quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O conceito de “trabalho ideológico”


No texto As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem, redigido por György Lukács no início de 1968, o filósofo marxista húngaro observou que “o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do trabalho é uma de suas características onto­lógicas; disso resulta que, ao se constituir, o trabalho chama à vida produtos sociais de ordem mais elevada”. E, salienta ele, “talvez a mais impor­tante dessas diferenciações seja a crescente autonomização das ativi­dades preparatórias, ou seja, a separação – sempre relativa – que, no próprio trabalho concreto, tem lugar entre o conhecimento, por um lado, e, por outro, as finalidades e os meios”.

Giovanni Alves

13.02.15_Giovanni Alves_O conceito de trabalho ideologico

Na verdade, com o desenvolvimento da divisão social do trabalho, processo que torna a sociedade cada vez mais social, temos o aperfeiçoamento e diferenciação da divisão do trabalho numa escala ampliada, acarretando não apenas na separação de campos autônomos de conhecimento (por exemplo, a matemática, a geometria, a física, a química, etc. eram originariamente partes, momentos desse processo preparatório do trabalho), mas no surgimento de uma nova modalidade de trabalho humano; ou seja, o trabalho humano não trata apenas de ela­borar fragmentos da natureza de acordo com finalidades humanas, mas ao contrário, como diz Lukács, “um homem (ou vários homens) é induzido a rea­lizar algumas posições teleológicas segundo um modo pré-determi­nado” [o grifo é nosso].
Portanto, surge o que denominamos “trabalho ideológico”, uma modalidade de trabalho humano constituído, em seu momento predominante [übergreifendes Moment], por posições teleológicas secundárias, isto é, ação social que visa induzir um homem (ou vários homens) a realizar algumas posições teleológicas segundo um modo pré-determi­nado, encontrando, deste modo, meios que garantam a unitariedade finalística por mais que possa ser diferenciada a sua divisão do trabalho. Como observou Lukács, a partir do momento em que surgiu a divisão do trabalho, essas novas posições teleológicas tornam-se “um meio indispensável em todo trabalho que se funda sobre a divisão do trabalho”. (Lukács observa que essa nova forma de posição teleológica se manifestava originariamente, por exemplo, na caça, portanto mesmo antes que o trabalho houvesse atingido sua explicitação plena e intensiva).
Com a diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica – asposições teleológicas secundárias – tornam-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama de ideologia; e ao mesmo tempo, sua função social autonomiza-se do próprio trabalho produtivo, tornando-se atividades sociais ou “profissões” imprescindíveis à reprodução social. A natureza do “trabalho ideológico” incorpora como sua base espiritual-estruturante, a ideologia comoposição teleológica secundária, isto éa ação dos homens sobre outros homens, sobre suas consciências, para pôr em movimento posições teleológicas desses mesmos homens, seja no sentido de conservar, seja no sentido de transformar a realidade existente.
Com o “recuo dos limites naturais” que caracteriza o processo civilizatório, isto é, com a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução dos homens e um processo de reprodução cada vez mais nitidamente social, crescem as modalidades de “trabalho ideológico” na esfera da reprodução social e inclusive da própria produção social. Vejamos por exemplo, a importância da gestão como meio capaz de garantir a unitariedade finalística na preparação e execução do trabalho produtivo. Com a maquinofatura, a nova forma social da produção do capital no século XXI, o “trabalho ideológico”, a ação dos homens sobre os próprios homens, tornou-se imprescindível não apenas para a reprodução social, mas também para a organização da produção de mercadorias. Por exemplo, o espírito do toyotismo implica a formação de agentes sociais internos e externos à produção do capital, verdadeiros “profissionais” da manipulação, capazes de exercer uma ação sobre outros homens visando estimular o engajamento nas equipes de trabalho e consecução das metas de produção. Para isto, mobilizam-se sistemas de signos adequados para a “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha. Esta ação social orientada à transformação de outros homens visando o “engajamento estimulado” na produção do capital é o trabalho da gestão e controle, uma modalidade de “trabalho ideológico” cada vez mais imprescindível na produção do capital.
Portanto, a natureza do “trabalho ideológico” implica ação do homem sobre outros homens, caracterizando hoje o traço essencial e momento predominante de uma série de trabalhos humanos e ocupações profissionais que constituem o mundo do trabalho. Temos, por exemplo, o trabalho do professor, o trabalho do vendedor, o trabalho do médico, o trabalho do assistente social, e inclusive o trabalho do juiz, etc., modalidades profissionais do “trabalho ideológico” que constitui a “sociedades de serviços”.
O “trabalho ideológico” como trabalho concreto se distingue do trabalho produtivo, embora o trabalho produtivo esteja, hoje, cada vez mais impregnado de trabalho ideológico, tendo em vista que tornou-se fundamental na produção não apenas a ação dos homens sobre os objetos de trabalho mas a ação dos homens sobre outros homens (no caso da produção de mercadorias, temos a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital). Mesmo o trabalho do bancário e o trabalho do comerciário, por exemplo, exigem cada vez mais a incorporação do “trabalho ideológico” como ação do homem sobre outros homens capaz de garantir a eficácia nos resultados da produção.
Uma concepção empirista de trabalho tende a reduzi-lo meramente a trabalho produtivo, isto é, o trabalho voltado para a transformação da natureza pelo homem. De Bacon a Marx, as definições de trabalho põem em destaque a transformação da natureza pelo homem. Diz Georges Friedman: “A transformação da natureza é orientada para uma finalidade essencial: o seu domínio pelo homem, seu “senhor e possuidor” (Descartes), a assimilação da sua matéria (transformada em objetos e depois em produtos) para servir a necessidades humanas.” Em Marx, o conceito empirista de trabalho aparece quando ele diz mais ou menos textualmente a propósito do processo de transformação dos objetos em produtos do trabalho: “O processo se extingue no produto, isto é, num valorde uso, matéria natural assimilada às necessidades humanas por uma mudança de forma”.
O trabalho produtivo é formado predominantemente por posições teleológicas primárias, com o homem criando um novo objeto e, ao mesmo tempo, se reconhecendo como sujeito frente ao objeto por ele criado, dando início ao próprio processo de exteriorização. Neste sentido, o trabalho produtivo não só cria um novo ser como cria a si mesmo como ente humano genérico.
É importante esclarecer que o conceito de trabalho produtivo que utilizamos aqui está numa perspectiva sócio ontológica: o trabalho produtivo que se distingue do “trabalho ideológico” diz respeito, nesse caso, à forma material da atividade laborativa e não propriamente à sua forma social, isto é, trabalho produtivo na perspectiva sócio ontológica é o trabalho concreto que produz valores de uso. Por outro lado, na perspectiva sócio histórica, sob o modo de produção capitalista, trabalho produtivo é todo trabalho que produz mais-valia, não importando sua forma material; isso porque, como iremos verificar mais adiante, atividades profissionais que têm como base espiritual estruturante o “trabalho ideológico” – como, por exemplo, o trabalho do professor – podem ser consideradas, sob determinadas condições, trabalho produtivo, na medida em que produzem mais-valia.
Entretanto, numa perspectiva sócio ontológica, podemos conceber historicamente o trabalho humano para além da concepção empirista que o reduz a trabalho produtivo. A atividade social caracterizada pelo agir sobre os próprios homens, sobre suas consciências, para pôr em movimento posições teleológicas desses mesmos homens, seja no sentido de conservar, seja no sentido de transformar a realidade existente, também é trabalho – é o que denominamos de “trabalho ideológico”, o trabalho que tem como base espiritual estruturante posições teleológicas secundárias que articulam, por meio da ideologia, as funções da reprodução dos indivíduos e da sociabilidade.
Enquanto a posição teleológica primária, que caracteriza a natureza do trabalho produtivo, trata do intercâmbio com a natureza, a posição teleológica secundária, que caracteriza a natureza do “trabalho ideológico”, diz respeito à influência sobre as posições teleológicas de outros homens, pondo em movimento homens, forças etc.; o que significa que a posição teleológica não pode jamais ter um caráter puramente ideal. Nas posições teleológicas secundárias – e aqui convém esclarecer que o fato de serem secundárias significa atos fundados, derivados do trabalho produtivo propriamente dito, essenciais para a reprodução social e, portanto, de modo nenhum menos importantes – o objeto da posição do fim é o homem, suas relações, suas ideias, seus sentimentos, sua vontade, suas aptidões. Assim, o “trabalho ideológico”, no sentido lukacsiano, trata-se de um campo “qualitativamente mais oscilante, ‘doce’, imprevisível, significando que, na ação dos homens sobre outros homens, a resistência e a imprevisibilidade das reações do próprio homem ampliam o grau de dificuldade do conhecimento em relação à dificuldade do conhecimento da objetividade natural, típica das posições do trabalho.
É importante salientar que todo trabalho humano – trabalho produtivo ou “trabalho ideológico” – é formado por posições teleológicas (Lukács): posições teleológicas primárias e posições teleológicas secundárias. O ato consciente de pôr que caracteriza o trabalho humano como modelo de práxis social, implica tanto posições teleológicas primárias quanto posições teleológicas secundárias, elementos pressupostos do processo que vão marcar o homem como espécie diferenciada. Entretanto, o “trabalho ideológico” é o trabalho humano que se caracteriza pela predominância da posição teleológica secundária, a ação do homem sobre outros homens que se utiliza de uma cadeia de mediações cada vez mais articuladas.
O “trabalho ideológico”, como trabalho de mediação implica a utilização de um tipo particular de elemento mediador: o signo. O psicólogo soviético Lev Vygotsky observou que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas, fundamentalmente, uma relação mediada. Ele distinguiu dois tipos de elementos mediadores: os instrumentos e os signos.
instrumento é um elemento interposto entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação da natureza pelo homem. O instrumento é o elemento mediador do trabalho como transformação da natureza pelo homem. Enquanto os instrumentos são elementos externos ao individuo, voltados para fora dele e cuja função é provocar mudanças nos objetos e controlar processos da natureza, os signos – o outro elemento mediador da relação do homem com a natureza – são orientados para o próprio sujeito, para dentro do individuo; dirigem-se ao controle de ações psicológicas, seja do próprio individuo, seja de outras pessoas. Os signos, chamados por Vygotsky de “instrumentos psicológicos”, são ferramentas que auxiliam nos processos psicológicos e não nas ações concretas, como os instrumentos.
O trabalho como categoria ontológica fundante (e fundamental) do ser social, é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em movimento séries causais; ele implica tanto instrumentos quanto signos, elementos de mediação das posições teleológicas compositivas do processo de trabalho (posições teleológicas primárias e posições teleológicas secundárias). Todo trabalho humano, inclusive o “trabalho ideológico”, implica a articulação de instrumentos e signos. Entretanto, no caso do “trabalho ideológico”, ossignos tornam-se essenciais para a realização da posição teleológica secundária: a ação sobre outros homens.
Na medida em que se desenvolve a sociedade de serviços e amplia-se a escala dos conflitos sociais, o “trabalho ideológico”, formado por posições teleológicas secundárias, constitui hoje amplamente a esfera das ocupações profissionais vinculadas à reprodução e controle social. O “trabalho ideológico” constitui hoje a natureza material de diversas ocupações profissionais no interior da divisão social do trabalho. Por exemplo, ele caracteriza o trabalho de formação e informação (professores e jornalistas), o trabalho de regulação e normatividade (juízes e policiais), o trabalho de convencimento (publicitários), o trabalho do cuidado (médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais), etc.
O conjunto de profissões do mundo do trabalho que representam hoje o “trabalho ideológico” sob o modo de produção capitalista estão impregnadas de alienação/estranhamento. Primeiro, elas são exercidas como meio de vida no quadro social do sistema de necessidades e incorporam a lógica do trabalho assalariado, isto é, trabalho heterônomo. Depois, com a ampliação dos conflitos sociais e a necessidade de controle social, o conjunto de profissões que representam o trabalho ideológico torna-se um campo através do qual os homens tornam-se conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta. Finalmente, enquanto modalidades de trabalho assalariado no setor privado ou setor público, elas são regidas pela lógica do trabalho abstrato, subsumindo-se diretamente ou por derivação, aos parâmetros de produtividade.
Na verdade, nas sociedades de classes sociais com interesses antagônicos, o “trabalho ideológico” assume, cada vez mais, caráter manipulatório. Nesse caso, a ideologia aparece como recurso sistêmico de controle/manipulação social (é o sentido negativo de ideologia como falsa consciência). Portanto, na medida em que a forma material do “trabalho ideológico” se impregna da forma social da produção do capital, as modalidades de “trabalho ideológico” incorporam diretamente ou por derivação, o sentido do trabalho capitalista como trabalho estranhado (daí o problema da precarização do trabalho de categorias assalariadas do serviços e da administração pública).
A sociedade do capital sob o capitalismo manipulatório aparece cada vez mais como “sociedade de serviços”, tendo em vista que os serviços, principalmente aqueles que têm como base espiritual estruturante o “trabalho ideológico”, são formas materiais adequadas para o exercício da manipulação que, como posição teleológica secundária socialmente condicionada pelos interesses da reprodução social do sistema do capital (nas áreas do consumo, lazer e inclusive, política), torna-se traço essencial do metabolismo social da modernidade burguesa.
Com o capitalismo global, todas as formas de trabalho humano impregnam-se diretamente ou por derivação, da forma social do trabalho estranhado, não importando se o trabalho humano concreto é, no plano da forma material, “trabalho produtivo” ou “trabalho ideológico”, ou ainda, no plano da forma social, se é “trabalho produtivo” ou “trabalho improdutivo”. O que é relevante na perspectiva da ontologia do ser social é a vigência do trabalho estranhado como forma social de subsunção do trabalho vivo à lógica do trabalho abstrato. Por isso, o “trabalho ideológico” hoje assume a forma de trabalho ideológico impregnado de alienação/estranhamento ou ainda trabalho ideológico como forma de trabalho abstrato.
O “trabalho ideológico” das profissões vocacionadas, exige do homem-que-trabalha, cuidado, abnegação e doação (como, por exemplo, o trabalho do formador ou o trabalho assistencial). Entretanto, na sociedade do capital em sua etapa de crise estrutural, o “trabalho ideológico” impregna-se da lógica do trabalho estranhado. Na medida em que a forma material do “trabalho ideológico” impregna-se da forma social do capital, caracterizada pelo trabalho estranhado, constitui-se uma implicação subjetiva de natureza perversa.
Por um lado, temos, por exemplo, o “trabalho ideológico” como trabalho do cuidador ou trabalho do formador, que, pela sua própria natureza material, envolve a pessoa humana que trabalha, pois implica em cuidar de outras pessoas com dedicação e doação pessoal, como é o caso do trabalho do formador; ou ainda do trabalho de outras profissões como médicos, enfermeiros e assistentes sociais. Entretanto, por outro lado, na medida em que a lógica do capital impregna a relação laboral das profissões vocacionadas, o “trabalho ideológico” impregnado de estranhamento desefetiva o ser genérico do homem, “intoxicando” a vida pessoal, reduzindo tempo de vida a tempo de trabalho estranhado, corroendo o campo de desenvolvimento humano. É por isso que constatamos hoje entre profissionais do “trabalho ideológico” a crescente ocorrência da síndrome de burn-out nas situações de adoecimentos. O termoburn-out que quer dizer “combustão completa”, caracteriza-se pelo esgotamento emocional, despersonalização e baixa realização pessoal. Esta forma de adoecimento dissemina-se, por exemplo, não apenas entre trabalhadores da educação, mas entre todas as categorias profissionais assalariadas que exercem o “trabalho ideológico”, isto é, a modalidade de trabalho humano que implica por completo a subjetividade humana na medida em que possui como base espiritual estruturante, a ação do homem sobre outros homens.
Uma das características cruciais do “trabalho ideológico” como trabalho humano concreto é implicar, de modo radical, a subjetividade do homem-que-trabalha com sua atividade laboral. Na medida em que o capital incorpora, de modo amplo na lógica do trabalho abstrato, as mais diversas modalidades de ocupações profissionais dos serviços – educação, saúde, justiça, segurança pública, etc. – dissemina-se, ampla e intensamente, o fenômeno social do estranhamento expressa na precarização do homem-que-trabalha.
A disseminação do toyotismo como ideologia orgânica da gestão capitalista e a presença do espírito do toyotismo na gestão do processo de trabalho de amplas camadas assalariadas, não apenas do mundo da produção, mas também dos serviços e administração pública, contribuem efetivamente para a afirmação daperversidade como característica do ethos da gestão capitalista do trabalho humano.
A rigor, a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital, nexo essencial do toyotismo, é um modo perverso de implicação humana estranhada, pois, ao mesmo tempo em que envolve emocional e afetivamente o trabalhador assalariado com o conteúdo material da atividade laboral, o desefetivaradicalmente como ser humano-genérico na medida em que impõe os parâmetros do trabalho abstrato. Ao mesmo tempo em que o trabalhador assalariado da indústria, serviços e administração pública são envolvidos subjetivamente com o trabalho concreto (inclusive no plano linguístico locucional ao serem tratados como “colaboradores”), eles são desefetivadoscomo seres humanos genéricos na medida em que reduzem seu tempo de vida à tempo de trabalho abstrato.
Este processo de estranhamento assume dimensões radicalmente perversas no caso das modalidades de trabalho ideológico onde a matéria social do trabalho concreto é a ação do homem sobre outros homens (o que significa que o modo de gestão estranhada aparece como “manipulação reflexiva”, a forma de manipulação da subjetividade do homem-que-trabalha nas condições do capitalismo global, o capitalismo flexível sob hegemonia do espírito do toyotismo).
Na verdade, o problema da “invasão” do tempo de vida pessoal pelo tempo de trabalho abstrato que impregna a atividade laboral, é o principal problema do estranhamento nas ocupações profissionais que possuem a natureza material do “trabalho ideológico”.
Primeiro, a natureza material do “trabalho ideológico”, caracterizada pelo “trabalho imaterial” das profissões vocacionadas ou atividades laborais que envolvem a subjetividade humana por completo, na medida em que sua base espiritual estruturante é a ação do homem sobre outros homens, contribui, em sipara si, para a permeabilidade entre tempo de trabalho e tempo de vida. Na medida em que o “trabalho ideológico” impregna-se da lógica do trabalho abstrato, trabalho heterônomo alienado ou trabalho humano subordinado constitui-se efetivamente a “invasão” (ou redução) do tempo de vida pessoal (o tempo-para-si) em tempo de trabalho estranhado (ou tempo-para-outro). Nesse caso, ao invés do trabalhador assalariado tornar-se “patrão de si mesmo”, com suposta margem de “autonomia” (ou “autonomação”, no léxico toyotista), ele torna-se irremediavelmente, por conta da manipulação reflexiva, “carrasco de si mesmo”.
Por exemplo, a implicação perversa do “trabalho ideológico”, modalidade de trabalho humano concreto que caracteriza as atividades laborais responsáveis pela reprodução social, é bastante visível no caso do trabalho de formação dos professores e professoras como profissionais imersas em sua “criação pedagógica”. Primeiro, o trabalho das professoras é “trabalho ideológico”, que, em si mesmo, possui uma dimensão invasiva tendo em vista que o artífice (ou profissional) não distingue trabalho de vida e vida de trabalho. Enfim, o profissional encontra satisfação (perversa) na implicação criativa do “trabalho ideológico”.
Entretanto, o problema não reside na “implicação criativa” do binômio trabalho-vida/vida-trabalho, mas sim, na impregnação do “trabalho ideológico” (o trabalho da ação do homem sobre outros homens), pela lógica do trabalho abstrato, com sua dimensão desumana e alienada: trabalho-para-outro e trabalho subordinado à lógica do capital com suas personificações estranhadas (mercado e Estado político). Na verdade, o trabalho estranhado encontra no “trabalho ideológico”, o veículo ideal para invadir espaços vitais dos artífices ou profissionais alienados do século XXI. 
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).

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