quinta-feira, 8 de novembro de 2012

De volta ao Delta do Arkansas



O delta a oeste do rio Mississippi no passado foi um lugar onde meeiros viviam segregados e na pobreza, mas onde também criaram uma comunidade vibrante

Charles Bowden
NG - Estrada de trator enlameada, no condado de Lee - De volta ao Delta do Arkansas - Edição 152
Ele faz uma pausa. A mulher que estava com ele naquele momento se tornou sua mulher. Mais tarde, ela teve câncer de mama, e ele sempre ficou se perguntando se aquela ducha de produtos químicos teve alguma coisa a ver com isso. O sol brilha forte, as glicínias selvagens sobem pelas árvores à beira da estrada e exibem suas flores cor de lavanda a 12 metros do chão. O ar de abril é fresco com um toque de chuva e os trechos de floresta explodem com a primavera. Ao amanhecer, nuvens baixas cobrem o terreno, então o sol aparece e o mundo recomeça.
“É isso. Isso é o que eu consigo me lembra daquele dia.”
O fotógrafo é um caucasiano que veio de Boston para visitar a cidadezinha de Augusta durante a época dos direitos civis no final da década de 60. Hoje ele acredita que aquele foi o período mais importante de sua vida. Ele estava acompanhando a organização Vista (Volunteers in Service to America – Voluntários a Serviço dos Estados Unidos), trabalhando em uma creche para crianças negras e brancas, e não demorou muito para sua presença começar a incomodar a população branca da cidade. O nome dele é Eugene Richards, e devido a um incidente em uma noite há tantos anos, muito do que aconteceu naquela época está além do seu alcance.
A memória vem e vai aqui no delta; vai mais do que vem.
O delta do Arkansas é uma série de bacias fluviais que deságua no rio Mississippi, vinda do oeste: os rios St. Francis, White e Arkansas. Diversos sistemas agrícolas foram testados aqui – escravidão, terras arrendadas, agricultura industrial –, sempre produzindo riqueza para um punhado de gente e pobreza para grupos bem grandes. As antigas florestas foram derrubadas, muitas cidades definharam até se transformarem em espectros, mas, no entanto, algo permaneceu: o lugar ainda atrai, rouba o coração e persiste como as canções de blues que surgiram da dor e das noites de sábado cheias de pesar.
Existem razões suaves para que exista esperança no delta: o puxão sentimental da luz do amanhecer, o cheiro do crescimento violento nos bosques que restaram, o movimento preguiçoso dos rios pelo meio da terra. Mas nada disso compensa a história tão dura de pobreza, linchamentos e a migração para as cidades devido à rejeição do delta em si.
O delta é a alma do sul, um lugar que sempre se transforma em um Novo Sul e, no entanto, que está sempre amortalhado pelo seu passado, um lugar que deu à nação o blues e abrigou a Ku Klux Klan e que na década de 60 foi um caldeirão de mudanças sociais e que ferveu nos jovens negros e se derramou por cima da juventude branca de todos os Estados Unidos. Agora é uma vasta máquina agrícola que tomou conta de toda a terra e que parece não precisar de nenhuma pessoa ou cidade.
Eugene Richards fica em silêncio. Nós avançamos pela estrada. O flashback se perde, a terra permanece, o lugar do grande rio e dos acordes fantasmagóricos da memória norte-americana.
O solo aqui está entre os mais férteis do mundo, mas isso não bastou. Há sessenta milhões de anos, o Golfo do México se estendia até o estado do Missouri. Na medida em que o mar foi recuando, sobraram diversos rios, entre eles o Mississippi e seus afluentes, que criaram depósitos de solo profundo, mais ricos do que sonhos. Há cerca de 12 mil anos, a Era Glacial terminou, as geleiras derreteram, os rios subiram e então uma enchente se seguiu à outra, cobrindo todo o delta do poderoso Mississippi. Enchentes anuais continuaram a reforçar os depósitos margosos de aluvião da região, que chegam a trinta metros de profundidade em alguns locais.
Os colonizadores norte-americanos chegaram ao delta do Arkansas por volta de 1800 e confrontaram um lugar de florestas proibitivas entre pântanos, uma paisagem diferente da que se vê hoje. Algumas décadas depois, na medida em que as florestas foram derrubadas e os pântanos drenados, o delta se transformou em terra prometida. O sistema de latifúndios ganhou força, apesar de o Arkansas geralmente não contar com as mansões no estilo clássico grego que se veem nos filmes sobre o sul dos Estados Unidos. Simplesmente não houve tempo para isso: as grandes casas dos latifundiários estavam começando a ser construídas quando a Guerra de Secessão mudou tudo.
Este capítulo da história do delta do Arkansas está escrito nas ruas de Cotton Plant, uma cidadezinha com 649 habitantes. Em 1846, um homem chamado William Lynch chegou do Mississippi, cosntruiu uma casa e um armazém e tentou plantar algo relativamente novo para a região. O algodão estabeleceu o seu reinado. Naquela época, o delta do Arkansas estava passando por um período de crescimento acelerado. Barcos a vapor nos rios do Arkansas transportavam o algodão com facilidade para os mercados em New Orleans. A renda anualper capita estimada do estado era de US$ 68 – três dólares a mais do que a média nacional. A escravidão foi o que possibilitou o crescimento. Quando a Guerra de Secessão começou, alguns condados do delta tinham mais negros do que brancos.
Hoje, na rua principal de Cotton Plant, a antiga igreja presbiteriana se derrete como cera ao sol. Na frente da delegacia de polícia há dois bancos públicos, ambos acorrentados. Velhos se sentam à sombra no centro morto. “Tinha uma fábrica de verniz que funcionava 24 horas por dia”, um velho me contou. “Agora, todas as pessoas que trabalham precisam ir a outro lugar.”
Estou em busca do local do massacre de Elaine, um acontecimento que se iniciou em um povoado chamado Hoop Spur, a cinco quilômetros da cidadezinha de Elaine. No final de setembro de 1919, meeiros negros organizaram uma reunião em uma igreja de Hoop Spur para discutir a respeito de como obter preços melhores para seu algodão. A libertação dos escravos tinha destruído a fonte de mão-de-obra grátis dos latifúndios, que tinha sido substituída pelo sistema de compartilhamento das colheitas. Depois da Guerra de Secessão, os escravos recém-libertados achavam que poderiam trabalhar como agricultores em terras arrendadas aqui para fugir à repressão de Dixie. Isso deu certo durante um tempo.
Houve tiros na reunião dos meeiros e, quando terminou, um vice-xerife tinha ficado ferido e um segurança da estrada de ferro estava morto. Durante dias depois disso, multidões de brancos saíram armadas pelo mato, à caça de negros. Soldados do exército foram chamados e também podem ter causado algumas mortes. Os brancos chamaram aquilo de insurreição negra; os negros chamaram de massacre efetuado pelos brancos. Ninguém concorda em relação ao número de vítimas. Talvez cinco brancos tenham sido mortos. As estimativas vão de 20 a centenas de homens, mulheres e crianças negras mortas. Em resumo: Esta é uma das maiores matanças raciais de negros na história dos Estados Unidos, mas a maior parte das pessoas hoje nunca ouviu falar dela. Estou em um campo onde Hoop Spur se localizava. Só há terra arada e fileiras de plantas. Nada nos limites das árvores conta a história daquele tempo.
Talvez seja melhor assim. As coisas seguem em frente. Ou talvez o passado possa ser esquecido, mas não apagado.
A devastação das florestas do lado do Arkansas do rio Mississippi deixou para trás a sensação das madeiras de lei antigas do lado leste. Foi só no início do século 20 que a exploração da madeira transformou o delta em uma paisagem lunar de campos planos. As cidadezinhas ao longo da parte baixa do rio White e seus afluentes foram um convite a serrarias e a um punhado de fábricas de objetos de madeira. A cidade de Helena era um chão de fábrica de madeira e verniz na década de 1920. Foi um dos primeiros fôlegos do sonho do Novo Sul industrializado que nunca se realizou.
Nas décadas de 1940 e 50, graças ao programa de rádio King Biscuit Time, Helena se tornou o centro de emissões radiofônicas do blues que soava por todo o delta. Locais em que se ouvia esse tipo de música faziam muito sucesso na rua Walnut, e os brancos escutavam em segredo ao blues de Muddy Waters, Robert Nighthawk e James Cotton no rádio. Então vieram as vitórias dos direitos civis e os brancos tiraram seus filhos das escolas integradas.
Hoje Helena-West Helena é um lugar arrasado – o golpe final ocorreu em 9 de julho de 1979, quando a Mohawk Rubber fechou e levou embora consigo os últimos salários gordos. Mas há uma iniciativa para transformar a cidade em centro cultural, um altar para o blues. Construções abandonadas dizem que o lugar acabou. O festival de blues diz que pode voltar. A luz da manhã, as pessoas que passam e sempre dão bom dia, as trepadeiras verdes que parecem devorar todo o trabalho dos seres humanos, o rio Mississippi que lambe as barragens – estas coisas insistem que a vida siga em frente.
O fotógrafo não sabe dizer bem o que aconteceu. Eugene Richards estava em sua pensão. Talvez tenha havido um espancamento, ele acha. Talvez tenha sido porque duas de suas colegas de trabalho negras moravam na mesma pensão que ele. A única coisa que ele sabe com certeza é que acabou com convulsões, possivelmente por causa de uma pancada na cabeça, e foi mandado para um hospital psiquiátrico no Texas. Quando conversou com a dona da pensão, branca, anos depois, ela disse que tinha pegado alguém pregando cruzes da Ku Klux Klan no portão da pensão, mas não quis deixá-lo preocupado.
Houve outros incidentes: o cachorro dele, Mange, morto a tiros; porcas de roda tiradas do carro de sua namorada; uma arma apontada para ele e alguns amigos negros em um café; seu rosto cortado com lâminas de barbear quando Richards saía de uma igreja negra em um domingo. Dois jovens voluntários da Vista foram surrados até sangrar com xícaras de café quebradas em um restaurante em Hughes, uma cidadezinha próxima. Os agressores achavam que os homens eram Richards e um colega de trabalho.
Em reação à pobreza abjeta e a violência racial que tinha presenciado, Richards se juntou a outros ex-voluntários da Vista, entre eles um casal do Iowa, Earl e Cherie Anthes, para dar início a uma organização antipobreza chamada Respect, que publicava um jornalzinho minúsculo chamado Many Voices. Richards começou a fotografar as mudanças que estavam acontecendo. Cobriu manifestações da Ku Klux Klan, negros concorrendo a cargos públicos.
Hoje, as fotografias em preto e branco são o que sobrou do tempo que ele passou lá. Há uma névoa por cima daqueles anos no Arkansas. O golpe na mente de Richards deixou estilhaços de memórias separados por lacunas enormes, pequenos fragmentos que vêm à tona sem aviso, como a lembrança da travessia de um campo arado com Dorothea, a mulher que iria se tornar sua esposa e que ele iria fotografar enquanto definhava na batalha contra o câncer que colocou fim a sua vida.
Em 1944, no latifúndio Hopson, do outro lado do rio Mississippi, uma inovação nas práticas agrícolas teria efeitos de longo alcance sobre o delta do Arkansas. Pela primeira vez, uma colheita inteira foi feita com uma colheitadeira mecanizada de algodão, assim dando inpcio a uma época em que uma máquina podia substituir mais de cem trabalhadores em sua labuta brutal nos campos.
Isto levou a uma segunda onda da Grande Migração, um êxodo nas décadas de 40 e 50 de mais de cinco milhões de negros que fugiam da pobreza e do analfabetismo e da discriminação nos deltas do Arkansas e do Mississippi e no resto da região sul do país em busca da terra prometida que era a vida urbana. Quem indicou o caminho foi um meeiro que se transformou em cantor de blues chamado Big Bill Broonzy, que tinha trocado o Arkansas por Chicago na década de 1920 e cantou sua mudança em “Key to the Highway”:
I got the key to the highway,
And I’m billed out and bound to go
I’m gonna leave here runnin’
’Cause walkin’ is most too slow.
Tradução livre: “Eu peguei a chave da estrada / Já fechei a conta e estou pronto para partir / Vou embora daqui correndo / Porque se for andando é devagar demais.
Tudo aqui parece atemporal e, no entanto, todas as mudanças aconteceram rápido. Em 1970, o mundo das terras arrendadas já estava desaparecendo e a paisagem de hoje – plantações enormes, máquinas gigantescas, cidades combalidas, pouca gente – começava a surgir. Hoje, uma pessoa é capaz de cultivar 15 mil hectares com apenas meia dúzia de trabalhadores rurais.
Mas o delta tem uma coisa a seu favor que o resto da nação ainda não aprendeu totalmente. É um lugar em que a raça está sempre à mesa, à mostra, e às vezes é discutida com honestidade. Um número crescente de pessoas aqui se dá conta de que os problemas do futuro não serão resolvidos a mesmo que a raça seja colocada de lado – a menos que a construção de comunidades com trabalho, salários decentes e justiça para todos esteja no alto da lista de prioridades.
Gertrude Jackson está quase com 90 anos e passou a vida toda no delta. Ela prefere o presente ao passado. Principalmente porque o passado era muito difícil, com uma enxada na mão e as algemas da segregação: “Quando não se precisa ir par a roça, o dia está bom”.
No final da década de 60, um poste de eletricidade na frente da casa dela, perto de Marvell, foi atingido com um tiro quando ela trabalhava para acabar com a segregação nas escolas. Mais tarde, ela fundou um centro comunitário. “Quando eu era criança, as pessoas não falavam do massacre de Elaine. Quando as pessoas dos direitos civis chegaram, ouvi a história.” Ela tem cabelo grisalho, usa calça social preta e óculos. Com sua voz mansa, diz: “Quando você se decide a fazer algo, perde todo o medo.”
Dez de seus 11 filhos foram embora – para Los Angeles, Virgínia, Mênfis, Baton Rouge, Geórgia, o exército: “Simplesmente não havia nada para eles fazerem aqui, por isso se foram”. O mais impressionante a respeito dela: não esqueceu sua batalha, mas se esforça para viver em estado de graça e sem ferimentos.
Cherie Anthes e seu marido, Earl, os antigos voluntários da Vista com quem Richards trabalhou no jornal, nunca saíram do delta. Ela é enfermeira aposentada da saúde pública; ele ainda trabalha com desenvolvimento comunitário. Eles vivem em um mundo que acreditam ter chegado ao fundo do poço, e é nesse fato que encontram segurança. Earl acha que as divisões entre brancos e negros, entre proprietários e empregados, já não importam mais, porque, a menos que as coisas melhorem para todos, tudo estará acabado para todo o mundo.
Olly Neal faz parte do passado e do futuro. Ele tem 71 anos. Nos início da década de 70 era um agitador, veterano do Vietnã e organizador negro que carregava uma arma para se defender, o sujeito que liderou um boicote ao comércio dos brancos em Marianna e gerenciou uma clínica de saúde organizada pela Vista lá. Hoje, a maior parte dos estabelecimentos comerciais do centro estão fechados, as fábricas já não existem mais. Só há umas poucas casas para ouvir música no condado todo. Neal é um juiz de apelação aposentado que trabalhou no tribunal de Marianna, que dá de frente para uma praça com a estátua de Robert E. Lee.
Neal tem esperança. Ele cultiva os jovens, mandou uma dúzia de locais para a faculdade. Ele acredita que eles um dia vão voltar e dar jeito no lugar.
Eugene Richards se lembra de Neal como alguém que o inspirou, mas que lhe disse para abandonar o delta no início da década de 70, dizendo que estava na hora de os direitos civis se transformarem em movimento negro. Isso ajudou Richards a perceber que seu tempo ali tinha terminado. Estamos no escritório de Neal quando eu menciono esta conversa. Neal entra em estado de alerta, olha ao redor e diz: “Gene, foi você que eu mandei voltar para casa?”. Então ele se levanta e os dois se abraçam. A conversa passa a ser pessoal e emocional.
Neal e seus irmãos matam um novilho todo ano para fazer um churrasco. Gene tem que vir para o próximo, de qualquer jeito. Mas, para Richards, voltar é complicado. Em parte porque o tempo que passou no Arkansas continua sendo o núcleo ardente de sua vida. E em parte porque ele saiu de lá desanimado e confuso em relação ao fato de ter conseguido realizar alguma coisa ou não. Hoje, 40 anos depois, a vida dos meeiros que ele documentou desapareceu. O lugar é menos pobre do que era e menos rico ao mesmo tempo. Seja lá o que o sul for, ele nunca abandona a gente; e seja lá o que o delta for, ele bate no coração dentro do sul.
Nota sobre o colaborador
Charles Bowden registrou histórias orais no delta do Mississippi em 1968, a poucos quilômetros do lugar em que Eugene Richards trabalhava no Arkansas.

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