quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Linguagens da mulher de Jesus


Dicionário de demótico e papiro em copta provocam debate sobre as línguas usadas no Egito antigo

Revista Língua Portuguesa

O povo do Egito foi protagonista este ano da Primavera Árabe, da derrubada de uma ditadura longeva em apenas 18 dias de protesto e de sua primeira eleição para presidente na história. Neste outubro de 2012, egípcios das ruas completaram seu ciclo de protagonismo, agora para iluminar a linguagem mundana que as pirâmides e os hieróglifos marginalizaram por milênios.
Dois fatos de relevo mundial envolveram as antigas línguas da população egípcia da Antiguidade. A conclusão de um inédito dicionário demótico, língua de subalternos na era dos faraós, foi anunciada simultaneamente a um papiro em copta, a língua escrita séculos depois às margens do Nilo, em que Jesus mencionaria a existência da própria esposa.
Demótico e copta
Após quase 40 anos, pesquisadores do Instituto Oriental da Universidade de Chicago completaram o dicionário on-line de 2 mil páginas, que duplicou o número de palavras demóticas conhecidas. Egiptólogos esperam que definições e exemplos dos verbetes agilizem a tradução de documentos no idioma que mais conta com escritos inéditos do Egito antigo.
A língua do Egito atual é o árabe egípcio, que substituiu o copta após séculos de conquista muçulmana, em 640 d.C. Só egípcios de elite usavam hieróglifos. Para leis, textos sagrados, comunicados, registros de ciência e literatura, a preferência era pela escrita demótica. Surgida no Delta, era usada no norte do país (650 a.C.) até ser acolhida entre os escalões administrativos dos faraós. O povo a chamava sekh shat (escrita para documentos). Na 24ª dinastia, em 724 a.C, sobrepujou outras formas de escrita e fala. Em 300 a.C., consolidou-se em literatura, religião e ciência. Os gregos a conheceram como língua secular esquemática e cursiva, sem paralelo com hieróglifos. Foram gregos que deram a ela o nome de "demótica" ("demos": pessoas comuns). Ela lembra a escrita árabe moderna, escrita da direita para a esquerda. No fim da era faraônica, Roma reservou o hieróglifo aos templos, e o demótico à administração. Sobreviveu até 500, um período de dominação romana.
Já o copta floresceu entre os séculos 3 e 6 d.C.. Com o avanço do cristianismo no Egito, sobrepujou as demais escritas, com 24 letras gregas combinadas a 6 caracteres demóticos. Foi falado até o século 17. Depois, tomou o interior do país e continua vivo na liturgia das igrejas cristãs locais, na forma do dialeto bohairico. É nessa língua que foi grafado o papiro, estimado de 350 d.C., com a frase "Jesus disse a ele, minha esposa...".
Passada a fumaça da descoberta, correu o planeta o debate sobre a autenticidade do achado. A professora Karen King, da Escola de Teologia de Harvard, revelou a existência do achado num congresso sobre estudos coptas, em agosto de 2012. O original fora testado por especialistas que confirmaram a autenticidade.
Karen teve o cuidado de enfatizar que o papiro não prova que Jesus tenha sido casado, mas mostra que o debate sobre o assunto deve ter sido corrente no cristianismo primitivo.
Jesus casado
Negar uma condição conjugal a Jesus permitiu a correntes da Igreja apoiarem a ideia de que o exemplo de solteirice de Cristo deveria ser seguido pelos sacerdotes - à falta de herdeiros diretos, a herança de cada um deveria ir para a Igreja, portanto.
Karen declarou em agosto que a sentença em copta deve passar por testes no papel e na composição da tinta. Seu conteúdo deve ser visto com cuidado. Nos idiomas semíticos da época, "mulher" não significa necessariamente "esposa". Sendo fragmento do século 2o, pode significar que ele é cópia ou tradução de original mais antigo, ou até falsificação.
Pesquisadores consideram a possibilidade de se tratar de um evangelho antigo, que reinterpretou trechos de textos apócrifos. Alguns chegam ao ponto de identificar a colagem de trechos do evangelho apócrifo de Tomé escrito em copta, misturados de propósito em novo contexto.
Contestação
O Vaticano lançou nota em que afirma que o achado não muda a doutrina católica. Igrejas protestantes consideram que a frase pode ser variante da passagem em que Jesus se dirige a sua mãe nas bodas de Caná: "Que tenho eu contigo, mulher?". Era comum que palavras fossem quebradas entre linhas, sem hifens, sem muito padrão. O fato de a quebra de linhas surgir no papiro no mesmo lugar em dois trechos sugere que o autor não dominaria o copta, copiando a divisão de linhas de edição moderna (impressa) do texto de Tomé.
Especialistas consideram que a descoberta pode, mais do que dar informação confiável, indicar que o cristianismo primitivo nasceu plural, marcado por uma diversidade mais tarde abafada por Roma. Tendemos a imaginar um movimento uno, de contornos nítidos e puros, a compor o cristianismo primitivo. Descobertas arqueológicas recentes e as cartas de Paulo e João no Novo Testamento dão ideia da tensão no interior da Igreja primeva. O copta no papiro sugere agora que a divergência entre versões no início do cristianismo era maior do que se pensava.

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