quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Possibilidade de independência da Escócia evidencia processo de deslocamento de poder do mundo globalizado


Possibilidade de independência da Escócia evidencia processo de deslocamento de poder do mundo globalizado

Lluís Bassets
A Europa se encontra às portas da maior redistribuição de poder que terão visto várias gerações. Não basta remontar a 1989, quando terminou a guerra fria, porque naquela época o terremoto afetou fundamentalmente o antigo bloco soviético. Também não serve a data de 1945, depois do naufrágio do império hitleriano, quando EUA e Rússia impuseram a divisão do continente mediante um sistema de equilíbrio do terror garantido pela segurança da destruição mútua em caso de conflagração. Nem sequer a data de 1815, quando do Congresso de Viena que enterrou a Europa napoleônica surgiu o chamado concerto das nações. Este mundo que agora começa a titubear é o dos velhos Estados-nação europeus, modelados entre os Tratados de Westfália (1648), assinados no fim da Guerra dos Trinta Anos, e o Tratado de Utrecht (1714), ao acabar a Guerra de Sucessão Espanhola.
À diferença de então, a atual redistribuição não é um movimento tectônico dentro da Europa, e sim parte dos deslocamentos de poder e de riqueza dentro do mundo globalizado. O que nos acontece faz parte do que acontece aos outros. Acreditávamos que éramos o umbigo do mundo, mas de repente nos damos conta e estamos atuando como a periferia que já começamos a ser. O centro de gravidade geopolítico do planeta, situado no Atlântico durante os últimos séculos, agora está no Pacífico. Somos menos, mais frágeis, mais divididos e mais dependentes. Também mais endividados.
Nosso modelo de vida e de sociedade está em questão. E somos causa e efeito ao mesmo tempo. Há redistribuição de poder e riqueza na Europa e no interior de seus Estados-nação porque há uma nova distribuição de cartas no jogo global. Não há, como antes, superpotências que vigiem com suas armas a estabilidade do continente. A Otan se ocupa das áreas exteriores, quando se ocupa de algo. A Europa não se encontra em nenhum dos alarmes do Departamento de Estado. As margens de liberdade rapidamente se ampliaram. E também os perigos, a incerteza.   
A redistribuição do poder europeu vai funcionar em três direções. Uma de transferência para cima, outra de transferência para baixo e uma terceira de desagregação centrífuga, o resultado da ruptura das atuais estruturas pelos pontos mais frágeis. Há notícias que acompanham cada uma das três tendências. Para cima indica o projeto de união fiscal e bancário que os 17 sócios do euro têm sobre a mesa, apressado pela crise das dívidas soberanas dos países periféricos, e notadamente Espanha e Itália. A flecha que sinaliza para baixo tem na Escócia sua ponta mais aguda, e não a única: em dois anos haverá um referendo sobre a independência. Com uma só pergunta, clara e precisa, de modo que só permita a resposta afirmativa ou negativa.
Também de Londres vem a notícia sobre a ruptura da UE, já esboçada por David Cameron em dezembro passado, quando rejeitou a união fiscal proposta pela França e Alemanha e agora reforçada por sua negativa a aprovar as perspectivas financeiras da UE até 2020 e sua disposição a desdobrar os orçamentos europeus, um para os membros do euro e outro para os que conservam suas moedas nacionais. Logo teremos duas Europas em vez de uma.
A redistribuição organizada e civilizada é a única via sólida e segura. O euroceticismo britânico se acomodou facilmente a realizá-la pacífica e amavelmente dentro do Reino Unido, primeiro na Irlanda do Norte e agora com a Escócia. Mas tem dificuldades insuperáveis para dissolver sua soberania nacional na europeia. Exatamente o contrário do que sucede na Espanha, onde não é a transferência para Bruxelas e Frankfurt o que tensiona, senão as reclamações das nacionalidades históricas, com a Catalunha à frente, para transformar-se em agentes diretamente protagonistas do novo empuxo federal europeu.
Se as transferências de poder em direção vertical, acima e abaixo, se realizarem razoavelmente bem, serão escassas as rupturas desagregadoras e maiores as fortalezas europeias. Com menos poder, a Europa será capaz de jogar no cenário internacional como um agente que conta. Mas se predominarem as forças centrífugas,  a Europa acrescentará fragilidade ao contexto atual.  A imagem que nos devolve o espelho escocês é edificante e diz muito a favor do ânimo democrático do primeiro-ministro britânico, David Cameron, e do talento político do premiê escocês, Alex Salmond.
Londres reconhece o princípio democrático: os escoceses decidirão o futuro de suas relações com o Reino Unido. Será graças à negociação bilateral de Edimburgo com Londres. Por autorização do Parlamento de Westminster. Não haverá consultas sobre uma terceira via, a chamada "devolution max", o mais parecido com o pacto fiscal que propunha Artur Mas ou o atual regime de concerto vigente em Euskadi e Navarra.
As pesquisas favorecem neste momento os que preferem continuar no Reino Unido, mas no caso de um resultado contrário haverá outra negociação para organizar uma independência na qual a Escócia manteria o chefe de Estado e a libra esterlina, pelo menos até ingressar no euro. A aposta na clareza e na democracia que Londres faz reforçará a Europa depois de enfraquecê-la. O que faremos nós?  

Nenhum comentário:

Postar um comentário