quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Massacre do Carandiru: vinte anos sem responsabilização


Passados vinte anos, nenhuma autoridade competente foi capaz de atribuir responsabilidades pelo Massacre do Carandiru.

Luisa M. A. Ferreira; Marta R. De A. Machado; Maíra Rocha Machado
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"Carandiru é coisa do passado."
Antônio Ferreira Pinto, secretário de Segurança Pública de São Paulo, ao nomear, em 2011, um dos réus do processo criminal para comandar a Rota.
"Quem não reagiu está vivo."
Ex-governador Luiz Antônio Fleury Filho, ao comentar o massacre às vésperas de completar vinte anos
"Será que tem culpa o Estado dos presos se amotinarem, de desejar fugir, de desejar matar todos que se coloquem entre eles e a rua? A culpa foi das vítimas, que iniciaram a rebelião [...]. Enquanto na China são mortos 30 mil condenados de maior periculosidade por ano, enquanto em alguns países da América são mortos ou lançados na selva um grande número de presos irrecuperáveis, não se pode reclamar do Brasil, onde eles vivem protegidos da chuva e das necessidades alimentares, mantidos pelo Estado com dificuldades orçamentárias, que lhes dão privilégio em relação aos pobres pais de família de salário mínimo."
Desembargador Pinheiro Franco, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao negar pedido de indenização de Ionice Urbano da Luz, mãe de um dos presos mortos no massacre.
Apesar de diversos esforços da sociedade civil, os processos de responsabilização disciplinar, criminal, civil e internacional iniciados após o massacre foram interrompidos ou permanecem sem conclusão. No Brasil, os órgãos do sistema de justiça nem sequer chegaram a declarar formalmente que o episódio que levou (pelo menos) 111 cidadãos sob a custódia do Estado à morte se tratou de um massacre. Essa declaração veio apenas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA1. A documentação produzida por nosso sistema de justiça continua referindo-se aos eventos do dia 2 de outubro de 1992 como "rebelião" ou "motim" do Pavilhão 9 daquela casa de detenção.
No Estado de direito, somente a decisão de responsabilização quebraria a teia de possíveis explicações sobre o que ocorreu naquela tarde e permitiria afirmar que o massacre não foi obra do destino, culpa dos próprios presos "amotinados" ou da fumaça, da escuridão e do piso escorregadio. Até agora, essas são explicações oferecidas para o que o promotor de justiça militar que atuou no caso descreveu como "verdadeira ação bélica, pois os policiais militares, fortemente armados, desencadearam a maior matança já consignada mundialmente em um presídio"2.
A Polícia Militar paulista mantém em seus quadros os réus que respondem criminalmente pela morte de 111 cidadãos em privação de liberdade e pelas lesões a outros 92. A maioria dos réus de maior patente àquela época (tenentes-coronéis, majores e capitães) figura atualmente no portal da transparência do governo estadual3 como coronel, patente de hierarquia superior - o que indica que os procedimentos disciplinares ou não foram concluídos, ou, caso tenham sido, não deram ensejo à sanção de expulsão. Dois deles foram recentemente nomeados comandantes da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) pelo governador do estado de São Paulo Geraldo Alckmin4. A dúvida quanto à existência e ao desfecho dos processos disciplinares permanecerá enquanto não for franqueado acesso público aos autos desses procedimentos5.
O processo criminal que tramita perante o Tribunal do Júri em nenhum momento alcançou as pessoas que ocupavam as mais altas posições hierárquicas envolvidas na ordem de invasão do Pavilhão 9. Somente um dos dois únicos coronéis que figuraram como réus no processo criminal - cel. Ubiratan Guimarães - foi julgado. Condenado (a 632 anos de prisão) pelo júri, foi, no entanto, absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo cinco anos depois. Dezenas de réus denunciados no processo criminal devem começar a ser julgados na melhor das hipóteses somente a partir de 2013, uma vez que o processo esperou por dez anos que o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmasse a decisão de pronúncia, que envia o caso ao plenário do júri.
Ao lado da responsabilização individual dos policiais, os familiares ainda buscam na justiça responsabilizar civilmente o estado de São Paulo pelo massacre, o que lhes daria direito a receber indenizações pela morte de filhos, companheiros e pais, que se encontravam sob a custódia do estado. Pelo que foi possível apurar até o momento, apenas 66 famílias iniciaram processos de responsabilização civil e, dessas, somente 34 conseguiram vencer o processo judicial e a fila dos precatórios para ter o dinheiro das indenizações finalmente disponibilizado. E isso ocorreu apenas em 20116.
No âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, o Estado brasileiro foi considerado responsável pela violação do direito à vida e à integridade física de cidadãos que estavam sob sua responsabilidade. Mas, ao mesmo tempo, o caso deixou de ser enviado a julgamento pela Corte e o relatório publicado em 2000 limitou-se a emitir recomendações para que fossem concluídas as investigações, indenizados os familiares e melhoradas as condições carcerárias. Desde então, os planos de expansão do sistema penitenciário estão longe de reduzir o quadro de superpopulação prisional no estado de São Paulo e são crescentes as alegações de violência e arbitrariedade por parte da Polícia Militar paulista. Esse panorama indica que vinte anos após a ocorrência do massacre, as instituições do sistema de justiça - brasileiras e internacionais - foram incapazes de atribuir responsabilidades e de reverter as condições objetivas que permitiram que ele ocorresse.

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