terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Transportador de leite: o elo esquecido - Parte I



Por Wagner Beskow - postado há 2 dias atrás



O título soa como um filme de aventura, com um tom de suspense à moda Indiana Jones, não soa? Pois aventura é o que vivem os transportadores de leite em nosso país, só que na versão real da história, não há nada de glamouroso. Há dificuldades e riscos diversos, altos custos agravados por nossa péssima infra-estrutura, sofrimento, incompreensão, descaso, cansaço, poeira, barro, fome, correria, cobranças crescentes, alta rotatividade de pessoal, mas o leite tem que chegar, pois o próximo dia não espera.

Há também sérias e inaceitáveis falhas e desvios de conduta e, talvez devido a essas, a impressão geral sobre este importante elo da cadeia é muito negativa.

Meu objetivo aqui é, expondo os problemas vistos de seus diferentes ângulos, ajudar a avançarmos em soluções, pois chegamos ao limite do legalmente, economicamente e eticamente tolerável. São muitas as reclamações e são muitas as perdas para todos, como também é grande o desestímulo para os que agem corretamente.

Além de minhas próprias observações, este artigo tem dezenas de autores espalhados por todo o Brasil. São produtores, técnicos, os próprios transportadores, ex-alunos, estagiários, indústrias, pesquisadores, extensionistas, fiscais sanitários, entre outros, que sabem o que é certo, fazem sua parte, mas não aguentam mais apenas assistir o que está errado. Ocorre que por suas posições funcionais ou outras fragilidades não podem vir a público e expor o que gostariam.

Como o espírito de todos é construtivo, decidi fazer este resumo do que pensam essas mentes. Por isso, a todos que contribuíram anonimamente para este artigo, muito obrigado. Acredito que aqui possa estar um início das mudanças que esperamos em qualidade do produto, de valorização das pessoas certas e de orgulho por um trabalho bem feito em toda a cadeia do leite.

Um pouco da história
  • ► Até o final do século XII, a população ocidental era rural e as famílias produziam leite para seu próprio consumo.
  • ► Com a intensificação do comércio entre continentes, começam a crescer as cidades e com elas a demanda por mão-de-obra — o homem começa a virar assalariado urbano (séc. XVI). Nos subúrbios, instalam-se produtores de leite comerciais que entregam seu produto na porta das casas, pago ao final do mês, atendendo a um consumidor que havia migrado para a cidade. Eis que surge o leiteiro!
  • ► Com o avançar da revolução industrial (séc. XVIII) e de sua produção em grande escala, são criados os primeiros laticínios. Com eles, agricultores que continuavam no campo aumentam seus rebanhos, agora com o propósito de vender leite, inicialmente transportando e “entregando” seu produto, eles mesmos, diretamente na indústria (daí a expressão até hoje usada “eu entrego leite para a empresa tal”).
  • ► As cidades continuam crescendo e com elas a demanda por leite na porta, requerendo maiores volumes a serem produzidos e transportados. Estabelecem-se, também, as primeiras exigências de padrão de qualidade, especialmente sanitárias, de tal forma que o produtor percebe que é melhor deixar o transporte para outros enquanto se dedica à produção. Surgem os transportadores de leite especializados que também passam a ser chamados de leiteiros pelos próprios produtores. Deduz-se que leiteiro, no conceito popular, é quem “entrega” o leite (o transportador), seja ele um produtor ou não.
  • ► As exigências sanitárias aumentam ainda mais, são criados serviços de inspeção sanitária com base em leis e normas governamentais, que entre outras exigências, tornam a pasteurização obrigatória para o leite comercializado. Isso faz com que a atividade daquele leiteiro suburbano (produtor-distribuidor) se torne ilegal.

transportador de leite

Embora em momentos distintos, o processo acima ocorreu mundialmente. No entanto,30% do leite brasileiro ainda é do tipo “não inspecionado”, um jeito político de dizer ilegal, proibido e perigoso. “Ah, mas é natural e tudo que é natural é saudável”. Brucelose, tuberculose, aftosa e leptospirose (para citar algumas “oses”) são saudáveis? Pêlos, terra (ou ausência destes por ser coado num paninho contaminado), antibiótico e pus também? Vocês acham que algum leiteiro ilegal descarta leite de vaca em tratamento antibiótico? E leite com CCS e CBT na casa dos milhões? Claro que não.

E o velho “batismo” com água, frequentemente puxada de poços de balde contaminados por fossas e poços negros do bairro? Vender esse leite seria como carnear uma vaca no gramado de uma praça pública, em frente ao banheiro coletivo, pendurá-la numa árvore e destroçá-la para vender “carne fresquinha” aos que gostam de pagar menos por algo “mais saudável” e ainda achar tudo normal.

É para nos livrar desse tipo de coisa que foi criado o sistema que vemos hoje no mundo todo: leis e normas embasando os processos; produtor especializado e cobrado; transportador treinado (no primeiro mundo, certificado); laticínios inspecionados e produtos com garantias e prazos de validade. Isso se chama responsabilidade e é um sistema tão aperfeiçoado quanto o progresso geral de cada nação.

As queixas contra o transportador

Há bons e maus transportadores e é fundamental fazermos a distinção entre estes. Há, também, transportadores de um único caminhão conduzido por seu proprietário, até casos de grandes frotas com dezenas de funcionários de variados perfis. Mantenhamos estes elementos em mente antes de nos precipitarmos em julgamentos emparelhando a todos como é feito diariamente: “nosso problema é o freteiro”. Frequentemente ele é, de fato, um problema, mas às vezes é também usado como bode expiatório.

Os maus transportadores

Eles existem, infelizmente são muitos, e as queixas teem seu fundamento. Os maus transportadores variam de despreparados negligentes inescrupulosos e atéverdadeiros bandidos que sabem muito bem o que fazem de errado.

As principais queixas sobre transportadores, dizem respeito aos “donos de rotas”. São intermediários que se colocam entre produtor e indústria, normalmente amparados por um grupo de produtores que seguem este transportador para onde ele for comercialmente (é Deus no céu e o “leiteiro” na Terra). Como veremos, muitos destes deveriam ganhar um diploma de curso superior em química, ou lecionarem na universidade (inovação tecnológica pura). São fabricantes de leite para o “brique”, não transportadores.

Eles operam onde a indústria tem pouca força junto ao produtor e se amparam no receio que ela tem de perder significativo volume. A indústria que depende deste tipo de transportador vira refém deles. Em alguns casos parecem operar como grupo organizado, pois as práticas se repetem, inclusive a de ensinar tudo que é errado e ilegal aos produtores, que normalmente por ingenuidade e ambição, acabam fazendo.

Igualmente preocupante são os compradores de leite das “queijarias de fundo de pátio”, geralmente produtoras de queijo “colonial”, algumas sem escrúpulos nem limites e, nesses casos, quase sempre sob “fiscalização municipal”. Para destinos com este perfil parecem se dirigir os piores leites de nosso país (no meio é conhecido por líquido branco, que nem sempre branco é).

Das “espertezas” e dos “esquemas”

Como não nos vemos em cadeia, elos interligados como numa corrente que puxa um veículo atolado, agimos predominantemente seguindo o instinto de sobrevivência dos “bandos”: cada um tende a olhar unicamente para o “seu negócio” e tenta tirar o máximo que pode de onde for possível. Agindo assim, agimos como o bando dos produtores e da inspeção sanitária (aos olhos da indústria); o bando das indústrias (aos olhos do produtor, do transportador e da inspeção); o bando dos técnicos, demais prestadores de serviços e fornecedores de insumos (aos olhos do produtor); o bando dos atacadistas (aos olhos da indústria) e, naturalmente, o bando dos transportadores. Mas aos olhos de quem? Infelizmente, apenas aos olhos do produtor e da indústria.

Deveria a inspeção também ter maior ciência das práticas perpetradas pelos maus transportadores e estar preparada e instrumentalizada para lidar com os que estão em erro, ao invés de não agir, ou agir muito esporadicamente, apenas mediante denúncias, como ocorre hoje. Mas onde está escrito que as autoridades sanitárias tem que ir atrás de transportadores no campo, na estrada ou nos postos de combustível?

Enquanto focarmos no nosso próprio quadrado, esquecendo as interligações e interdependências dos elos, marcaremos passo. Seguiremos acusando as importações, o governo, o fiscal, a indústria, o preço, o técnico, o produtor, cada um puxando para um lado diferente: o seu.

Por “espertezas” me refiro ao velho e lesivo “roubar na balança”, tão conhecido e combatido no varejo de alimentos. Maus transportadores, por exemplo, se aproveitam de certos produtores anotando leite a menor do que coletam, podendo “jogar” com a diferença não contabilizada.

Por “esquemas” me refiro a ações combinadas entre transportador e produtor ou entre transportador e indivíduos dentro de certas indústrias. Assim, o leite “desviado” acima (roubado mesmo) pode ir, por exemplo, para um “produtor peixe” da mesma rota que “rachará” os ganhos extras pagos na próxima nota.

Há vários esquemas. Dos mais comuns, é o transportador aceitar ou até orientar o produtor que teve a capacidade de seu resfriador excedida, a colocar o excedente de leite num tonel (ou tonéis) ao lado do resfriador. “Não se preocupe que eu tiro amostras só do resfriador, assim o senhor tem mais tempo até poder comprar um maior” (ver foto abaixo). Esta é extremamente comum (leite quente até o caminhão aparecer). Às vezes vem acompanhada de contrapartida direta pelo “favor”, mas mais comumente é para não perder produtores para a concorrência quando ele sabe que ela fará essa concessão se ele não a oferecer antes.



Outro esquema que os maus transportadores lançam mão para não perder produtores ocorre onde a indústria bonifica por sólidos (gordura e proteína). É “o leitinho da Jersey”: ao invés de amostrar o resfriador, o mau transportador orienta o produtor a, ele mesmo, amostrar uma única vaca de altos sólidos ou traz consigo leite de outra propriedade com as características desejadas.

Esta última prática chama-se “clonagem de amostras” e é usada para mascarar quaisquer inconformidades, não apenas sólidos. Muitos transportadores, sem saber que, na indústria, tudo que eles fazem é rastreado, observado e estudado, chegam a clonar uma mesma “doadora” (vaca ou tanque de uma propriedade) várias vezes na rota. Esta prática salta aos olhos de qualquer um, pois as propriedades apresentarão idêntica (ou quase idêntica) composição ao longo de todo o espectro de características analisadas. Isso não ocorre naturalmente!

Pegar por cima, sem agitar” é outro recurso buscando bonificação por sólidos (quando não é preguiça, falta de tempo, de treinamento ou desleixo mesmo), mas algumas características denunciam também esta tentativa. Alguns transportadores fazem isso para melhorar, artificialmente, o preço de produtores de sua rota quando há risco de perdê-los por alguns centavos por litro, lesando assim à indústria.

Sobre as fraudes

Aqui me refiro às fraudes realizadas pelos maus transportadores, mas que fique claro que maus produtores e até certas indústrias também fraudam.

Todas as fraudes um dia foram novas e teem como ser detectadas. Elas são como vírus de computador: quando lançado é necessário aprimorar o antivírus, mas logo a nova verificação é incorporada e passa a ser rotina. Só que isso leva certo tempo, custa muito caro para a cadeia, dificulta e atrasa todo o processo e passa por um período inicial de alto risco enquanto não se conhece exatamente o que essa gente está colocando no leite.

As fraudes normalmente envolvem adição de água para aumentar volume, seguida da adição de elementos que tentam mascarar esta água. É a tentativa mais antiga que se conhece. Todos os países enfrentaram este vilão. Quando não é isso, elas visam preservar artificialmente um leite contaminado (alta CBT) ou mal conservado (temperatura e acidez elevadas).

Sal de cozinha (cloreto de sódio), água oxigenada, soda cáustica e formol são apenas alguns dos exemplos clássicos do banditismo inescrupuloso e irresponsável praticado por essas pessoas. Para se ter ideia, formol é usado para tratamento de cascos e para conservação de cadáveres. Soda corrói até a carne. No leite, devem ser encarados como venenos! Vamos deixar isso bem claro: é absolutamente proibido adicionar qualquer coisa no leite cru (qualquer coisa). Na China a pena prevista para fraudadores de leite é a morte (vide caso melamina).



Aqui, alguns fraudadores ainda se queixam e tentam argumentar quando são pegos porque tem que pagar pela carga.

As autoridades sanitárias conhecem todas essas fraudes, mas agem quase que exclusivamente dentro dos laticínios (é mais lógico, já que todo leite teria que passar ali). No entanto, indústrias idôneas acabam punidas ou sob suspeita porque, com esse tipo de fiscalização, fica difícil saber o responsável: produtor, transportador ou indústria? Tem transportador que frauda seu tanque e, junto, as amostras de contraprova, elegendo produtores que ele não gosta ou que não aceitam seus esquemas para descarregar neles as culpas quando pego (leiteiro amigo esse!). Isso é gravíssimo, pois deixa os produtores sem ação de defesa, pagando pelo que não fizeram e a indústria assumindo o peso e a impopularidade da punição, para não ser, ela própria, punida pela inspeção.

Fraudar a contraprova é como um assassino colocar as digitais de outro na arma que ele usou no crime! Compromete o nome e as finanças de pessoas inocentes, acarreta em sérios riscos à saúde pública e pode resultar no descrédito de todo um sistema. É gravíssimo! A contraprova tem que ser amostra fiel do que realmente estava no tanque, nem melhor nem pior, e todos teem que confiar nela (produtor, indústria, autoridade sanitária e sociedade) e confiar 100%.

Na dúvida sobre a qualidade, é punida a indústria e essa que se vire para descobrir as causas. Esta medida seria acertada e eficaz se todas as indústrias e todos os sistemas de fiscalização (municipais, estaduais e federal) tivessem o mesmo tratamento, pois o mercado se autorregularia, nivelando pelo melhor. Só que hojetemos disparidades inaceitáveis entre essas três esferas e casos de indústrias que “conseguem que passem coisas erradas” onde outras não conseguem (para ficarmos por aqui), configurando concorrência desleal entre elas. Uma praga que resulta em desestímulo para os que agem corretamente.

Por que os transportadores fraudam? Basicamente tentando ganhar mais dinheiro. Ganância em excesso, desespero, “os outros fazem, eu não posso ficar para trás”, aliados à confiança de que “não dá nada”.

O desleixo e o descaso trazidos pela impunidade

Um produtor recebe um transportador e se dão conta que o agitador do resfriador quebrou. O leite é carregado, mas ficam grossas e grandes placas congeladas no fundo, pela falta de agitação. “E agora?”, diz o produtor. “E agora que nós não vamo perdê esse leite. Me traz um balde de água quente!” Ao receber o balde (pobre resfriador!) o transportador de alimento in natura dá de mão num rodo assentado sobre o chão, o utiliza para ajudar a quebrar as placas de leite, liga a bomba e carrega o que faltava (com um balde extra em volume, é claro, não contabilizado para o produtor, diga-se de passagem). “E agora?”, diz o produtor. “E agora que isso não dá nada. Fica frio, fica quieto e até amanhã, mas arruma isso aí!” Este sujeito, felizmente, foi denunciado, investigado e demitido por esta e muitas outras que fazia. Pena que tais desligamentos são exceção.

(Continua na Parte II... aguarde)


Wagner Beskow
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TRANSPONDO Pesquisa, Treinamento e Consultoria Agropecuária Ltda. - Wagner Beskow

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Antes de tirar suas conclusões ou de comentar abaixo, aguarde a Parte II: os bons transportadores, suas dificuldades e mudanças necessárias.
 
Nota de esclarecimento ao público e à mídia:
Os serviços de inspeção sanitária do Brasil garantem ao consumidor um produto dentro dos parâmetros previstos na legislação pertinente. Os problemas apontados neste artigo visam, unicamente, à melhoria interna dos processos.


 

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