sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Comida e política servidos no mesmo prato



FASE
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
Adital
Debate na UERJ faz pensar sobre papel individual e coletivo quando o tema é alimentação
Lívia Duarte, jornalista da FASE
Comer como ato político. Esta ideia foi mobilizadora do debate sobre os conflitos de interesse na relação público e privado/comercial na área de alimentação e nutrição que movimentou um dos audiórios da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) na última sexta-feira (01/02). O convite aos professores Fátima Portilho e Renato Maluf – ambos da Pós Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) - foi realizado pelo Coletivo de Desdobramentos do World Nutrition Rio 2012, seminário internacional de nutrição realizado no ano passado. Luciene Burlandy, da UFF, foi a moderadora da mesa que comentou as palestras proferidas em 2012 – reapresentadas em vídeo – por Vanessa Schottz, da FASE e do Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e Tim Lobstein da Associação Internacional de Estudos contra a Obesidade (IASO).
No vídeo, as duas falas apontaram tentativas de resistência da sociedade ao modelo de produção de alimentos atual. Este, segundo os palestrantes, não favorecem a saúde. Vanessa exemplificou isto com a redução da variedade de alimentos disponíveis e as mudanças nos hábitos alimentares a partir da oferta e da propaganda, que desvaloriza produtos locais. "Há muita coisa entre a produção e o consumo e isso vem sendo invisibilizado. Revertemos isso, por exemplo, encurtando distâncias, estimulando compras públicas da agricultura familiar. Os nutricionistas são importantes nestes processos. Devem conhecer os movimentos políticos relacionados à soberania alimentar e ao direito humano à alimentação como a Articulação Nacional de Agroecologia, a Campanha contra os Agrotóxicos e pela Vida e a rede pela regulação da publicidade de alimentos”, afirmou a nutricionista, que também lembrou do Consea como "importante espaço político de consertação da sociedade com o governo para construção de políticas públicas”.
Já Tim Lobstein, que apelida as empresas e alimentos que oferecem como "Big Snack” (grande lanche, em inglês), lembra que a alimentação é cada vez mais processada e que comida industrializada tem como característica substituir refeições. Ele alertou que as companhias dizem produzir a maior parte dos alimentos que consumimos junto aos governos, mas que esta produção, na verdade, ainda está a cargo da agricultura familiar. Lobstein fez cinco ‘recomendações’ ao Brasil, alegando que aqui não passa de 30% o percentual de comida proveniente do que chama de "Big Snack”, aumentando o poder da população de "domar” a indústria. Entre estas medidas inclui controle público dos alimentos comprados pelo estado e regulação da publicidade de alimentos, especialmente aquela dedicada às crianças.
O "sabor” da palestra ficou pelas perspectivas distintas tomadas por Fátima e Maluf como entradas para o tema. Ela buscou "extrapolar a esfera estadocêntrica e institucional usualmente adotada nas sociedades contemporâneas no debate sobre sobre o campo político da alimentação”, investindo na abordagem sobre o papel do indivíduo/consumidor. Falando a partir da perspectiva dos estudos do consumo, a pesquisadora flertou com a possibilidade das escolhas tornarem o consumidor em cidadão. Já Maluf interpelou qualquer abordagem que não tomasse em conta as distinções entre os atores sociais que "constituem um campo pleno de tensões e conflitos”. Na opinião do professor, "nenhuma questão no Brasil pode ser discutida se não levarmos em conta a monstruosa desigualdade” e "comer como ato político é questionar seus determinantes”.

O consumidor que escolhe
A palestra de Fátima Portilho procurou sobrepassar uma série de questões consideradas por ela como "as abordagens tradicionais” do tema alimentação e política, como as políticas agrícolas e de segurança alimentar e nutricional. Buscou ater-se ao tema do consumo, evitando a abordagem que crucifica "o consumo moderno e seus males”. Explicou que seu interesse é compreender o consumo e as escolhas dos consumidores por acreditar que este pode ser "um novo campo político e politizador do ato de comer”.
Neste sentido, considera as várias formas de aquisição e outros atos cotidianos, por exemplo, o modo de ingestão dos alimentos, como centrais para que alimentação possa ser um ato político. Segundo ela, já se vislumbra em muitas partes do mundo a articulação entre escolhas do campo individual com experiências políticas. Na opinião da professora, este fato deve ser considerado como "processo”e está relacionado aos novos repertórios de ação política da sociedade contemporânea e à busca de novas formas de agir sobre a esfera pública que acabam por serem "aproximadoras entre consumidor e cidadão”.
Os exemplos citados destes movimentos são os boicotes – onde se encontram também os vegetarianos que, por diversos motivos, deixam de comer carnes boicotando este mercado; os "buy”cotes – termo sem tradução, derivado do inglês, para designar quem passa a adquirir algo por questões políticas; e o consumo por redes de comércio justo e grupos de consumidores, como a Rede Ecológica no Rio de Janeiro em que consumidores se organizam para comprar direto do produtor.
A pesquisadora afirmou que a academia ainda carece de dados empíricos sobre estes movimentos. E acredita na necessidade de instalar uma nova agenda de pesquisa que englobe um conjunto de questões. Entre elas, destacamos: Por que (e por que não) indivíduos percebem seu papel como consumidores?; Quais tensões e problemas surgem diante do ideal de politização do consumo?; Quais especificidades há no ambiente brasileiro?; Que limites temos nesta abordagem - vamos mudar o mundo com consumo político?
Ao responder a plateia, Fátima ressaltou que há baixa dinâmica de participação no país, o que levaria à ação via consumo a níveis baixos diante do esperado. Além disso, destacou que a lógica de pensar alimentação e política pelo via do consumo não deve ser tida como individualista, visto que consumir é também um ato cultural. Sendo assim, é pautado coletivamente. Ela pondera que boicotes, por exemplo, costumam ser lançados por grupos políticos, ONGs, etc. Além disso, diz que a cultura convenciona o quê e como comer. "O comer é tudo menos autômato. O consumidor não é um idiota. O consumidor também quer ser cidadão, como ensina Canclini, não é manipulado, por maior que seja o poder das grandes corporações do sistema agroalimentar”, afirmou.

"Consumo como ato político deve tratar do acesso”
Renato Maluf, que já foi presidente do Conselho Nacional de Soberania e Segurança Alimentar, defendeu uma abordagem ‘sistêmica’ ou ‘multidisciplinar’ da relação entre alimentação e política, que inclua o consumo, mas onde ele não esteja como único elemento. Economista, Maluf descreveu o aparecimento do consumidor e do consumo na teoria econômica e afirmou a ideia de "consumidor soberano” como "enganosa em amplo sentido”. Ele argumentou que o consumo é realizado sob efeito de determinantes econômicas e sociais, que escolhas são relativas e que exercer o papel de consumidor depende dos instrumentos acessíveis aos grupos e indivíduos.

Além disso, questionou: "Até que ponto os consumidores, quase sempre preocupados com a segurança dos alimentos no sentido da inoquidade do seu consumo, são capazes de chegar a uma visão crítica sobre as estruturas de produção e distribuição? Até que ponto podem enxergar que por trás dos rótulos há relações sociais e de poder?”
Na opinião dele, o tema do consumo tem duas entradas para debate hoje. Uma, a da saúde, de alimentar-se para uma vida saudável. A outra seria a dos direitos do consumidor – relacionado, por exemplo, à rotulagem. "No entanto, não é próprio da sociedade brasileira uma cultura de direitos, e essa nova abordagem ainda é complexa. Muitas vezes a referênica são "os meus direitos” e não "os direitos humanos”, então não é clara ainda a relação do direito do consumidor com a do direito humano à alimentação”, destacou.
O acesso, para Maluf, ainda é um ponto central no debate sobre alimentação e política no Brasil. Foi categórico ao dizer que "para não se tornar veleidade de classe média, consumo como ato político deve tratar do acesso”. E aí é fundamental falar de acesso a quê - ele lembrou o ex-presidente Lula afirmando que "faminto comeria até a língua se não estivesse presa” para criticar a ideia de que qualquer comida, independentemente da qualidade, resolve o problema. Neste sentido, comentou brevemente sobre as ações do programa Brasil Sem Miséria. Elogiando a iniciativa, não deixou de criticar a imposição de metas que provovalmente acabam por obscurecer o debate e se sobrepor a questões que, se o assunto não fosse miséria, seriam consideradas importantes, como a qualidade dos alimentos, sua origem, os atores envolvidos em seu fornecimento. "O fato é que me refiro a isso porque comer como ato político é questionar os determinantes do consumo de alimentos e um certo padrão no consumo alimentar”, concluiu.
Mais Conhecimento, política e ação
Os debates promovidos pelo Coletivo de Desdobramentos do World Nutrition Rio 2012 seguem nos próximos meses, no Rio de Janeiro. O eveto também está sendo transmitido pela internet e os palestrantes recebem perguntas dos internautas. A próxima sessão é no dia 15 de março.
A ideia é ampliar em número de ouvintes e ideias os debates iniciados no congresso internacional para garantir desdobramentos na academia e na sociedade.
Para mais informações, entre em contato: ciclodedebatesposwr@gmail.com
*(publicada originalmente no site da FASE)

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