pelo diretor Benh Zeitlin foi apelar para o realismo fantástico: Hushpuppy, também narradora da história, apela para filosofias sobre a natureza humana que ela seria incapaz de ter em sua idade, à medida que enxerga feras gigantescas, espécies de imensos javalis pantanosos, avançando em sua direção. Zeitlin aos poucos retira as glórias da miséria para fazer dela algo lúdico – não piedoso, mas adorável porque desproporcional: nós, público de classe média, sabemos que a garota vive em situação precária, mas ela mesma não o sabe. Através da inocência do olhar infantil, Indomável Sonhadora esquiva-se da crônica social (algo pouco apreciado pela crítica americana) para se tornar uma jornada de superação individual (isso sim, algo mais do que prestigiado).
De certo modo, essa era a mesma estratégia de Bush, quando se focava na mãe solteira, recusando reconhecê-la como parte de uma população maior. Ele preferiu dar-lhe valor pela distinção, fechando os olhos à sociedade ao redor. Indomável Sonhadora está longe deste nível de conformismo, mas talvez sejam justamente as suas partes mais fantasiosas, aquelas que mais provocam tristeza, alegria, choro. Ou seja, são estas as imagens que comovem e, pela identificação, não propõem o distanciamento, nem a reflexão. Por trás desta garotinha com um rosto e voz adoráveis, existe o resto da sociedade miserável, que talvez não se iluda quanto à sua posição social, que não enxergue feras selvagens pelo mundo. Existe muita gente que não é, e nem será herói.
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