sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Movimentos em reconstrução


Treze prédios ocupados simultaneamente num único dia. Na véspera da eleição de Fernando Haddad, a Frente de Luta por Moradia (FLM) organizava sua maior ação em mais de uma década. Com exceção de dois imóveis, um localizado na zona norte e outro na zona sul, todos estão na região central de São Paulo. Fortalecida nessas e outras ocupações, os movimentos sociais de luta por moradia começam o ano com a expectativa de conquistas junto à prefeitura petista.

Brunna Soares
Também é neste momento que iniciamos na contra-maré uma série de publicações que pretende registrar ao longo do ano o movimento dos trabalhadores sem teto em São Paulo. Abrimos este trabalho entrevistando Osmar Borges, coordenador geral da FLM, uma organização que mantém o total de 20 prédios ocupados por trabalhadores sem teto. São filiadas à FLM aproximadamente 12 mil famílias, de todas as regiões da cidade e de 12 diferentes movimentos. Apenas duas mil estão vivendo em ocupações. As demais moram de favor ou gastam quase integralmente seu salário com aluguel, enquanto se preparam para novos processos de luta.
CONTRA-MARÉ: Como vocês escolheram esses 13 prédios para ocupar?OSMAR BORGES: Pelo estado de abandono, pelas dívidas. A gente usa um pouco a teoria das vidraças quebradas. É melhor pra denunciar o estado de abandono. Porque não tem função social nenhuma. Tá lá abandonado, destruído, e poderia ser transformado em moradia. E a outra são as dívidas. São enormes, os proprietários não pagam e a prefeitura não executa.
Você tem algum exemplo?Prestes Maia. O prédio custa cinco milhões e a dívida é de seis milhões.
Mas esse não foi ocupado recentemente, foi?Não. De exemplo de dívidas de IPTU tem o caso do [Hotel] Lord, que ocupamos na Rua das Palmeiras. Ele foi desapropriado, mas está há dois anos fechado. Já deveria ter sido reformado e entregue as unidades. Tem outros exemplos. A Mauá tem dívida grande, a São João 288 também. Os imóveis estão fechados no centro com a finalidade de especulação. O mercado age conforme a oportunidade. E a oportunidade de ganhar dinheiroagora é a Copa, as Olimpíadas. Esses megaeventos vão favorecer a especulação. Não só no centro, como nas outras regiões onde também vão acontecer. Tem esse ator invisível, que dificulta cada vez mais o acesso dos pobres à terra. Eles colocam o preço que querem. E isso dificulta em função dos baixos salários.
E o que determinou essa ação forte que ocupou 13 prédios?O que é determinante é a consequência do processo de negociação. Uma consequência também de um processo de luta. Você tem os trabalhos de base, a pressão, que pode ser uma passeata ou uma manifestação. A ocupação é uma forma extrema de pressão. Quando tem as ocupações é porque chegou num limite de desgaste, de não concretizar nenhum projeto habitacional durante o governo. A nossa ideia era ter feito mais ocupações. Era pra fazer 25. Nós temos uma meta de serem crescentes essas ocupações. Não vamos reduzir. Essa foi um pouco uma resposta ao governo Kassab, que durante os seis anos foi só enrolação. Foi uma indignação dos movimentos que não conseguiram avançar com políticas públicas. Por exemplo, não tem gestor na área de habitação pensando habitação social. Tem gestores trabalhando para o mercado imobiliário. Tem a Secovi, a associação das imobiliárias, pensando a valorização do centro pra chamar investimentos, mas não pensando em resolver o problema dos sem teto, das famílias que moram em cortiço, de quem tá na Nova Luz, que está ameaçado de ser despejado. Outra coisa foi a questão do Plano Diretor, que modificava todas as zonas especiais de interesse social. O Plano Municipal de Habitação, que tentou pegar todos os movimentos de calça curta, aprovando projetos na calada da noite. Foi um golpe nos movimentos. O Conselho Municipal de Habitação,que acabou não tendo a eleição. O governo queria fazer nos moldes dele, sem voto aberto e universal. Além disso, a coisa do tijolo. Não começou obra, não fez nada. Nós defendemos a volta dos mutirões autogeridos, nós queremos a produção de moradia no centro, queremos locação social, queremos a possibilidade de revitalizar os prédios e transformar em moradia. É uma série de bandeiras que foram esquecidas.
Vocês se formaram já no governo Serra?Não, a Frente vem desde 1999.  Ela se construiu a partir de lutas. Nós iniciamos a Frente no governo da Marta. Foi um ajuntamento de movimentos autônomos que exerciam uma força regionalmente, mas não na cidade. Foi uma articulação feita por todos esses movimentos que agiam sem uma proposta e fizeram um grande encontro num congresso. Nosso foco é o enfrentamento na cidade. Nós temos que enfrentar o problema em São Paulo, que tem o maior déficit habitacional do país. Só em São Paulo, sem moradia são 700 mil famílias. E você tem mais 3 milhões em moradia inadequada.
É uma questão de verba?Não é falta de terra. É falta de política pra enfrentar essa especulação imobiliária. Não só no centro, mas na cidade.
De que parte da cidade vieram as pessoas que integram a FLM?Tem o exemplo da Palmeiras que é um movimento de 2.500 famílias organizadas na zona leste. Só que aqui no prédio [ocupado] tão participando 300 famílias. Às vezes nem todo mundo que tá na zona leste faz a opção de morar no centro. Então, aquelas pessoas vão travar uma luta pela zona leste. Na zona leste tem três movimentos organizados reunindo aproximadamente 4 mil famílias.
Tem muita gente que participou dos mutirões autogeridos, na época da Erundina?Não. Quem participou foram as lideranças mais antigas, que já têm suas casas. E são apoio no processo de formar novas lideranças, novos quadros pra poder assumir a luta. Mas ela não tá na luta pra conquistar uma nova moradia, porque aí a gente estaria reproduzindo aquilo que a gente combate o tempo todo, que é ser especulador. As pessoas que estão são dirigentes dos seus movimentos, que são filiados à Frente. 
Uma coisa que você falou e achei curioso foi que vocês se formaram no governo da Marta...Os movimentos que ficaram no anonimato durante o processo antes do governo da Marta começaram a surgir em função de algumas divisões que aconteceram por conta de concepção, por conta de filosofia de luta, de projetos... 
Divergência com quem estava ligado ao governo da Marta?Não. Quem estava ligado a outros movimentos. Por exemplo, “não quero mais compartilhar, o que vale é a luta direta, senão a coisa não anda”. Os governos foram criando mecanismos legais, pra poder assim... “ah, você é movimento, então você tem que ser associação pra poder receber...”. Não, não adianta fazer moradia pra uma associação e entregar 30 moradias, sendo que tem 15 mil famílias na fila, isso só na Frente. Essa indignação dos movimentos desencadeou o processo em 1999 pra construir uma luta coletiva. Naquele processo aconteceram umas cinco ou seis ocupações de prédios e terrenos.
Antes disso já existia ocupação de prédios do centro?Existia. Na década de 80, nós iniciamos as primeiras experiências de projetos de intervenção em cortiços. Que foi na Celso Garcia, centro expandido. Aí que nós começamos a levantar a bandeira do programa de moradia no centro. E a gente começou também a defender locação social. E aí veio um processo crescente de formar movimentos no centro. Agora, a luta pela moradia do centro virou uma bandeira geral da cidade. Porque tem um aspecto de fundo que talvez ninguém dê muita importância. Por que você tem que morar no centro? Por que eu tenho que morar na periferia? Pra morar na periferia você tem que ter uma moradia que ofereça qualidade de vida ambiental, social, que reúna essas condições. Não é só você construir favelas verticalizadas na periferia.
Não tem a ver com a questão do emprego, onde você encontra o salário?Não só emprego. A moradia no centro faz um caminho tanto da questão do emprego, quanto da questão da preservação. Quando você vai produzir moradia na periferia, você vai ter que desmatar, agredir as remanescentes naturais. Por que eu não posso usar a cidade consolidada, que tem muita coisa abandonada? Produzir moradia perto do emprego, que eu vou reduzir o tempo de transporte, perder menos no salário, ter mais tempo pra investir na educação. Deixar de gastar duas horas de transporte coletivo. No centro, você não precisa de veículos automotores. Pode usar a bicicleta, o metrô. Então, tem um viés também ambiental na proposta. Aproveitando o que tem de abandono. Nós temos hoje no centro expandido 40 mil domicílios vazios. Então daria pra morar 100 mil pessoas.
E existe um número de 400 mil prédios vazios em toda a cidade, é isso?São 393 mil domicílios, que daria pra atender quase 70% do déficit habitacional. O que precisava é ter uma política adequada pra enfrentar esse cerne da especulação imobiliária. 
Em relação ao empresário indicado pelo PP para a Secretaria de Habitação do governo Haddad, como você vê isso?Nós da Frente nunca tivemos ilusão de governo resolver problema de movimento. A gente fez a opção de declarar o apoio ao Haddad, porque a gente sabia que, dos candidatos que tinha, ele era o que apresentava mais proximidade àquilo que a gente vem defendendo. Tanto que ele ouviu as propostas do movimento. E aí, enquanto Frente, declaramos apoio a ele. Mas nós nunca tivemos ilusão. 
Mas esperavam que justamente pra política de habitação... ?Existia uma expectativa dos movimentos de não ser alguém do PP. Nos posicionamos contra. Mas eu não posso ter um sentimento de perda, porque não sou governo. Quem tá perdendo é o governo, que vai ter os movimentos como oposição se, eventualmente, não fizer aquilo que colocou no plano de governo.
A nomeação se relaciona com o fato de que o Ministério das Cidades é do PP, não?Eu ouvi uma indicação de que foi dada a responsabilidade ao Ministro das Cidades de indicar pessoas. Dois nomes foram rejeitados e depois aceitou esse nome anunciado pelo Haddad. Parece que ele não é filiado a nenhum partido, é um cara da Caixa, que conhece o Minha Casa, Minha Vida. Não se falou que é um cara que tem a capacidade de fazer interlocução com os movimentos. 
O que foi prometido exatamente pelo Haddad em relação à moradia?O que existe é a construção das 55 mil moradias em quatro anos, no centro. E tem a questão em torno do Arco do Futuro. Só que os movimentos têm claro de que nós vamos ter que fazer a luta. Não existe essa coisa de, porque ganhou governo de esquerda ou de direita, você vai falar que não vai fazer mais luta. É um equívoco o movimento pensar dessa forma. É luta permanente. As lutas da Frente seguem um rito. Tem a ocupação de prédio, depois tem a continuidade da luta na rua. A gente quer provar pro governo que quem tá ali precisa de moradia. Ninguém fica na rua se expondo ao sol, à chuva, dormindo na calçada embaixo de lona porque gosta. É porque não tem endereço, porque não aguenta mais pagar aluguel. Se tiver reintegração de posse, vai sair um acampamento ou uma favela no centro. Eu não vou levar favela pra periferia. Tem que mostrar que as pessoas precisam de moradia. Por isso que a gente fala... Quem tem casa não venha fazer turismo, aqui é realmente quem precisa de moradia.
E você é filiado a algum partido?Eu tenho filiação sim, ao PT. Desde a fundação do partido. Claro que eu tenho muita divergência...
É uma coisa individual. Não é todo mundo da Frente que é filiado, né?Não. Se você olhar, 90% não são.
São mais essas pessoas mais antigas?É. E é uma opção, não é uma obrigação. Ser filiado é uma decisão que lá em 80, 85, 86, quando a gente tomou a decisão de se filiar, foi uma decisão lá atrás. Faço enfrentamento com governo, tenho minhas posições, se tiver que ir pro pau eu vou também. Eu comecei muito lá atrás, vi desde os momentos interessantes do partido, da sua formação, da luta operária, da luta pelas diretas, de todo esse processo do Lula ser presidente. E até agora, que estão essas crises aí. Eu poderia seguir carreira no partido, indo pra governo. Mas minha opção é tá com os trabalhadores sem teto, fazendo a luta, tentar ganhar conquistando direitos. Se não for por essa via, não vai ser por outra. Eu dou minhas opiniões quando eles pedem. Eu falei pro Haddad: olha, você está fazendo uma besteira.
Em relação ao PP?Do PP. Eu fiz oposição o tempo todo ao Serra e ao Kassab. Aí fomos oposição... O Maluf foi o cara que destruiu tudo que nós construímos ao longo daquele momento da década de 80. O Maluf perseguiu, criminalizou os movimentos sociais, desmontou todo o trabalho social construído ao longo daqueles quatro anos. E eu tô falando o tempo todo na imprensa que eu acho que tem que ser alguém com um olhar pra onde estão os conflitos sociais. Se põe um empresário, ele não tem esse olhar da cidade. Como é que eu me sinto numa situação em que eu falei que colaborei, dei minha contribuição pra construção do plano, e depois você me coloca um empresário que pode implementar um plano pensando habitação pra mercado, pra beneficiar especulação imobiliária? Você me coloca numa situação em que eu sou obrigado a bater em você.
Você falou?Eu falei a realidade. Mesmo que fosse do PT e não fizesse, nós íamos ser oposição também. Por isso é melhor a gente se colocar na situação “nós falamos: olha, não entrega os cargos estratégicos pro PP, coloca pessoas com capacidade técnica, social, que discutam com os movimentos”. Se ele vai seguir ou não, eu tô me lixando. Meu papel é o movimento. “ah, mas vocês foram convidados, a Frente, a participar do governo”. Não, não queremos. Porque aí teria uma relação institucional com o governo que interfere diretamente na minha relação com a articulação pra poder fazer luta. “Mas você tem que segurar a Frente”. Não, não vou segurar a Frente. Prefiro a Frente batendo, em movimento, avançando em conquista. A única coisa que eu acho que tem que melhorar é que tem que fazer muito mais, porque o Kassab não fez nada. Tem que recuperar oito anos perdido. Ele assumiu uma meta de fazer o dobro do que foi feito. O Kassab entregou 7 mil moradias durante seu governo. O Serra não entregou nada. Todas as unidades que estão entregando foram contratadas no governo da Marta Suplicy. Nada novo foi feito. Então nós vamos ter um problema sério. Vai ter que fazer concessões com todo mundo, com movimento, com construtoras, pra bater uma meta ousada de 55 mil moradias em quatro anos. Ele vai ter que fazer.

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