domingo, 16 de dezembro de 2012

[Transformar a sociedade] A pulga que incomoda



 
Selvino Heck
Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República
Adital
A pulga, esse animal minúsculo que a gente quase não vê, incomoda, e muito, quando está debaixo da roupa. A gente sente algo deslizando de leve, não sabe bem o que é. Escapa rente à pele e ao tecido, circula, fazendo coceira, nos pelos da perna ou se emaranha nos cabelos. Pula que só, corre que nem se vê, escapa dos dedos igual sabonete liso no banho, como sapo que pula no meio do banhado e desaparece.
Lembrei da pulga incômoda no VIII Encontro Macro Norte da Rede de Educação Cidadã (RECID), de 23 a 28 de novembro, em Rio Branco, Acre, com participação de 60 educadoras/es populares e lideranças socais de todos os Estados do Norte. O tema central era: "Pela Unidade da Educação popular e das Bandeiras de Lutas na Amazônia”, com o subtema: "Transformação social é possível com educação popular para uma outra Amazônia”.
Falei na análise de conjuntura inicial do Encontro: "A América Latina, pela luta do seu povo e dos movimentos sociais e populares, vem e continua se contrapondo nas últimas décadas ao modelo neoliberal e, pela primeira vez na história, não deixa as elites reinarem sozinhas. Num mundo capitalista ainda hegemônico, mas em crise, numa América do Sul e Latina que resistem e buscam a mudança, o esforço central é a construção e formulação de um projeto de desenvolvimento alternativo que coloque no centro valores como a igualdade, a soberania, a distribuição de renda, o respeito ao meio ambiente, um novo homem, uma nova mulher. É preciso fazer o debate das grandes questões: projeto de desenvolvimento, estratégia de mudança, democratização das políticas públicas. Por outro lado, é preciso pôr o pé no barro, organizando o povo na base. ‘Nosso papel é esse mesmo: ser pulga e incomodar’. Quanto maior for essa consciência, mais avanços vão acontecer. Qual o papel da RECID e dos movimentos sociais que estão envolvidos nesse processo? Como podemos avançar nesse processo? Como é que a gente vai aglutinar forças? Como vamos pensar um novo processo de educação popular?”.
O VII Encontro Macro Norte da RECID desenrolou-se num clima de celebração e debate. Na mística de abertura, foram relembrados mártires, tendo como cenário um caminho em meio à floresta amazônica com elementos naturais e típicos da região –o buriti, sementes de açaí, folhas, flores, o rio, os pássaros-: Marçal Tupã, Che, Wilson Pinheiro, Chico Mendes, Irmã Dorothy, Adelino Ramos, José Cláudio Ribeiro da Sila e Maria do Espírito Santo da Silva. E era declamada uma frase de cada mártir, como a de Irmã Dorothy: "Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar”.
Na saudação em nome de Tião Viana, governador do Acre, Marcos Afonso, Diretor da Biblioteca Pública, disse: "Quando acabamos de vivenciar a mística, todos os mártires levantaram como fênix e fizeram a pergunta: este é o meu legado. Qual o seu? Quando participo de um Encontro da RECID, meu coração se enche de esperança. A RECID é um espaço que vem dando oportunidade para as pessoas que são excluídas. Eu olho para esse trabalho e vejo que a luta vale a pena, e sempre vai valer”.
A bela frase –‘nosso papel é esse mesmo: ser pulga é incomodar’– não é minha. É tirada de uma entrevista de Cândido Grzybowski, ‘um gaúcho de fala mansa, mas de convicções rígidas’, Diretor Geral do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), fundado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (O Globo – AMANHÃ, 20.11.12, p. 14). É como disse no Encontro Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo: "Temos que ser críticos em qualquer lugar que estejamos. Nosso papel é: conhecendo a realidade, fazer a mobilização. Com a criticidade se ampliando, vamos conseguir ter uma nova interpretação da sociedade em que vivemos. E a gente tem que fazer a leitura de mundo com o povo e não pelo povo.” Ou nas palavras de Vera Lúcia Lourido Barreto, da equipe do TALHER nacional: "Queremos uma educação popular crítica freireana. A missão é estar com os pobres, com os empobrecidos de cidadania, de políticas públicas, de direitos sociais”.
A Rede de Educação Cidadã, que completa 10 anos em 2013, muitas vezes é pulga que incomoda. Mas ao mesmo tempo aponta caminhos e, no saber popular e coletivo, procura seguir os passos de Chico Mendes: "No começo pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras; depois pensei que estava lutando para salvar a floresta amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade.”
Em catorze de dezembro de dois mil e doze.

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