domingo, 16 de dezembro de 2012

Doutor, dói quando leio isso



 
Umberto Eco
Escritor italiano
Adital
Tradução: ADITAL
Para aliviar minha dor de artrite, um doutor me aconselhou que começasse a tomar certo medicamento cujo nome, para evitar cansativas disputas legais, melhor não mencionarei aqui. Porém, lhe darei um nome imaginário: Mortac.
Antes de tomar o Mortac, fiz o que qualquer pessoa razoável faria e li a bula: a mesma que dá conselhos tão prudentes como o de evitar tomar o medicamento caso pensemos tomá-lo com uma garrafa de vodka; caso tenhamos que dirigir um reboque por mil quilômetros nesse mesmo dia; ou se tivermos hanseníase; ou estivermos grávidos de trigêmeos.
A bula adverte também que alguns pacientes poderiam sofrer reações alérgicas ao Mortac, como inchaço no rosto, nos lábios e na garganta. Menciona náuseas e sonolência (especialmente em pessoas idosas), quedas acidentais, vista nublada ou perda da visão, danos na coluna vertebral, parada cardíaca ou renal e problemas para urinar. Alguns pacientes, agrega, tiveram pensamentos de suicídio ou automutilação e, se fosse o nosso caso, recomenda –suponho que quando o paciente está tentando saltar pela janela- que consultemos um profissional da saúde. (Apesar de que, nesse caso, creio que me comunicaria com o Departamento de Bombeiros).
Além disso, claro, o Mortac supõe os riscos comuns de constipação, paralisia intestinal, convulsões e, caso seja tomado combinado com outros medicamentos, pode-se ter parada respiratória e coma.
Isso tudo sem mencionar a proibição absoluta de conduzir um automóvel, operar maquinaria pesada ou de participar em atividades que possam ser perigosas; digamos, trabalhar em uma prensa hidráulica, tentando conservar o equilíbrio em uma viga do piso 50 de um arranha céu.
E se tomamos Mortac em uma dose superior à receitada, podemos esperar sentir-nos confusos, sonolentos, agitados ou ansiosos. Se tomarmos uma dose muito pequena, ou se, bruscamente, pararmos de tomar o medicamento podemos experimentar aumento de apetite, excitação nervosa, confusão, perda da libido, irritabilidade, transtornos de atenção, torpeza, deterioro da memória, tremores, dificuldade na fala, formigamento, letargia e insônia (juntos?), fadiga, visão embaçada, dupla visão, vertigem e problemas de equilíbrio, boca seca, vômito, flatulência, disfunção erétil, inchaço do corpo, sensação de ebriedade e perturbação na marcha.
Mais de uma em cada mil pessoas experimentarão uma queda no nível de açúcar no sangue, percepção alterada de si mesma, depressão, mudanças de humor, dificuldade para encontrar as palavras, perda de memória, alucinações, sonhos desagradáveis, ataques de pânico, apatia, sensação de "estranheza”, incapacidade de alcançar um orgasmo, ejaculação atrasada, problemas conceituais, entorpecimento, movimentos anômalos dos olhos, diminuição dos reflexos, pele sensível, perda do sentido do paladar, sensação de ardor, tremores ao mover-se, redução do estado de alerta, desmaios, maior sensibilidade ao ruído, secura nos olhos, lacrimejamento, arritmia cardíaca, baixa pressão arterial, alta pressão arterial, perturbações vasomotrizes, dificuldade para respirar, ressecamento do nariz, inchaço abdominal, aumento na produção de saliva, refluxo gástrico, perda da sensibilidade ao redor da boca, sudorese, arrepios, contrações musculares, câimbras, dor nas articulações, dor nas costas, dor nas extremidades, incontinência, dor ao urinar, debilidade, quedas, sede, opressão no peito ou mudanças nas funções hepáticas.
Não há porque preocupar-se, claro: existe apenas uma possibilidade entre mil de experimentar esses efeitos secundários. (Quanto ao que acontece a essa pessoa entre dez mil –ou cem mil-, prefiro nem pensar! Não é possível ter tanta má sorte).
Uma vez que a bula me capacitou tão a fundo, evitei tomar sequer uma só dose de Mortac. Estava seguro que, de imediato, estaria aflito com dor nos joelhos... (Não importa que a bula tenha esquecido de mencionar esse transtorno em particular).
Pensei em jogar as pílulas no lixo; porém, temi que isso poderia causar uma mutação genética de proporções épicas nos ratos. Melhor fechei o vidro em uma caixa de metal e o enterrei em um parque, a um metro sob a terra.
E desde então, devo dizer, minha dor de artrite basicamente desapareceu!
[Traduzido do texto em espanhol publicado em El Espectador, 9.12.12].

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