domingo, 16 de dezembro de 2012

Que saudade do subdesenvolvimento!


Terça-feira passada, dia 25, Francisco de Oliveira se reuniu com Leda Paulani, Luiz Weneck Vianna e Paulo Arantes para um debate sobre o livro Crítica à razão dualista, considerado um dos principais livros sociologia brasileira. O evento faz parte de um ciclo de debates, no Rio de Janeiro e em São Paulo por ocasião do quadragenário do livro.

Leda Maria Paulani

Dez anos atras, quando o livro completou seus 30 anos Leda Paulani dedicou um ensaio ao livro, que publicamos na íntegra abaixo:
Os trinta anos da “Crítica à razão dualista”, ou… Que saudade do subdesenvolvimento!
Crítica à razão dualista, de Francisco de Oliveira, publi­ca­da­ pela primeira vez como ensaio em 1972 e transformada em livro em 1973, é um clássico da reflexão sobre o Brasil. E não se trata de um automatismo de linguagem. Estamos diante de um clássico não apenas pela infinidade de vezes em que aCrítica foi citada e comentada nestas suas três décadas de vida ou por conta da fortuna crítica que gerou (menos rica, aliás, do que merecia…). Tampouco se lhe coloca o rótulo apenas por ter se tornado referência obrigatória a quem quer que pretenda refletir sobre a natureza do capitalismo que por aqui germina. ACrítica é um clássico principalmente por sua in­discutível e dolorosa atualidade.
Depois de ter demonstrado, por a + b, que a especificidade do ca­­pitalismo periférico brasileiro estava justamente em que a desigualdade e a exclusão haviam se transformado em elementos vitais de sua dinâmica, Chico1 encerra seu famoso texto com as seguintes palavras: “Nenhum determinismo ideológico pode aventurar-se a prever o futuro, mas parece muito evidente que ele está marcado pelos signos opostos do apartheid  ou da revolução social.” A enormidade­ da afirmação, que desconjuntava cepalinos e conservadores, aqueles porque tinham a convicção arraigada de que bastava “consertar” a parte estragada do sistema que tudo entraria nos eixos, estes porque se apavoravam com a perspectiva da alternativa colocada por Chico (que ele chamava de “revolução” certamente por épater la bour­geoisie), foi de uma precisão assustadora.
Trinta anos depois, como não sobreveio a revolução social, a figura dantesca doapartheid está em cada palmo de terra e em cada esquina de nossas cidades:
… grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa e lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares – os leitos das tradicionais e bancárias e banqueiras ruas 15 e Boa Vista em São Paulo transformaram-se em tapetes de quinquilharias – o entorno do formoso e iluminadíssimo Teatro Municipal de São Paulo (…) exibe o teatro de uma sociedade derrotada, um bazar multiforme onde a cópia pobre do bem de consumo de alto nível é horrivelmentekitsch, milhares de vendedores de coca-cola, guaraná, cerveja, água mineral, nas portas dos estádios duas vezes por semana…
A horrível mas fiel descrição é da lavra do próprio Chico que, para esta reedição de seu clássico pela Boitempo, escreveu um ensaio formidável, “O ornitorrinco”, no qual deu-se ao trabalho não de mostrar suas inegáveis qualidades de vidente, o que não é preciso, mas de elaborar a necessária atualização de sua Crítica, engordada por mais três décadas do mesmo jogo perverso.
“O ornitorrinco” foi o nome que Chico deu ao Brasil capitalista de hoje. Animal de difícil classificação, combinação esdrúxula de características de mamífero, de ave e de réptil, o ornitorrinco pareceu a Chico a forma mais adequada para qualificar a espécie de capitalismo que se gerou no país. Modernidade e atraso, como sempre, mas desta vez sem remissão e levados ao paroxismo. Mas… e o governo Lula? Não teria chegado finalmente o momento, por adversas que fossem as ditas condições objetivas, do resgate do espírito republicano necessário a uma refundação da sociedade? Não estaria aí a centelha que despertaria o Brasil de sua secular letargia? Ainda mais com os trabalhadores sendo em princípio proprietários de grandes fundos de inversão e de investimento, não teria afinal chegado a hora de levar a efeito, e desta vez semépater la bourgeoisie, a dita “revolução­ social”? Chico chega lá.
No início de seu “Ornitorrinco”, Chico relembra a forma específica do subdesenvolvimento brasileiro que ele indicara na Crítica: a funcionalidade, para o processo de acumulação, da agricultura de subsistência e, mais tarde, do inchaço das cidades, a idêntica funcionalidade da irresolução da questão da terra e do estatuto da força de trabalho e, por fim, a debilidade do financiamento interno da acumulação de capital, gerando dependência externa crescente. Relembra também suas colocações sobre o papel da burguesia nacional na manutenção dessa situação. Na Crítica, Chico argumentara que a singularidade desse subdesenvolvimento trazia em si a possibilidade de sua superação, desde que a burguesia nacional compartilhasse com as classes subordinadas o projeto emancipatório, basicamente, reforma agrária e crescimento da organização dos trabalhadores. Tomadas essas providências, a inserção do país na divisão internacional do trabalho permitiria a queima de etapas, possibilitada pelo padrão tecnológico então vigente, de acumulação por soluço.
O próprio Chico, porém, já constatava ali, desoladamente, que a burguesia nacional virara as costas a essa possibilidade, preferindo, em vez disso, aliar-se ao capital internacional, que já invadia fortemente seu reduto de classe2, escolha essa que o golpe de 1964 apenas ratificara. Daí classificar o subdesenvolvimento não nos marcos das teorias evolu­cionistas, caracterizadas pela finalidade e pela ausência de consciência, mas considerá-lo como fenômeno passível de ser descrito weberianamente (uma ação com sentido), e marxianamente (a articulação das formas econômicas inclui a política como elemento estruturante).
Isso posto, o que foi feito desse subdesenvolvimento três décadas depois? Chico lamenta, mas informa seu passamento e reza-lhe a missa de réquiem. Desperdiçada a possibilidade anteriormente aberta, o acúmulo de mais quatro décadas de acumulação com concentração de renda e aumento da desigualdade e da exclusão e com a continuidade e exa­cer­bamento da dependência financeira externa combinou-se com o advento da terceira revolução industrial, comandada, além de tudo, pelos imperativos da acumulação financeira, hoje predominantes em nível mundial. No paradigma molecular-digital, como Chico o denomina, o progresso técnico é incremental, impossibi­litando a queima de etapas e o respiro de um the day after, quando­ já não se precisaria mais de elevadas taxas de investimento. Por conta disso, ele traz unidas ciência e tecnologia e está trancado nas patentes, não sendo, portanto, universalizável. Finalmente, ele é descartável e efêmero, exigindo um esforço de investimento que está sempre aquém das forças internas de acumulação dos países periféricos. ­
Nesse contexto, o que resta a esses países a título de “desenvolvimento tecnológico” são apenas os bens de consumo, o descartável que eles podem (e devem) copiar. Além disso, graças à divisibilidade das formas que produz, e que Chico sintomaticamente credita ao “salto mortal que a terceira revolução industrial faz na direção da plenitude do trabalho abstrato”, o novo padrão é capaz, nas suas palavras, de “descer aos infernos da má distribuição de renda”, fazendo chegar aos estratos mais baixos todas as formas dos produtos da revolução molecular-digital. A empregada doméstica, sem as mínimas condições de ter um padrão de vida decente, na maior parte das vezes sem registro e sem direitos e sem jornada de trabalho definida, mas proprietária de um celular, traduz à perfeição o que Chico está querendo dizer.
E é assim, por caminhos inusitados, que, com quarenta anos de atraso, configura-se o acerto das teses que Chico destruíra na Crítica. A má distribuição da renda e da riqueza, resultantes fundamentalmente da permanência do estatuto rebaixado da força de trabalho e da irresolução da questão da terra, que foi funcional à expansão capitalista ao longo de pelo menos cinco décadas (de 1930 a 1980), porque sustentou uma forma de acumulação que a financiou, vai se revelando mais e mais incompatível com as exigências impostas pelo novo padrão molecular-digital, dominado pelos imperativos da acumulação financeira. Por mais que se tente correr contra o relógio e “acertar o passo do país” com esse novo padrão, os resultados são sempre pífios, não só pela efemeridade e descartabilidade que o caracteriza, mas principalmente porque, construídas dessa forma, as bases internas da acumulação são-lhe absolutamente insuficientes. Resumindo, se antes, a possibilidade estava aberta e só não era realizada por uma “escolha” das elites internas, agora ela não existe mais.
Mas que alternativas existiriam então para os países periféricos? Se é que o termo faz algum sentido (e ele é meu e não do Chico, que nada tem que ver com a “viagem” realizada neste parágrafo), restaria a possibilidade, de um, por assim dizer, “desenvolvimento verdadeiramente alternativo”, de feitio democrático e popular. Ele seria pautado, em primeiro lugar, por uma redistribuição radical da renda, por meio de mecanismos como a renda básica de cidadania3, que poderá vir a ocupar, dado o contexto do mundo do trabalho hoje imperante, o papel que ocupou, e ainda ocupa no centro do sistema, a assim chamada rede de proteção social, tecida, contudo, sobre os marcos da relação salarial. Ele seria igualmente pautado por uma redistribui­ção da riqueza, que envolveria não só uma verdadeira reforma agrária, como a progressividade efetiva dos impostos sobre patrimônio, transferência e herança. Por fim, ele exigiria uma radicalização dos mecanismos de democracia direta, única forma de garantir a transparência e o controle social dos recursos públicos.
Mas quem seria capaz de operar tamanha reviravolta? Que forças políticas seriam capazes de implementar um programa dessa natureza? Quem sabe um partido político nascido e ceifado nas lutas pela democratização, pela republicanização e pela soberania do país. Um partido de esquerda, parido não das vanguardas intelectuais e políticas, mas da luta de classes, construído de baixo para cima. Então estamos feitos! O PT é esse partido, talvez único no mundo. E ele ganhou as eleições presidenciais e o governo federal em 2002.
Mas, lamentavelmente, a história parece que não vai ter um final feliz. Contrapostos a tais expectativas, os seis primeiros meses do governo Lula foram desoladores. E não só pela política econômica, mais realista que o rei. Com todo o cacife político que angariou no processo eleitoral, a despeito das concessões feitas, o governo do PT poderia ter começado de modo agressivo no sentido do que aqui chamamos “desenvolvimento alternativo”. Mas optou, ao contrário, por começar pela reforma da Previdência, para adaptar o país à modernidade dos fundos de pensão, muito funcionais aos imperativos da acumulação financeira, mas que são já de triste história nos países do centro, graças à seqüência de bancarrotas e de promessas de benefícios não cumpridas. E fez isso, além do mais, satanizando os servidores públicos, atribuindo-lhes indiretamente a culpa maior pelo descalabro social do país. Como se explica isso?
Mestre Chico tem a resposta e a apresenta no “Ornitorrinco”. Para ele está em formação no país uma nova classe social, aparentada daquilo que Robert Reich chama de “analistas simbólicos”. Essa nova classe reuniria, de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e, de outro, operários transformados em operadores de fundos de Previdência, núcleo duro do PT. A identidade dos dois casos, afirma Chico, “reside no controle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do mapa da mina”. E Chico mapeia essa nova classe, valendo-se do que há de melhor na literatura sobre o tema. Marxianamente, ela tem um lugar e uma função claros na reprodução do sistema: como “experts da medida” e “agen­tes­ da medida”, eles estão no sistema financeiro e em suas mediações estatais e detêm o controle do acesso aos fundos públicos. Thompso­nia­namente, eles têm uma experiência de classe, que é a experiência das elites, e, logo, não se trata mais de trabalhadores, ainda que não se possa confundi-los com a burguesia. Gramscia­namente, a classe se formou a partir de um novo consenso sobre mercado e Estado, o que explica não só o fascínio e a opção, agora explícitos, por um caminho do tipo “terceira via”, como a pragmática e recente convergência entre o PT e o PSDB. Finalmente, socorrendo-se mais uma vez de Marx, Chico lembra que a referida classe formou-se justamente na luta pela apropriação do lugar onde se forma parte do lucro, ou seja, os fundos públicos.
Sendo assim, mesmo com a histórica vitória do PT nas eleições presidenciais de 2002, o ornitorrinco deverá ter fértil e longa vida, aprofundando e magnificando o apartheid social que Chico previra há trinta anos. É claro que ele pode estar completamente errado e, conhecendo-o, acredito que ele sinceramente torce por isso. Mas ele tem acertado tanto…
Publicado originalmente na Revista Margem Esquerda #2 (pp.198-203)
Leda Paulani é economista e doutora em Economia pelo IPE-USP, é professora do Departamento de Economia da FEA-USP e da pós-graduação em Economia do IPE-USP. Além de colaboradora da Revista Margem Esquerda, tem artigos publicados em revistas acadêmicas nacionais e estrangeiras e é integra o conselho editorial de publicações como a Revista de Economia Política

Nenhum comentário:

Postar um comentário