domingo, 9 de dezembro de 2012

O cartunista da luta palestina


O cartunista Carlos Latuff tem 41 anos e viveu quase toda vida em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Solteiro, não tem ideia de quantas horas trabalha por dia, sobrevive dos desenhos e charges para a imprensa sindical e dedica quase todo seu tempo livre aos palestinos e à luta pelos direitos humanos mundo afora. Apaixonado por fotografia e fã ferroviário, mantém o blog Ferrovias do Brasil, além de uma galeria online com seu trabalho e uma página no Twitter.

Niara de Oliveira

É, em geral, pouco conhecido e reconhecido no Brasil. Mas seus desenhos estão presentes em toda manifestação pró-Palestina em qualquer lugar do mundo e os carros dos comboios de ajuda humanitária à Faixa de Gaza são cobertos com seus cartuns, como mostra este post, publicado no blog de Maria Frô.

Falando às vésperas de viajar para Atenas — onde é o único “artivista” brasileiro presente ao Resistance Festival, Latuff respondeu a uma verdadeira sabatina virtual em dois momentos. Primeiro, uma entrevista concedida a mim via MSN, numa madrugada de sábado; depois, via Twitter num domingo à noite com a participação direta de mais de vinte internautas. Conheça um pouco mais de sua vida, ideias e trabalho.

Onde nasceste? Como foi a tua infância, família, irmãos…?
Nasci e me criei no Rio de Janeiro, em São Cristóvão. Meu pai, servidor público do extinto Instituto Brasileiro do Café; minha mãe, dona de casa inicialmente e depois tendo que trabalhar num colégio para ajudar nas despesas. Infância introspectiva, não gostava de passear, saía a contragosto. Gostava mesmo de ver desenhos de Hanna Barbera e Ultraman na nossa TV preto-e-branco. Além, é claro, de desenhar. Tive dois irmãos, já falecidos.

O desenho sempre esteve presente?
Sim, sempre. Gostava de desenhar até em embalagem de cigarro e caixa de remédio, pasta de dente. Alguns destes desenhos tenho até hoje. Gostava também de revistas para colorir e gibis.

Quando menino sonhavas com o que, em ser o que? Sabias que o desenho era o caminho?
Sempre quis ser desenhista, só que tanto eu quanto minha família acreditávamos que isso era coisa de gente rica ou famosa, gente que tinha parente influente: o chamado “QI” (Quem Indica). O senso comum era que ser desenhista era trabalhar para revistas e jornais, portanto, não era coisa pra qualquer um. No entanto, sempre que me viam desenhando comentavam que seria desenhista.

Tens formação acadêmica?
Nenhuma, tenho o segundo grau (ensino médio) apenas.

Religião?
Fui batizado, estudei em colégio de freira, fiz primeira comunhão, mas nada disso foi suficiente para seguir o caminho do catolicismo. Não tenho religião atualmente.

Onde o ativismo te encontrou?
Só foi me encontrar lá pelo final dos anos 90. Por volta de 1996, quando assisti na TV um documentário sobre os zapatistas. Mesmo tendo iniciado minha carreira na imprensa sindical de esquerda (onde trabalho até hoje, com muito orgulho), até então não me sentia ou agia como militante de qualquer espécie. Achava inclusive que convicções políticas e profissão eram coisas que poderiam ser separadas.

Daí em adiante, o que mudou?
Cheguei a trabalhar como cartunista na campanha de FHC, ilustrando cartilhas. Com o tempo, fui entendendo que não se pode servir a dois senhores. Se achar de esquerda e trabalhar pra direita não rola. Especialmente em se tratando de emprestar meu talento, meu traço, pra safado. Compreendi que deveria colocar meu trabalho a serviço de causas humanitárias, sociais, da luta dos povos.

Com que idade começou a trabalhar? Não ir para a universidade foi uma opção?
Comecei trabalhando aos 15 anos como office-boy numa agência bancária na Visconde de Pirajá, em Ipanema. Nunca pensei em ir pra faculdade porque o que eu precisava saber para ser um desenhista não estava na academia. Na verdade, boa parte do que aprendi no meu ofício foi por conta própria. Salvo um curso que fiz no SENAC e outro no Parque Lage, este último de grande valia.

Tu escreves bem demais. Lês muito?
Leio bem pouco, confesso que isso é meu calcanhar de Aquiles. Eu admiro quem consegue ler um livro do começo ao fim.

O teu ativismo exerces todo através do desenho ou tem outras formas?
Tento me colocar publicamente através de minhas charges, escritos, opiniões, palestras, vídeos, fotos, porque acredito que omitir-se não é opção.

Como foi ou onde foi que decidiste ir ao Oriente Médio?
Ao fazer uma charge sobre a violência dos colonos judeus contra palestinos e enviá-la ao Palestinian Center for Peace and Democracy, em Ramallah, surgiu o convite deles para visitar a Palestina e conhecer o drama daquele povo de perto. Foi uma viagem iniciática, nunca se volta o mesmo de uma coisa assim. Isso foi em 1999.

O ativismo pró-palestinos ocupa quanto do teu tempo e trabalho hoje?
Pra falar a verdade, passo a maior parte do tempo desenhando para a imprensa sindical sobre diversos assuntos. A questão é que a causa palestina me emociona muito, minha relação com aquele povo é mais passional, assim como também é passional a forma como desenho sobre a violência da polícia carioca.

Quantas horas trabalhas por dia?
Não tenho idéia.

Imagino que recebas dezenas de pedidos de desenhos e devas recusar muitos desses pedidos. Tens ideia de quantos?
Tento atender sempre dentro das minhas possibilidades. A maior parte destes pedidos é de integrantes de movimentos populares (movimento estudantil, sem-terra, direitos humanos, sem-teto) para ilustrar materiais informativos, cartazes, camisas, etc. E fico feliz de poder ajudar. Não tenho ideia de quantos. São muitos, pode ter certeza.

Há um grande teor religioso nesse embate entre judeus e palestinos. A saída estaria no ativismo sem esse componente?
Por conta da Palestina ser sítio sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos, o ingrediente religioso está presente, mas não é determinante. O conflito da Palestina é essencialmente geopolítico.

Sempre percebi que o combustível dos ativistas são causas justas e utópicas, quase impossíveis. Tu tens esperança de ver a Palestina livre ou pelo menos Gaza desbloqueada?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares para qual não tenho resposta. Tudo o que posso dizer é que enquanto viver estarei do lado do povo palestino para o que der e vier.

Sendo o conflito da Palestina geopolítico, qual é a solução? O que pra ti é a solução, já que a convivência pacífica entre judeus e palestinos hoje parece tão improvável?
A solução é fazer justiça aos palestinos que tiveram suas terras tomadas na mão-grande, com o beneplácito das superpotências e da ONU. Fazer justiça aos tantos refugiados impedidos de voltar a sua terra natal, sendo obrigados a viver em favelas como as que vi na Jordânia e no Líbano. É reconhecer o direito do povo palestino à soberania.

Alguma esperança da ONU assumir seu papel na solução dos conflitos e de mediadora da paz?
Enquanto houver Estados Unidos, não.

Como tu achas que essa emergência do Brasil na mediação de conflitos internacionais pode ajudar a Palestina? 
Parece que os Estados Unidos têm a primazia, quando o assunto é Oriente Médio. Nem mesmo as opiniões da Liga Árabe ou da ONU contam, quando o assunto é Israel-Palestina. Ninguém tem coragem de melindrar Washington. Pelo menos, até agora. O acordo entre Brasil, Turquia e Irã pode ser o início de uma quebra de paradigma.

Eu li um comentário teu sobre a esquerda brasileira, que estaria mais interessada nas eleições presidenciais. Constatação apenas ou crítica?
A entrada de novos atores naquele cenário. Constatação e crítica. Claro que quando me refiro a “esquerda” me refiro àquela institucionalizada, que joga de acordo com as regras, que aposta tão somente nesse sistema eleitoral viciado. Esquerda pra mim de verdade é movimento popular, de massa, de base.

Opinião sobre o governo Lula?
Costumava ver mais mobilização de rua quando FHC era presidente. Parece que um dos êxitos de Lula foi ter engessado o movimento sindical e dividido a esquerda ainda mais. Mas como sempre costumo dizer, prefiro discutir o sistema econômico, que não mudou, do que indivíduos. Caso contrário, entraremos na polarização inútil. Democratas versus Republicanos, como nos EUA.

Costumas te posicionar nas disputas eleitorais. Declaras apoio, voto a candidatos?
Não.

Votas? O que pensas dessa nossa democracia sistema eleitoral. T eens um ideal de democracia?
A última vez em que votei em alguém foi no pleito em que Lula se elegeu pela primeira vez. De lá pra cá tenho anulado conscientemente. Eu que já fiz visitas forçadas a delegacias por desenhar contra a violência policial, acho engraçado quando me falam em democracia, instituições democráticas. Preciso aprender o que seria a tal democracia. Certamente não deve ser isso que eu vivo aqui no Brasil.

Sempre que se reclama dessa democracia, vem alguém lembrar do tempo em que não a tínhamos e que muitos morreram para que pudéssemos votar, e etc. Como vês a transição da ditadura para o que temos agora (já que não consideras como democracia)?
Duvido que os guerrilheiros do Araguaia ou da guerrilha urbana tivessem sacrificado suas vidas pra gente poder apertar botão na urna eletrônica e eleger gente como Sarney ou Maluf. Definitivamente, não foi pra isso que muitos tombaram enfrentando a ditadura. Mudança pra valer é, por exemplo, combater o latifúndio, e não importa o quanto você vote. Não são políticos que o farão, até porque muitos deles são latifundiários. Existe governo e existe poder. Troca de governo se dá com eleição. Troca de poder se dá com revolução. Um bom mote para se Twittar .

Um dos grandes argumentos daqueles que defendiam a não-revisão da Lei da Anistia, no caso recente do julgamento no STF, é que os guerrilheiros da esquerda não lutavam por democracia. Estás afirmando o mesmo?
Se isso que temos atualmente é democracia, então não, não foi pra isso que eles lutaram. (Essa entrevista vai acabar um hora, né?)

Qual a tua maior utopia?
Não tenho nenhuma.

Ver a Palestina livre não é uma?
Isso é uma necessidade prática, não utopia. Utopia é bater os braços e voar.

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