quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Falta sinergia


Estudo aponta ausência de complementariedade entre as políticas sociais de combate à pobreza

MANUEL ALVES FILHO
O Brasil conta com políticas sociais de combate à pobreza bem-estruturadas, mas o país ainda não conseguiu fazer com que elas cheguem de forma integrada a todos os necessitados. A constatação faz parte da tese de doutoramento da economista Cláudia Regina Baddini Curralero, defendida recentemente no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob a orientação do professor Claudio Salvadori Dedecca. De acordo com a autora do trabalho, o problema ocorre porque existe uma fragmentação no interior dessas políticas sociais, que debilita a complementariedade entre elas. “O que ocorre com frequência é que uma política não atua reforçando os resultados da outra ao longo do ciclo de vida das famílias pobres”, afirma.
Em sua tese, Cláudia Curralero promoveu uma ampla análise das políticas sociais implementadas no Brasil entre os anos de 2003 e 2010, com especial atenção ao Bolsa Família, programa de transferência direta de renda lançado na administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Considerada um sucesso pelo governo federal, a iniciativa, que completou nove anos no último dia 20 de outubro, alcança aproximadamente 50 milhões de pessoas com renda familiar per capita inferior a R$ 140,00 mensais, a um custo de 0,46% do Produto Interno Bruto (PIB).
Quando o Bolsa Família foi implementado, conforme a pesquisadora, as áreas de saúde e educação no Brasil já estavam bem-estruturadas no país, o que possibilitou que o programa atuasse de forma a reforçar o direito de acesso a esses serviços básicos. “Isso assegurou, além do alívio imediato da pobreza por meio da transferência de renda, o apoio para a superação do ciclo intergeracional de pobreza”, diz Cláudia Curralero.
Pelas normas do programa, as famílias beneficiárias assumem o compromisso de acompanhar o cartão de vacinação e o crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 7 anos. Já as mulheres na faixa de 14 a 44 anos também se comprometem a fazer acompanhamento médico e, se gestantes ou nutrizes (lactantes), devem realizar o pré-natal e a verificação contínua da sua saúde e a do bebê.
Na área da educação, todas as crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos devem estar devidamente matriculados e com frequência escolar mensal mínima de 85% da carga horária. Os estudantes entre 16 e 17 anos devem ter frequência de, no mínimo, 75%. “São questões importantes, e que experimentaram avanços nos últimos nove anos. A despeito disso, ainda é possível identificar desigualdades dentro dessas áreas. Ao analisarmos os indicadores, constatamos que os mais pobres continuam apresentando menor nível de escolaridade e maiores dificuldades de acesso à saúde. Ou seja, ainda que sejam universais, essas políticas continuam reproduzindo desigualdades já presentes na sociedade brasileira”, sustenta.
Uma das origens do problema, no entender de Cláudia Curralero, está na fragmentação e na falta de articulação entre as políticas sociais. “Um exemplo que costumo citar é o das mães que têm à sua disposição cursos profissionalizantes. Entretanto, elas encontram muitas dificuldades para frequentar as aulas porque não contam com creches, e, portanto, não têm com quem deixar os filhos. Assim, mesmo que conseguissem concluir o curso, elas dificilmente teriam como ingressar no mercado de trabalho, pois continuariam não dispondo de creches. Ou seja, as políticas, por mais positivas que sejam, não se complementam. O resultado da soma dos esforços de cada área, dada a fragmentação e pouca articulação na implementação, é menor do que poderia ser caso fossem contabilizados os ganhos de sinergia de uma atuação mais articulada e integrada. Dessa forma, ainda que o gasto social no Brasil seja considerável, ele pode se tornar mais eficiente para o enfrentamento da pobreza”, considera a autora da tese. 
A busca por ações mais articuladas e integradas, reconhece Cláudia Curralero, não é uma tarefa trivial de ser cumprida. De acordo com ela, alguns fatores dificultam esse trabalho. Mesmo estando bem-estruturadas, as áreas de saúde e educação servem novamente como exemplo dos problemas que ainda esperam por solução. Na primeira, por exemplo, existe a dificuldade de um “diálogo” mais efetivo entre atenção básica e os níveis mais complexos de atendimento à população. No caso da segunda, os obstáculos são ainda maiores. “Na educação, o retrato é ainda mais fragmentado, pois não existe um sistema único como na saúde. O ensino fundamental, por exemplo, é de responsabilidade dos municípios. O ensino médio, por sua vez, cabe aos estados. Na realidade, temos milhares de sistemas educacionais no país, o que dificulta a coordenação e monitoramento por parte do governo federal”, diz.
Mesmo admitindo toda essa complexidade, Cláudia Curralero pensa ser possível desenhar e integrar as políticas sociais de tal forma que elas cheguem às famílias pobres. A economista destaca que cabe aos agentes públicos [nos níveis federal, estadual e municipal] buscar um diálogo nesse sentido. “Penso que isso é perfeitamente exequível, pois existem instrumentos que podem auxiliar nessa tarefa”, afirma. Uma das ferramentas a que a autora da tese se refere é o Cadastro Único. Ele permite conhecer a realidade socioeconômica das famílias de baixa renda.  Entre as informações disponíveis estão as características do domicílio, as formas de acesso a serviços públicos essenciais e dados sobre cada um dos componentes da família.
Em suma, o Cadastro Único possibilita observar as diferenças existentes entre o pobre que vive numa região metropolitana como a de São Paulo e aquele que mora na caatinga nordestina, para ficar em um único exemplo. Cada um deles, obviamente, apresenta carências específicas. “Através das informações contidas no cadastro é possível desenhar políticas públicas de acordo com as necessidades regionais. Dessa forma, além de trabalhar ações mais integradoras, que garantam o acesso a todos os necessitados, é possível articular também um plano de desenvolvimento regional. Nesse caso, os estados teriam um papel importante a cumprir, pois cada um tem uma vocação econômica própria”, pondera a autora da tese.
Questionada sobre se essas deficiências poderiam significar que os investimentos feitos pelo país em políticas sociais estariam sendo desperdiçados, Cláudia Curralero responde que o que ocorre é que os investimentos não estão surtindo o máximo de resultado possível, por causa justamente das falhas mencionadas. “Eu me lembro de um caso que chegou ao MDS, sobre uma mãe, beneficiária do Bolsa Família, que estava em depressão. Por causa da doença, a mulher não tinha condições de cuidar dos filhos menores. Assim, a filha mais velha teve que deixar de ir à escola para olhar os irmãos, por falta de creche. Ou seja, a oferta de vaga existia, mas a adolescente não tinha condições de frequentar a escola. No caso de quem tem dinheiro, esse é um problema superável. Basta pagar uma creche particular ou contratar uma babá. No caso dos pobres, não tem saída. Se a política pública não é abrangente, acentuam-se as vulnerabilidades. É por isso que as ações precisam ser mais integradas e sinérgicas”, reforça a autora da tese.
Quanto às críticas que algumas correntes fazem de que programas como o Bolsa Família são meramente assistencialistas e não promovem a autonomia dos beneficiários, a economista observa que as políticas buscam conferir essa independência, mas nem sempre conseguem. Isso se dá, segundo ela, por causa das vulnerabilidades anteriores relacionadas às próprias condições de vida, escolarização, acesso à saúde e condições de moradia, que condicionam a inserção produtiva dos mais pobres. “A pobreza, com todas as suas facetas, dificulta a inserção no mercado de trabalho. Questões como o nível de escolarização, as condições gerais de vida e até mesmo a aparência acabam pesando nas oportunidades que se colocam para os mais pobres. A transferência de renda possibilita que as famílias se mobilizem para buscar trabalho e mais acesso a outras políticas. Por isso, não são assistencialistas, pois complementam a ação das outras políticas sociais”, acrescenta.
A pesquisadora adverte, por fim, que o seu estudo não levou em consideração o Plano Brasil Sem Miséria, lançado em junho de 2011. O objetivo da iniciativa é retirar da pobreza extrema cerca de 16 milhões de pessoas que, de tão desamparadas, podem não ter conseguido se inscrever em outros programas sociais, como o Bolsa Família, e ainda tem dificuldades de acessar serviços essenciais como água, luz, educação, saúde e moradia. “Aparentemente, o Brasil Sem Miséria responde a algumas das deficiências que são discutidas na minha tese”, conclui Cláudia Curralero.

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