quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Um alemão conservador


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Joseph Ratzinger não esconde sua visão de uma União Européia que engordou demais e perdeu sua capacidade de ação coletiva, gerida por liberais e social-democratas sem capacidade de liderança mundial. Ele não esconde sua crítica à incorporação da Turquia ao bloco europeu

José Luís Fiori
"O cristão, o apóstolo, foram criados para crescer. Devem viver animados por uma santa inquietação de divulgar a todos o dom da fé...devem sair e pregar a palavra do Senhor, porque isto ajuda a gerar frutos, frutos permanente. Só dessa maneira a terra se tornará de vale de lágrimas em jardim de Jesus”

Joseph Ratzinger, homilia “pro-eligendo papa”, Folha de S. Paulo, 20/04/2005


Primeiro, foi a derrota de John Kerry, nos Estados Unidos, e agora, a vitória de Joseph Ratzinger, no Vaticano, dois revezes contundentes para os liberais de todo o mundo. Muitos supunham que depois do primeirogoverno Bush, e do longo papado conservador de João Paulo II, seria hora dos liberais voltarem ao poder, segundo uma regra de alternância que muitos analistas consideram indispensável ao equilíbrio dos sistemas, como na fantasia dos economistas. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário, e no caso do Vaticano, o novo papa alemão tem um perfil ainda mais radical e intolerante do que seu antecessor. 

Não é fácil de explicar a vitória de Ratzinger, mesmo quando se sabia do poder que detinha dentro do colégio eleitoral que foi nomeado - quase todo - pelo seu antecessor. De um ponto de vista menos institucional ou eclesiástico, entretanto, uma primeira pista para explicar esta continuidade conservadora pode ser encontrada na própria fragilidade intelectual dos seus adversários. Basta ler com atenção as suas respectivas agendas e propostas para perceber que os liberais alinhados em torno do Cardeal Carlo Maria Martini, assim como os que apoiaram a candidatura de John Kerry, não foram capazes de oferecer uma alternativa concreta à agenda conservadora mundial destes últimos 30 anos. Como se os liberais também tivessem sido atingidos pela epidemia ou anemia que dizimou o pensamento social-democrata, na década de 1990. 

Da perspectiva desta hegemonia conservadora das últimas décadas, a escolha de Ratzinger aparece como um ponto apenas dentro de uma trajetória política e ideológica de mais longo prazo, que chega até os “neoconservadores” do governo Bush, mas que começa em Roma, exatamente na hora em que o Vaticano surpreendeu o mundo católico – em 1978 - ao transformar um cardeal obscuro, proveniente de uma das comunidades católicas mais reacionárias e piegas da Europa, no Papa João Paulo II. Sua eleição foi o verdadeiro ponto de partida ideológico deste longo período conservador que se prolonga até hoje, começando na forma de uma resposta aos movimentos emancipatórios dos anos 60 e à grande crise econômica da década de 70.

Para ser fiel às datas, Karol Wotjyla foi eleito em 1978, Margareth Thatcher, em 1979, Ronald Reagan, em 1980 e Helmut Khol, em 1983. Suas eleições não fizeram parte de uma mesma estratégia, nem obedeceram a uma cadeia coordenada de comando ou decisão. Mas todos eram profundamente conservadores, e suas idéias e ações convergiram em torno de uma mesma estratégia anticomunista, criando-se uma força política e ideológica coesa que derrubou o mundo socialista, atravessou os anos 90 e chegou até os nossos dias cada vez mais conservadora, autoritária e expansiva.

Já se estudou e falou muito das transformações econômicas, financeira e geopolíticas que começaram com a crise mundial dos anos 70, em particular das reformas e políticas neoliberais, mas talvez não se tenha dado a devida atenção à dimensão cultural e religiosa desta expansão vitoriosa dos conservadores, pelo menos até o momento em que o fundamentalismo religioso se transformou no grande cabo eleitoral da reeleição de George Bush, em 2004.

É reconhecido o papel de João Paulo II na luta e na desmontagem do mundo comunista, sobretudo na região da Europa central. Alguém já disse que se não fosse por Wotjyla, não teria havido o sindicato Solidariedade, e se não fosse por causa da existência do Solidariedade, não teria havido eleições na Polônia, e se não fosse pelas eleições polonesas não teriam existido as “revoluções de veludo”, que devolveram a Europa central ao “ocidente cristão”. Mas depois disto, se discutiu pouco a importância do conservadorismo moral de João Paulo II, e da intolerância teológica de sua Cúria Romana, na recomposição das energias expansivas do conservadorismo ocidental, que hoje alimenta o discurso e a prática messiânica do governo norte-americano de George Bush.

Neste sentido, é interessante agregar a este quadro alguns outros acontecimentos que ocorreram de forma independente, naquele mesmo momento da “virada à direita” do “mundo ocidental”, entre 1978 e 1983. Acontecimentos que apontavam, entretanto, na mesma direção da intolerância religiosa e da escalada militar. Basta relembrar a revolução xiita no Irã, em 1979; a invasão do Irã pelas tropas sunitas de Saddam Hussein, em 1980, apoiadas e sustentadas pelas armas químicas e biológicas dos Estados Unidos e de vários países europeus; o aparecimento dos talebãs no Afeganistão e, finalmente, em 1982, a “invasão preventiva” do Líbano pelas tropas de Ariel Sharon, que culminou com o célebre massacre dos palestinos, nos campos de refugiados de Sabra e Shatila.

Quatro acontecimentos militares de forte conotação religiosa que se transformaram em peças do tabuleiro onde foi se armando, aos poucos, mais do que uma restauração conservadora, uma verdadeira “escalada aos extremos” teológicos – e as vezes militares – das religiões ocidentais que C.J.Jung e A.Toynbee chamaram de “extrovertidas”, ou seja, com vocação apostólica e conquistadora, ao contrário das religiões orientais, que seriam essencialmente “introvertidas” e não expansivas.

Desta mesma perspectiva, a escolha de um papa alemão e conservador também tem um outro significado complementar: assim como Wotjyla foi escolhido pelos olhos estratégicos do Vaticano e das demais potências ocidentais com vistas a conquista do mundo comunista, Ratzinger foi eleito para unificar e recristianizar a “velha Europa”, segundo a proposta de João Paulo II, apresentada em Santiago de Compostela, na Espanha, em 1982. Este objetivo central explica seu apelo imediato ao diálogo entre as religiões cristãs e os judeus, e ao esquecimento do seu texto Dominus Iesus, publicado em 2000, defendendo a superioridade e inevitabilidade do catolicismo como caminho da salvação. Este mesmo projeto explica sua resistência explícita à incorporação da Turquia à União Européia.

As críticas de Ratzinger ao relativismo, ao individualismo, ao consumismo e ao agnosticismo, feitas na sua homilia “pro-eligiendo”, que foi uma espécie de carta de princípios e programa eleitoral publicado na véspera da reunião do colégio de cardeais, foi uma crítica direta ao “amolecimento espiritual” da Europa, afogada num hedonismo laico, egoísta e desfibrado. Em Ratzinger, está sempre implícita a visão de uma União Européia que engordou excessivamente e perdeu sua capacidade de decisão e ação coletiva, gerida por partidos e lideranças políticas liberais e social-democratas sem idéias claras, sem energia e sem capacidade de liderança mundial. Como um velho alemão, conservador e teólogo, Ratzinger acredita na necessidade de voltar às raízes últimas da unidade e da força européia, o Santo Graal onde se escondem as primeiras verdades do cristianismo, imbatíveis e inegociáveis.

Nesse sentido, Ratzinger defende para a Europa como para toda a Igreja Católica – mesmo que seja em sentido metafórico – um período de volta aos monastérios, onde seus povos e seus líderes recuperem a força espiritual capaz de recolocar a Europa na liderança mundial, por cima do fundamentalismo protestante dos norte-americanos. Sua meta é de longo prazo, e não se restringe apenas ao projeto de democratização ou conversão do “Grande Oriente Médio” dos neoconservadores de Washington. Na verdade, seus olhos catequéticos ou conquistadores estão postos num horizonte mais longínquo, no imenso pedaço do mundo eurasiano onde o Papa João Paulo II não colocou os pés e onde as religiões “introvertidas” são hegemônicas, mas não tem pretensões expansivas.

É verdade que a história não se repete, mas ela pode ser lida como uma parábola pelos contemporâneos de todas as épocas. Nesse sentido, pode estar no inconsciente deste projeto de reunificação e recristianização européia, o primeiro grande movimento de expansão dos poderes territoriais europeus, ibéricos, associados com a Igreja Católica. Um caso exemplar de centralização do poder territorial combinado com a ordenação autoritária dos costumes e a renovação do espírito e da disciplina cristã através da Inquisição, seguidos imediatamente pela “explosão expansiva” dos descobrimentos que deram origem ao primeiro grande império europeu, mundial e cristão de Carlos V e Felipe II, onde “o sol nunca se punha”. Esta poderia ser a grande cartada ou esperança de Bento XVI, a última tentativa de dar uma vitalidade civilizatória e cristã, à nova União Européia.

Mas se a história serve como parábola, não se pode esquecer que foi neste mesmo período de glória cristã e espanhola, que Lutero, Calvino e Henrique VIII cindiram a Igreja Católica, criando as primeiras igrejas cristãs e nacionais, que nunca mais se submeteram a Roma, mesmo depois do Concilio de Trento (1545-1563) e do movimento repressivo da contra-reforma do século XVI e XVII. Além disto, foram este novos países protestantes que acabaram sucedendo a Espanha na dominação européia do mundo.

Muito antes que os Estados Unidos assumissem este mesmo papel, agora sob o impulso de sua “revolução neoconservadora” que já é de fato a herdeira – ainda que ilegítima – do fundamentalismo teológico e moral de Wotjyla e Ratzinger. Neste sentido é sempre bom lembrar que por mais que a Igreja abomine a guerra, não existe nenhum possibilidade de existência de um projeto expansionista e intolerante que não acabe em guerra contra os hereges, sejam eles quem forem, mesmo quando se fale muito em diálogo, em geral deixando para os outros a responsabilidade de fazer a guerra.
José Luis Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo". (www.poderglobal.net)

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