sábado, 8 de dezembro de 2012

Motoboy, um ‘intruso’ nas cidades


Discursos adotados por e sobre os profissionais são analisados em dissertação de mestrado

LUIZ SUGIMOTO
"Eu sou motoboy, né.  (...) Agora queria aproveitá pra lançá um dilema pra vocês: o que a gente não pode detê-los, junte-se a eles. (...) Porque na real, mesmo, vocês queria se livrar de nóis. Mas não vão... Nóis viemo pra ficá, malandro. Nóis se prolifera, entendeu? Morre 14 no dia, mas chega 30 na gangue. Mas pra falá a verdade mesmo, na real, nóis também queria que vocês não existisse. Imagina as ruas sem carros... Quem faz o transito são os carros, não é nóis, nóis costura. Mas qué se livrá de nóis, mesmo? Deixa nóis passá...
(...) Aí vocês reclama que nóis quebra retrovisor. Nóis não quebra retrovisor, nois só retira os que não são utilizados. Ó, vou deixá um dilema pra vocês flexionarem: o que é a cidade vista de cima? (...) A cidade é uma ferida incrustrada na crosta terrestre... Um organismo pulsante, mesmo. As avenidas são as artérias, as ruas são as veias. (...) Aí você pensa, o que é um motoboy? Bactéria, vírus? Não, não, não. Nóis somo lactobacilos vivos.”
“O motoboy de São Paulo: uma análise discursiva” é o título da dissertação de mestrado defendida por Julia Frascarelli Lucca no final de agosto, sob a orientação da professora Monica Graciela Zoppi Fontana, junto ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Os trechos acima, transcritos pela autora, são de uma performance do humorista Marco Luque no Programa do Jô [Soares], vestido no personagem de “Jackson Five”, quando brinca com o dia-a-dia de um motoboy e reproduz muitas das imagens negativas contra esta categoria de trabalhadores.
Julia Lucca encontrou na literatura vários estudos recentes sobre motoboys, principalmente na área da saúde (medicina, psicologia, enfermagem) e engenharia de trânsito, mas poucos nas ciências sociais, área em que também é formada. Foi o interesse por sujeitos marginalizados que a levou a um projeto de mestrado sobre os motoboys para a área da linguagem, analisando os discursos deles e sobre eles. Para isso, buscou leis que regulamentam a profissão, autores que tratam da nova configuração do trabalho, jornais, sites e blogs, além de realizar entrevistas.
“Identifiquei nos discursos, em primeiro lugar, uma repetição de sentidos bastante negativos sobre o motoboy, sempre tentando mostrar que ele não faz parte do trânsito, que é um ser estranho nas vias”, afirma a pesquisadora. “Esses discursos têm como pressuposto que a cidade e o trânsito são linearmente organizados – e que tudo estaria funcionando perfeitamente, não fosse o motoboy promover a desorganização. A imagem de um sujeito desprovido de princípios básicos de civilidade, educação e respeito provoca efeitos como de segregação.”
Nos discursos analisados, o motoboy é visto como aquele que distorce a organização que haveria na cidade, a ela não pertenceria e, portanto, não deveria estar ali. “A partir desta concepção ideológica de cidade organizada, surgem as imagens de motoboy como uma doença a ser combatida; que prolifera como vírus e bactéria; causador de estresse; kamikaze do trânsito, que sabe que vai morrer; e até mesmo de criminoso, que chuta os carros e assalta os motoristas. O leitor de um site sobre trânsito escreve: ‘Se eu passar por mais um motoboy morto na rua, estarei me lixando. É um imprudente a menos na minha frente’”.
Julia Lucca considera que mesmo iniciativas de planejamento urbano como as moto-faixas, existentes em avenidas da própria São Paulo, são igualmente segregantes, visto que impedem o motoboy de transitar no espaço comum das vias. “Ele deve circular num outro lugar, à margem, e não entre os carros. Também analisei o projeto de moto-faixas de Recife, que ficam no meio da avenida e permitem aos motociclistas se alinhar à frente dos veículos no semáforo, para que saiam primeiro quando o sinal abre. É uma posição que atende melhor aos motoboys, mas ainda é segregantes, pois procura delimitar o espaço das motos”.
Na opinião da pesquisadora, o trânsito é movimento, circulação de vários sujeitos urbanos – motorista, motociclista, ciclista, pedestre – e por isso vê essas tentativas de organização como uma ilusão. “O motoboy precisa mudar de faixa para acessar uma rua transversal; o carro muitas vezes utiliza a moto-faixa, onde, de repente, surge um ciclista. Esta é a realidade do trânsito, que os discursos na legislação e na mídia ignoram, pressupondo uma linearidade, uma organização. Essas ações procuram segregar os sujeitos, ao invés de incentivar que eles convivam harmoniosamente. Não são políticas que promovem a educação, a civilidade e o respeito no trânsito.”
Discursos jurídicos
Julia Lucca também analisou a legislação sobre a profissão de motoboy e mototaxista: a lei federal nº 38.563, sancionada em 2009, no governo Lula, e o decreto municipal nº 12.009, de 1999, na gestão do prefeito Celso Pitta. “Os próprios discursos jurídicos silenciam o sujeito e enaltecem o objeto, legislando sobre a moto e não sobre o motociclista. O decreto de São Paulo, por exemplo, dispõe ‘sobre serviços de transporte de pequenas cargas mediante a utilização de motocicletas ou similares, denominados moto-fretes’. O sujeito é apagado da lei”. 
Nesse ponto, a autora da dissertação cita Karl Marx: “O capitalismo é também um processo ideológico, a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta à desvalorização do mundo dos homens”. “A lei, bem como os discursos da mídia e dos outros sujeitos urbanos, gera também um efeito de criminalidade, ao mostrar o motoboy como aquele que está ‘des’: desregulamentado, desorganizado, deslegitimado e clandestino. Quando a lei está sempre tentando regulamentar o que é real, o motoboy parece estar sempre na ilegalidade. Sua profissão nunca será regulamentada”.
Segundo Julia, os motoboys são na maioria autônomos, sequer possuindo contrato com as empresas, ganhando por entregas. “É uma produção muito intensa, na ilusão de que vão receber o quanto renderem, quando na verdade ficam com uma porcentagem ínfima em relação ao que ganham as agências. Aqueles em regime de CLT recebem um fixo bem menor, mas acham bom: ‘Recebo o meu todo mês, então ando tranquilo na rua’, diz um deles. Nos dois casos, a precarização do trabalho fica evidente. Eles são obrigados a manter a própria moto, bancando financiamento, manutenção e gasolina. Os três entrevistados já sofreram acidentes e, embora não tenham limitação ao trabalho, arcaram com todo o tratamento.”
‘Vida louca’ é o outro
A pesquisadora Julia Lucca afirma que as imagens sobre os motoboys são tão segregantes que nenhum de seus entrevistados foi capaz de afirmar “eu sou motoboy”. “Todos falam deles na terceira pessoa: ‘os caras são muito bacanas, muito unidos e, quando uma moto dá problema, todo mundo para’. Quando a situação é favorável, deixam escapar: ‘até carro a gente para pra ajudar’. O máximo que ouvi de um deles foi ‘eu estou motoboy’, no sentido de transitoriedade: ‘é só uma passagem, esse ano eu saio fora, meu objetivo é táxi’”.
Da mesma forma, acrescenta Julia, nenhum dos entrevistados se significou como motoboy “vida louca”. “Perguntei se eles se identificavam com o personagem Jackson Five. Quando falam sobre os outros motoboys, dizem que é isso mesmo: ‘é o real’. Mas quando pergunto se se identificam com o personagem, respondem de pronto: ‘de jeito nenhum, eu não’. Percebi que o motoboy reproduz essa imagem de motoboy ‘vida louca’, mas quando ele se significa, não. Se eu entrevistar cem deles, ninguém vai querer ser associado às imagens negativas a seu respeito.”
Uma constatação interessante feita pela pesquisadora é a visão que o motoboy possui da moto como uma extensão do seu corpo. “É como se sujeito e veículo fossem uma coisa só. Dizem: ‘eu sinto a agitação da moto até quando não estou mais nela’; ou ‘quando caio da moto, perco as asas’. É o que estou chamando de uma nova subjetivação do trabalhador constituída pelo híbrido sujeito-coisa: o trabalhador que não consegue se ver distante do seu instrumento de trabalho.”
Para reforçar a ideia de que o valor do motoboy fora da moto é mínimo, não apenas no discurso dele como também dos outros, Julia Lucca cita um trecho da apresentação do livro infanto-juvenil “Hermes, o motoboy”, de Ilan Brenman, escrita pelo jornalista Gilberto Dimenstein: “Por toda a parte os vemos estirados no chão, amaldiçoados pelos impacientes motoristas. No asfalto, são imprestáveis, perdem as asas dos pés. Além de não fazerem as entregas tão esperadas, deixam a cidade mais lenta”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário