segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O popular e o medievalismo em Suassuna


Morre o cachorro da mulher do padeiro. Em uma tentativa de fazer o padre de Taperoá enterrar o animal “em latim”, João Grilo, empregado do padeiro, argumenta que o cão era muito inteligente e que “botava uns olhos bem compridos” para o lado da igreja antes de morrer. O que só poderia significar que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Entendendo a situação, prossegue a personagem, o patrão acrescentou ao testamento do animal dez contos de réis para o padre e três para o sacristão. A cena termina, é claro, com o animal “sepultado”.

Patricia Lauretti

É na base da artimanha que João Grilo, personagem da peça Auto da Compadecida, do paraibano Ariano Suassuna, consegue tudo, ou quase tudo. Ele tenta negociar até mesmo o destino pós-morte com a Virgem Maria. As peripécias sempre contam com a ajuda do parceiro Chicó. Da mesma forma, age outra dupla da literatura de Suassuna: Caroba e Pinhão em O Santo e a Porca. As manobras conduzem a ação dramática e são estudadas na dissertação de mestrado “O arlequim nordestino: as personagens-palhaço de Ariano Suassuna”, de Romina Quadros Borba, apresentada ao departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes (IA), sob orientação da docente Larissa de Oliveira Neves Catalão.
Além de analisar as peripécias das duplas, a dissertação aborda a estética medieval e renascentista na cultura popular brasileira expressa na obra teatral de Suassuna. “Os elementos presentes no universo do autor abarcam um leque de manifestações da cultura e do teatro medievais – como as cavalhadas, as festas religiosas, o teatro de rua, o auto, a farsa, o romance de cavalaria, a lenda do Santo Graal”, detalha a pesquisadora. A meta do estudo é avaliar como se dá essa transposição.
Romina, que também é professora de história na rede pública de ensino em Campinas, sempre traz as referências dos diferentes períodos trabalhados na dissertação. “A cultura popular nordestina é marcada pelo medievalismo ibérico. As manifestações, que já vêm da religiosidade medieval, com o passar do tempo vão se modificando”, explica.
Os “palhaços” de Suassuna são derivados do Arlequim da Commedia dell´Arte. Pela própria etimologia da palavra, são aqueles que vivem “aprontando”, são diabinhos, faunos ou sacis pela livre tradução de Romina. Tornaram-se não só personagens tradicionais na Comédia dell’Arte como figuras do circo. “As duplas de palhaço, o palhaço e a besta, um esperto e um ‘abobado’, aparecem sempre no circo”.
Mas, antes de trazer à tona o teatro popular italiano, a pesquisadora foi buscar as origens das personagens na dramaturgia romana de Terêncio e Plauto (230 a. C. 180 a. C.), especialmente Plauto. A temática dos irmãos gêmeos separados na infância de Os Dois Menecmos é recuperada por Shakespeare em A Comédia dos Erros, assim como Aulularia ou A Comédia da Panela, serve de inspiração para Moliére em O Avarento, e para Suassuna em O Santo e a Porca.
A dupla de criados – os “personagens-narradores” –, que consegue driblar os patrões, vem desde Plauto, representando uma forma de justiça social “já que os pobres ‘enganam’ os mais ricos”. Suassuna sempre acrescenta o tempero de sua terra. “As personagens se ambientam dentro do contexto nordestino. Um criado do Moliére ou de Plauto ou de Shakespeare serve como modelo para Ariano, mas não é como João Grilo, Chicó ou mesmo a Caroba de O Santo e a Porca”. Inspirada nas criadas de Moliére e Shakespeare, Caroba é uma mocinha nordestina, mas que tem um noivo que anda com um facão para se proteger, “que é um costume do sertão”.
Romina também chama a atenção para o trecho no qual o patrão de Caroba tenta lhe oferecer como pagamento um pedaço de jerimum, mas ela não aceita porque quer o dinheiro. “Mudam-se a estética, a ambientação e o contexto dessas personagens”, salienta.
Dentro da nova configuração que as personagens assumem na obra de Suassuna, Romina cita mais exemplos. O príncipe do romance A Pedra do Reino é um deles: “um rapaz castanho que não tem o padrão nórdico loiro, de olhos azuis”. Ou mesmo Jesus, no Auto da Compadecida, que surge como negro. João Grilo, que saiu da literatura de cordel é chamado sempre de “amarelo”, que seria uma referência à mestiçagem que ocorre no Nordeste e, também, ao aspecto doentio das pessoas que vivem com doenças endêmicas.
“Tentei trabalhar com essa ambientação dentro da cultura popular e dentro da ideologia estética proposta por Suassuna no movimento Armorial”. O resgate das tradições nordestinas proposto por Suassuna, avalia, é iniciado justamente quando há uma “invasão da cultura anglo-americana e a ampliação da cultura de massa, da tecnologia e da tecnocracia”. 
Segundo Romina, o autor faz críticas a um “complexo de vira-lata” do brasileiro, evidenciando a beleza dos povos morenos e latinos numa espécie de antropofagia “não oswaldiana”, mas nos moldes de outros autores como Gilberto Freyre ou Silvio Romero, que servem de base para ele.
Do abrangente trabalho de Suassuna, Romina ainda garimpou outras referências do medievalismo como o teatro de mamulengo em A Pena e a Lei. O teatro de fantoches também tem raiz na Idade Média, quando a Igreja utilizava os bonecos para difundir seus preceitos. Nesta peça, o gesto dos atores faz referência aos bonecos e apenas no terceiro ato eles recuperam o movimento natural dos seres humanos.
Artimanhas
As artimanhas das personagens-palhaços são descritas na dissertação paralelamente à contextualização da cultura nordestina e medieval. De acordo com Romina, todas as outras personagens das peças estão subordinadas a tais peripécias.
Em O Santo e a Porca, a pesquisadora destaca uma passagem de Caroba, que tranca dois casais em dois quartos, para obrigar o casamento de ambos. “Caroba quer o casamento da jovem patroa com o rapaz que ela ama e da tia solteirona com o velho que quer se casar com a sobrinha. Ela faz a maior confusão e, no fim, o pai da moça é obrigado a fazer os casamentos porque senão a moça e a tia vão ficar ‘mal faladas’”.
Transgredir uma ordem estabelecida acabaria transformando as personagens em heróis populares. “Eles fazem coisas que são condenáveis, mas ganham a simpatia das pessoas. O João Grilo, por exemplo, contesta até o cangaceiro. Ele só não contesta Jesus e a Virgem Maria porque até o diabo ele contesta. É uma personagem que lutava pela sobrevivência através dessas artimanhas”.
O que leva a pesquisadora aos autores trabalhados na bibliografia da dissertação, entre eles Lígia Vassalo e Mikhail Bakhtin, além do próprio Suassuna, para os quais, segundo Romina, “o riso é sinal de inteligência”. ”Estas personagens, que agem por vias tortas, trazem uma contestação, uma crítica social ou o riso de libertação que remete à transgressão possível na cultura medieval”.

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