terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O abracadabra dos impostores


DEBATE ABERTO

O abracadabra dos impostores

Inauguramos 2012 com “previsões” catastróficas. Paranormais, cientistas de origem duvidosa, astrólogos e charlatães de coturno diverso garantiram que o mundo ia acabar no dia 21 de dezembro. Susto na arquibancada. Os maias, oh quantas vezes se pronunciou seu nome em vão!, teriam alertado para o Apocalipse.
Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.(Carl Sagan)

Difícil achar uma criança que não goste de circo. De toldos precários ou estruturas modernas, ele abre um deslumbramento, um mistério que gruda na memória. Viriato Corrêa descreve esta magia com grande sensibilidade num dos capítulos de seu clássico Cazuza. As arquibancadas do Gran Circo Estriguilino estavam sendo montadas. Aquilo “parecia ter, aos nossos olhos, qualquer coisa de sobrenatural, vinda de outro planeta”. Um moleque, o Parafuso, apenas lavava os cavalos da companhia, mas, para a turma da cidadezinha, isso bastava para ele ser considerado “mais do que um príncipe”. É assim mesmo. Um magical mistery tour.

Eu gostava especialmente dos mágicos. Perto da minha casa, existia um velho casarão em ruínas. Corria entre meus amigos a história de que ele era habitado por assombrações. Mal sabíamos que os verdadeiros fantasmas estão dentro de nós. Bem, eu acreditava que os mágicos tinham poderes sobre a legião espectral. Torcia para que seus truques funcionassem e, assim, confirmassem que podiam espantar meus medos. 

Havia, no entanto, um lado Fradinho que gostaria de ver o circo pegar fogo. Que o palhaço fizesse chorar. Que o trapezista sumisse em plena acrobacia. Que o elefante virasse formiga. Que o mágico ferisse de verdade o infeliz voluntário que entrasse na caixa prestes a ser cortada em dois. 

Muitos anos depois, o adulto que virei, vergado por decepções e melancolias, perdeu contato com o fascínio das pequenas ilusões – e maldades - que nos faziam felizes.

Inauguramos 2012 com “previsões” catastróficas. Paranormais, cientistas de origem duvidosa, astrólogos e charlatães de coturno diverso garantiram que o mundo ia acabar no dia 21 de dezembro. Susto na arquibancada. Os maias, oh quantas vezes se pronunciou seu nome em vão !, teriam alertado para o Apocalipse. Quanto lixo e quanta asneira se produziu em torno disso! 

Uma coisa é se deixar iludir, por exemplo, sob a lona do circo. O mágico nos mostra uma pessoa levitando. Sabemos que é uma brincadeira com os sentidos e aplaudimos o talento do ilusionista. Outra, muito diferente e perniciosa, é dar crédito a trapaceiros e aproveitadores, que prometem “ler o futuro”, “trazer a pessoa amada em 10 dias”, melhorar a vida introduzindo letras nos nomes ou repetindo mantras sedativos (lembram do “todo dia, sob todos os pontos de vista, vou cada vez melhor”, do picareta Omar Cradoso ?). É a ilusão consentida. 

Como disse muito bem Carl Sagan, “o primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida”. Todos, absolutamente todos, somos frágeis poeiras cósmicas e vivemos atormentados por todos os tipos de dúvidas: existenciais, políticas, afetivas, esportivas, profissionais. É preciso muita coragem para enfrentá-las sem bengalas hipnóticas, que prometem o impossível. Voltando a Sagan, ele observou que o universo “não foi feito à medida do ser humano, mas tampouco lhe é adverso: é-lhe indiferente”. As galáxias, e com elas as “conjunções planetárias e alinhamentos”, não estão nem aí para os predadores bípedes, pretensiosos, que somos.

Só mesmo nossa fragilidade pode explicar a prosperidade das mandingas como a astrologia. Semana passada esteve entre nós uma pop star do além. Faturando um bom cachê pela campanha de uma lingerie (devia estar escrito nas estrelas), a astróloga norte-americana Susan Miller deitou falação. Ela pilota um website com mais de 18 milhões de visitas mensais. A tagarelice de dona Miller é uma coletânea exemplar de generalidades. Não resiste a três neurônios de dúvida. Vale a pena dar uma olhada em algumas das pérolas.

- Sobre o Brasil: “Uma nação sob o signo de Virgem e com Aquário em ascensão fica fora da linha de fogo das configurações planetárias perigosas que criaram as crises na Europa e nos EUA e que podem continuar criando problemas no ano que vem” – Esqueçam bolhas imobiliárias, falcatruas do sistema financeiro, militarismo neocolonial, exploração capitalista, divisão internacional do trabalho, corrupção. O problema do mundo é que Aquário não está em ascensão. Por falar nisso, o que será que dona Miller quis dizer quando garantiu que, em 2013, “o Brasil” vai bombar ? Duzentos milhões de pessoas vão entrar no paraíso ? Não existe “Brasil”. Como qualquer país, essa é apenas a simplificação de uma teia complexa de relações, uma invenção. Generalizar previsões é o DNA da charlatanice.

- Idosos: “Há possibilidades de implantação de boas políticas públicas para a população mais velha. Isso pode ser explicado por uma ‘amizade especial’ entre Saturno e Plutão em 2013” – Preciso comentar ?

- Recursos naturais: “Como Netuno estará em Peixes (...) podemos ter problemas de fornecimento de água ou desastres naturais, como maremotos e tempestades” – Como também vai nascer e morrer gente, serão cometidos assassinatos, o Carnaval vai ter desfile de escolas de samba e o programa do Silvio Santos continuará aos domingos. Como é que se dá crédito a essas “previsões” acacianas ?

A ciência, que tem na dúvida seu combustível, formula críticas devastadoras à astrologia. No entanto, qualquer pesquisa de opinião mostrará que ela é muito popular. Nos anos 90 (desconheço estatísticas atualizadas, mas desconfio que os números não variaram muito), havia dez vezes mais astrólogos do que astrônomos nos Estados Unidos. Creio que há aí uma aliança muito humana: medo do desconhecido (no limite, medo da Morte) emparelha com o impossível desejo de controlar/antecipar sentimentos e ações. A difícil tarefa de duvidar, experimentar, fracassar, recomeçar, intuir, alma mater de qualquer ciência, é substituída por consolos e falsas perspectivas. A ciência é parceira da sabedoria popular, que aponta caminhos formidáveis para investigações na medicina e na meteorologia. Só não se alia aos embusteiros e aos farsantes, que lucram com as carências e as ansiedades.

Jesuíno dos Santos mora em Firmino Alves, microrregião de Itabuna. Lá, grande parte das pessoas trabalha numa fábrica da Vulcabrás Azaleia. Consultou seu horóscopo antes de sair para o trabalho. “Dia propício para novas experiências. Grandes oportunidades para desenvolver sua criatividade. Número de sorte: 13”. Sorriu. Chegando na fábrica, leu o comunicado que informava que a fábrica vai fechar no início de 2013. Estará, como cerca de 80% da mão de obra formal de Firmino Alves, desempregado. Deve ter achado que foi uma estrepolia de Saturno. Ou uma diabrura de Marte, alinhado com ... o patrão.

Dei uma olhada no site Astrologyzone, da dona Miller. Descobri que meu signo é Aquário e o universo conspira a meu favor. Mas fiquei aflito com um detalhe. Depois de saber que minha bonança, e também das dezenas de milhões de aquarianos mundo afora (será que também dos que morrem de fome na África subsaariana ?), vem de uma sincronização perfeita entre Marte e Urano, eis que surge a previsão para minha vida amorosa. Diz lá que eu vou ter um upgrade, trazendo para perto uma mulher com quem tive (?) um encontro. Alternativamente, alguém vai me apresentar outra mulher que será “muito importante no futuro”. Para não deixar nenhuma brecha, se eu já tiver uma relação estável e duradoura, terei um filho em breve. Isso é tremendamente comprometedor. Se minha mulher souber dessas previsões, estou frito. Se prevalecer a primeira situação, estou condenado, no mínimo, à prisão domiciliar. Caso vingue a segunda, vamos ter que revolucionar a medicina. Filho nessa altura do campeonato ?

Andarilho por vocação, prefiro continuar caminhando por aí, convivendo com minhas dúvidas e a absoluta falta de sentido prévio para a vida.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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