Texto
de R. Ribeiro, 06/04/1977 Revista Isto é.
Paulo Freire
saiu do Brasil em 1964. Aqui deixou a fama de ter criado um método capaz de
alfabetizar trezentos camponeses nordestino por mês. Foi embora por razões
políticas e, 13 anos depois, é um nome mundial, sobretudo após o lançamento do
seu livro Á Pedagogia do Oprimido”, bíblia educacional das nações do Terceiro Mundo. Hoje a vida de
Paulo Freire se divide entre as leituras e feijoadas saudosas num apartamento
em Genebra, Suiça, e as peregrinações pelas poeirentas trilhas da antiga África
Portuguesa, onde as suas idéias germinaram após a Revolução. Quebrando o
silencio de mais de uma década, ele falou a ISTO É, sobre sua experiência
africana, a vida europeia e a saudade do Brasil.
ISTO É – O
que aconteceu em todos esses seus anos de vida no exterior?
FREIRE – Para explicar o que estes 13 anos de exílio
vem representando para mim, talvez fosse interessante falar da expectativa que
tinha, ao deixar o Brasil. De maneira alguma eu alimentava o sonho – que se
tornou impossível- de um retorno no Natal seguinte. Um psicólogo poderia chamar
isto de defesa. Na verdade, não era só uma defesa. É que, analisando o que se
dava no país, não possível admitir um retorno breve. Isso me deu um certo senso
de realismo, me obrigou jamais permitir que a saudade que sabia que me tomaria
(e saudade nos tomou a todos) se transformasse em nostalgia. Além disso, já era
um homem maduro. Pelo menos eu tinha tido tempo de viver e fazer algo, não
individualmente, mas como participante de uma poderosa experiência social.
ISTO É- Você
se tornou um cidadão do mundo?
FREIRE – De fato, pouco a pouco, sem surpresa, fui me
sentido gente do mundo. Não pela repercussão mundial que alguns de meus
trabalhos vieram a ter. Falo de experiência existencial. Por exemplo,
recentemente, meu filho mais moço me dizia: Um dos problemas mais dramáticos
que tenho é o de saber quem sou. De um lado, não sou tão brasileiro, deixei o
Brasil com cinco anos e pouco. De outro lado, não sou chileno, não sou
norte-americano, não sou suíço. Não sei o que sou realmente e, por isso, não
posso ser universal. Você não”, dizia-me ele “você pode ser universal porque
você é, sobretudo, um recifense.
ISTO É – Em
que você mudou?
FREIRE – Todo o processo começa ainda no Brasil, no
convívio com mulheres e homens do Recife, gente dos alagados, no esforço de
compreender a forma de estar sendo dos camponeses do Nordeste que não era a
nossa, as experiências do operários urbanos, das crianças dos mocambos. Ao
procurarmos compreender a posição de um camponês do Nordeste do Brasil, com
suas rezas, com suas benzeduras, sua compreensão mágica do mundo – mas bonita e
lógica – mal sabíamos que nos estávamos preparando para compreender coisas
parecidas a outros níveis, que o exílio nos obrigaria a entender ou a suicidar.
Veja você, quando cheguei ao Chile, andando pela rua com um amigo, peguei no
braço dele e vi a surpresa e o desagrado desse amigo - que, sem jeito, me
explicou que esses gestos não são habituais no Chile. Eu pensei cá comigo: Há
algo de errado nessa cultura que rejeita um gesto afetivo”. Passam-se os anos e
lá estou eu na Tanzânia, e qual não é minha surpresa quando, andando na rua, um
amigo meu pega a minha mão, entrelaça os dedos nos meus e ficamos assim
andando, balançando os braços como um casal de namorados. E eu, sem jeito,
assim que ele soltou minha mão, pus as duas mãos nos bolsos. Quando fiz isso,
disse a mim mesmo: “Há algo de errado na minha cultura que rejeita um gesto
afetivo”. Eu vejo, assim, toda essa experiência que tive, e que continuo tendo,
como uma grande escola, informal no sentido mais largo da palavra, escola na
qual vamos aprendendo, mudando, num processo permanente que se esgota.
ISTO É –
Quando se fala da obra de um autor, tendência é a de referir-se a seus livros.
No seu caso, mais importante do que os livros parece ser sua intervenção em
projetos de que você participou.
FREIRE – Minha obra não se limita ao aspecto formal.
De fato, é apenas um momento dessa obra que se explicita no texto escrito e
nesse momento é inseparável da prática que provocou o texto. Qualquer separação
entre um livro que escrevi e a prática social de que participei seria
incompreensível. Infelizmente, essa separação é muito comum nas numerosas teses
de doutoramento que, na Europa e os Estados
Unidos, se tem publicado sobre meu pensamento pedagógico. Ora, isso me põe na
posição de alguém que caiu do céu por acaso e que se torna um puro objeto
anatômico a ser dissecado, sem compreensão no contexto social de que participei
e que explica a obra que escrevi. Meus livros, na realidade, não são relatórios do que fiz.
ISTO É – A
Pedagogia do Oprimido, apesar de escrita numa linguagem filosófica, vende como
se fosse história em quadrinhos, não é?
FREIRE – Na Alemanha a edição em brochura ultrapassou
os 80 mil exemplares e as edições se esgotam duas ou três vezes por ano. O
mesmo se dá em outros países europeus. Na América Latina já há mais de 15
edições.
ISTO É – Em
quantas línguas?
FREIRE – Umas 15, inclusive na Índia, Ceilão, Japão e,
agora na Tailândia. Essa edição eu só reconheci pelo desenho de capa, porque
até o meu nome traduzido eu fui incapaz de identificar. Já no Brasil, meu outro
livro, AÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE ultrapassou A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO. NO ano passado, em
seis meses teve sete edições, o que mostra que há certo interesse...
ISTO É – Você
está escrevendo alguma coisa no momento?
FREIRE- Claro,
estou terminando meu próximo livro, CARTAS À GIUINÉ BISSAU, que ;e justamente um relatório do trabalho
que estamos fazendo neste país. O livro deve sair brevemente no Brasil.
ISTO É – Com
o sucesso dos seus livros, você entra na categoria dos intelectuais que é
absorvida pela universidade. Mas você, ao contrário, depois de lecionar em
Harvard e na Universidade de Genebra, as deixou dizendo que prefere aprender na
África do que ensinar na Suíça ou nos Estados Unidos.
FREIRE- Sempre
gostei da atividade docente. Mas, para mim, o ensino não se resume às salas de
aula de uma universidade: ele se dá na vida mesma como vimos na África, onde a
educação é informal, pois a própria vida é que é a escola. Nesse sentido, a
universidade nunca foi para mim um sonho a qual a gente se agarra e não larga
mais, e que em geral termina em pesadelo.
ISTO É –
Quais seriam as lições que se pode tirar de sua experiência em Guiné Bissau e
sua projeções no Terceiro Mundo.
FREIRE- Há ensinamentos formidáveis, como, por
exemplo, a relação entre ser humano e mundo: a preocupação que se percebe hoje
na Guiné Bissau com a formação científica do educando- e não cientificista – o
que leva à desmistificação da ciência e da tecnologia: a ênfase nas relações da
educação com a produção, o que leva também a não mitificar o consumo. Outro
ensinamento fascinante está ligado ao uso do corpo, tal como se faz na África,
bem como a importância da linguagem, tomada como expressividade total e não
apenas no seu aspecto estritamente linguístico. Salvo entre os intelectuais que
se desafricanizaram e renegaram suas raízes, a palavra não é apenas para ser
ouvida, mas também para ser vista, envolvida no gesto necessário. É assim que o
africano fala- você vê a palavra. Em meu texto sobre a Guiné, descrevo a
reunião em que os chefes da aldeia nos receberam à sombra de uma árvore. Os
discursos que fizeram se acompanhavam do uso do corpo, enquanto descreviam os
maltratados do colonialismo. Um deles ia para lá e para cá,, dentro do círculo
da sombra, curvando-se e recurvando-se, encenando tudo que dizia. A linguagem
não é estática, na África. Há uma integração entre gesto, palavra e realidade.
ISTO É – Mas
você diz que, na base das diferentes
realidades culturais e nacionais que você tem conhecido, existem pontos em
comum. Quais seriam eles?
FREIRE- De fato, há certos pontos que se repetem com
vestimentas novas, Um exemplo: trabalhei no Nordeste, em áreas urbanas e rurais,
e em ambas encontrei expressões muito gritantes do que chamamos de uma visão
fatalista do mundo. Uma visão que está associada a uma situação opressiva ,
restritiva, castradora, que caracteriza, portanto, um certo aspecto, um certo
momento da consciência oprimida. O fatalismo do camponês do Nordeste está
sempre envolto por uma falsa e mágica concepção da divindade – como se Deus fosse o responsável direto pelo que se
passa na História – e, se não é Deus, é a sina, ou, quando não é nada disso,
então é a inferioridade natural de que o camponês fala como possuidor nato. Em
Nova York, esse fatalismo também existe, mas toma a forma da mitificação da
ciência e da tecnologia. A força toda poderosa de uma concepção tecnicista,
cientificista e consumista do mundo e da existência compõe o quadro do
fatalismo nos Estados Unidos. O fatalismo também se encontra na Europa, na
África, em níveis distintos. Por outro lado, vi desaparecer esse fatalismo em
certas situações comuns – quando surge uma esperança. Mas só há esperança na
medida em que há futuro. Fora do futuro não há esperança e não há futuro quando
um povo não toma a História em suas mãos.
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