quarta-feira, 31 de julho de 2013

PRESIDENTE DA BOLÍVIA, EVO MORALES (Moscou, jul.2013)


Presidente boliviano intima Chefes de Estado europeus a quitarem a dívida estratosférica que a Europa possui com a América Latina.

Com linguagem simples, que era transmitida em tradução simultânea a mais de uma centena de Chefes de Estado e dignitários da Comunidade Europeia, o Presidente Evo Morales conseguiu inquietar sua audiência quando disse:

"Aqui eu, Evo Morales, vim encontrar aqueles que participam da reunião.

Aqui eu, descendente dos que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar os que a encontraram há somente quinhentos anos.

Aqui pois, nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e é o bastante. Nunca pretendemos outra coisa.

O irmão aduaneiro europeu me pede papel escrito com visto para poder descobrir aos que me descobriram. O irmão usurário europeu me pede o pagamento de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei a vender-me.

O irmão rábula europeu me explica que toda dívida se paga com bens ainda que seja vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu os vou descobrindo. Também posso reclamar pagamentos e também posso reclamar juros. Consta no Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.

Saque? Não acredito! Porque seria pensar que os irmãos cristãos pecaram em seu Sétimo Mandamento.

Expoliação? Guarde-me Tanatzin de que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão!

Genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que qualificam o encontro como de destruição das Indias, ou a radicais como Arturo Uslar Pietri, que afirma que o avanço do capitalismo e da atual civilização europeia se deve à inundação de metais preciosos!

Não! Esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinado ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito não só de exigir a devolução imediata, mas também a indenização pelas destruições e prejuízos. Não

Eu, Evo Morales, prefiro pensar na menos ofensiva destas hipóteses.

Tão fabulosa exportação de capitais não foram mais que o início de um plano ‘MARSHALLTESUMA’, para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis guerras contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho cotidiano e outras conquistas da civilização.

Por isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, poderemos perguntar-nos: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indoamericano Internacional?Lastimamos dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no Panamá, mas sem canal. Financeiramente, têm sido incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de cancelar o capital e seus fundos, quanto de tornarem-se independentes das rendas líquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este deplorável quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e os juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por cento de juros, que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados, mais o módico juros fixo de 10 por cento, acumulado somente durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça.

Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, informamos aos descobridores que nos devem, como primeiro pagamento de sua dívida, uma massa de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambos valores elevados à potência de 300. Isto é, um número para cuja expressão total, seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra.

Muito pesados são esses blocos de ouro e prata. Quanto pesariam, calculados em sangue?

Alegar que a Europa, em meio milênio, não pode gerar riquezas suficientes para cancelar esse módico juro, seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demencial irracionalidade das bases do capitalismo.

Tais questões metafísicas, desde logo, não inquietam os indoamericanos. Mas exigimos sim a assinatura de uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seus compromissos mediante uma privatização ou reconversão da Europa, que permita que a nos entregue inteira, como primeiro pagamento da dívida histórica."
DESCULPE, PRESIDENTE EVO MORALES
Boaventura de Sousa Santos
Esperei uma semana que o governo do meu país pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscou, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida.

Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa.

Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que é capaz de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um ato individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegrámo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibrámos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, Senhor Presidente, que, a muitos quilômetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.

O Senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um ato de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um presidente índio é sempre mais índio do que presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram.

Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena. Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de Novembro de 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colónias. De fato, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congénere europeu, quaisquer que fossem as razões.

O Senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o fato de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional.

Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que veem na Bolívia um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Contra a direita que quer sequestrar o Brasil


Contra a direita que quer sequestrar o Brasil

O espaço de discussão sobre as urgências do país foi deslocado da arena pública para o Parlamento e para as editorias dos grupos midiáticos. E o debate público foi emoldurado em parâmetros neoliberais de crítica à condução econômica e à gestão do Estado brasileiro frente à crise mundial.

Depois dos protestos multitudinários de junho, a conjuntura confluiu para um cenário nítido de polarização política e ideológica: está sendo disputado o destino do Brasil.

Uma disputa na qual o grande capital, as oligarquias, a direita e a mídia articulam e unificam suas estratégias e se conectam com o capital financeiro internacional. Com sua nostalgia colonial, querem sequestrar o Brasil e fazê-lo regredir à condição de entreposto da especulação e da agiotagem financeira.

Por outro lado, se vê um PT catatônico e sem iniciativa, que repete a mesma incapacidade dirigente evidenciada durante a crise do chamado “mensalão”. A realidade agora, porém, parece ainda mais complicada, porque o Partido mostra divisões comprometedoras - alguns personagens vão contra as prioridades políticas do governo.

Em 2005 foi Lula, e não o PT, quem encabeçou a defesa do governo contra a tentativa de retrocesso neoliberal. Na presente conjuntura, Dilma [e não o PT, outra vez] assumiu a primazia política, e com importantes respostas programáticas.

Está claro que o principal objetivo da oposição foi instrumentalizar os protestos para esgaçar o governo Dilma, Lula e o PT. É ilusão pensar que tivessem compromisso com a moralização da política ou com o aperfeiçoamento republicano.

Torpedear a Assembléia Constituinte e o plebiscito da reforma política foi mais que uma opção tática da direita; era requerimento estratégico da sua política. As ruas já tinham fornecido o substrato para uma narrativa desgastante do governo, e por isso suas vozes já não importavam. O essencial, então, era hierarquizar e enquadrar a agenda das ruas na “república parlamentar”, domínio seguro das elites onde se pactuam os arreglos e consensos entre as diversas frações da classe dominante, e onde se bloqueiam as mudanças democráticas e populares.

O espaço de discussão sobre as urgências do país foi deslocado da arena pública para o Parlamento e para as editorias dos grupos midiáticos. E o debate público foi emoldurado em parâmetros neoliberais de crítica à condução econômica e à gestão do Estado brasileiro frente à crise mundial.

A atual crise do capitalismo é uma das piores de toda a história. As crises capitalistas são momentos de acentuada competição para o reposicionamento competitivo entre diferentes países, setores econômicos e classes. Provocam o deslocamento intra-capitalista de renda, riquezas e, em especial, de poder. O Brasil, como sétima economia e polo dinâmico na economia mundial, é alvo óbvio das tensões internacionais, com o capital estrangeiro se articulando com seus nexos domésticos nessa sanha especulativa.

Graças à condução heterodoxa da economia, o país tem resistido razoavelmente a essa feroz crise. Não sacrifica empregos, direitos e desenvolvimento e, além disso, preserva e amplia as conquistas materiais e culturais dos últimos 10 anos. O governo não compensa a redução do lucro do capital causada pela crise especulativa suprimindo direitos sociais para transferir renda ao rentismo. Por isso, é amaldiçoado. O veto ao fim da multa de 10% do FGTS para proteger os empregos dos trabalhadores e o financiamento da política habitacional, bem demonstra essa opção.

Em crises menos graves [1998], o Brasil governado por aqueles que hoje promovem uma oposição fascista colapsou. Os serviços públicos foram sucateados, a indústria destruída, os empregos esfumaçados, o patrimônio público dilapidado e as riquezas do país transferidas à orgia financeira internacional via juros indecentes.

Os ataques que fazem à política econômica são para criar um clima artificial de instabilidade e de “fim de linha”. Criam um ambiente inóspito à reeleição [e consequente continuidade] do PT no governo. Os neoliberais querem, a todo custo, retomar em 2014 seu projeto conservador de poder.

A direita tem sido eficiente e unida. Unifica não somente o conjunto da oposição, mas também magnetiza setores da coalizão de governo. Explora as contradições do PT: demoniza diariamente o Secretário Nacional do Tesouro, mas incensa o Ministro das Comunicações nas páginas amarelas da revista Veja por suas posições “pós-petistas”. Veta Henrique Fontana para coordenar a comissão da reforma política da Câmara dos Deputados, pois confia nas posições “pós-petistas” do Cândido Vacarezza.

Na base do governo, a fragmentação baseada em cálculos eleitorais imediatistas é útil ao ascenso da direita, mas não atenta à complexidade da conjuntura. Se o próprio PT não se unir na defesa de Dilma e na sustentação das políticas por ela alinhadas, será muito difícil – senão impossível – convencer os aliados tradicionais [PDT, PSB, PCdoB e esquerda social] a se unirem contra o retrocesso neoliberal no Brasil. O PT tem, nessa circunstância, uma responsabilidade diferenciada.

Para financiar os pactos propostos por Dilma para a saúde, educação e mobilidade urbana, é necessário abrir um grande debate nacional sobre a taxação das grandes fortunas, do capital especulativo e avançar na progressividade tributária e levar o centro do debate no Congresso Nacional.

A democracia continuará aleijada [e manietada] se não existir pluralidade e diversidade dos meios de comunicação no país. É urgente um pacto nacional pela diversidade e pluralidade da informação, da produção e da difusão da riqueza cultural do país que não cabe nas telas das emissoras de um punhado seleto de famílias e igrejas.

A moralização da política e o enfrentamento da corrupção não será realidade sem mecanismos de controle social e de democracia participativa no sistema político e na gestão pública. A reforma política é a maior das prioridades e a principal das urgências do país. A direita não quer realizá-la – seja com ou sem plebiscito. A luta pela convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte para realizar a reforma política, na presente circunstância, pode ser o motor para uma ampla mobilização popular.

O Brasil está numa encruzilhada. Seu destino está sendo disputado a partir de perspectivas contrapostas, irreconciláveis. Conhecer e assumir com clareza o lado certo nessa disputa é um requisito fundamental. Devotar as melhores energias na sua defesa é uma exigência imprescindível.

(*) Analista político.

Intelectuais e professores debatem rumos políticos do Brasil


Intelectuais e professores debatem rumos políticos do Brasil

O encontro foi promovido pela 'Carta Maior' em São Paulo. Ideia é que esse debate possa contribuir para o entendimento da realidade do país, num momento em que manifestações populares tomaram as ruas. Meta é criar uma agenda comum, que deve ser colocada como uma contribuição ao debate das forças de esquerda do país.

São Paulo - Cerca de 40 intelectuais e professores participaram, na noite desta segunda-feira (29), de um primeiro ensaio para a definição de uma agenda comum, que deve ser colocada como uma contribuição ao debate das forças de esquerda do país. O encontro foi promovido pela Carta Maior e a ideia é que esse debate possa contribuir para o entendimento da realidade do país, num momento em que as manifestações que tomaram as ruas a partir do mês de junho provocam certa perplexidade, e também produza consensos para uma ação política transformadora e reformadora, contra a tentativa de setores conservadores de apropriação e capitalização de reivindicações populares.

A grande preocupação, presente na maioria das falas, era com a necessidade de preservar os avanços proporcionados pelos dez anos de governo do PT, entre Lula e Dilma. Ainda assim, nenhum dos presentes deixou de citar, em maior ou menor grau, as amarras que fazem com que esses avanços sejam insuficientes ou, ainda, na avaliação de alguns, com que o governo seja incapaz de comprar certos enfrentamentos.

Nesse sentido, a maioria dos presentes falou da necessidade de se pressionar os poderes por reformas que sejam capazes de transformar as estruturas de poder, sendo as principais delas uma reforma político-eleitoral que acabe com o poder econômico nas eleições e a democratização da comunicação.

O grande balizador das falas, e tema razoavelmente controverso, foram as manifestações que tomaram as ruas. Tido por todos como fator que alterou a conjuntura de fato, a sensação generalizada era de que, se não houver uma resposta à altura pelo governo, a situação para o campo mais progressista da sociedade ficará pior ainda. Este seria um momento propício para mudanças, uma oportunidade para o governo avançar ainda mais. Para os participantes, resta saber se o governo fará a opção, diante dos fatos, de avançar em uma política progressista.

Ao final da reunião, depois de um debate sobre a capacidade de um grupo com essa configuração influenciar os rumos da política, definiu-se que será elaborado um documento com temas mais relevantes e com a ideia de que o que veio das ruas não pode ser apropriado pelo setor conservador. Nos próximos dias haverá mais uma reunião, que será aberta. Os professores interessados, de São Paulo e de outros Estados, podem entrar em contato com a Carta Maior, através do e-mail J29@cartamaior.com.br, para receber informações de como participar.

“Pobre estudar medicina é afronta para a elite”, diz médico formado em Cuba


“Pobre estudar medicina é afronta para a elite”, diz médico formado em Cuba

Estudo do Ministério da Educação (MEC) aponta que 88% dos matriculados em universidades públicas de medicina estudaram em escolas particulares no ensino fundamental e médio. Para Andréia Campigotto, médica brasileira formada em Cuba, as universidades brasileiras precisam formar médicos com "um novo perfil, realmente voltados para atender o povo, para se fixar nos locais de difícil acesso, não só nos grandes centros como hoje."

A elitização do ensino de medicina no Brasil é um obstáculo para jovens de baixa renda entrarem nas universidade e se formarem. Já os problemas nas provas de revalidação do diploma dificultam o exercício da profissão em território nacional pelos brasileiros que conseguiram se formar no exterior.

“Quem estuda medicina no nosso país são os filhos das elites, em sua maioria. É uma afronta para a elite um negro, um pobre, um trabalhador rural, filho de Sem Terra estudar medicina na faculdade, principalmente pelo status conferido por essa profissão”, afirma Augusto César, médico brasileiro formado em Cuba e militante do MST.

Estudo do Ministério da Educação (MEC) aponta que 88% dos matriculados em universidades públicas de medicina estudaram em escolas particulares no ensino fundamental e médio. Os programas do governo de acesso à universidade, como o Programa Universidade para Todos (ProUni), ampliaram o acesso, mas ainda não conseguiram universalizar e democratizar a educação.

“A maioria das pessoas que entram na universidade pública para cursar medicina tem dinheiro para fazer um bom cursinho ou estudou o tempo todo numa escola particular. Claro que há exceções, mas o ensino de medicina do nosso país é altamente elitizado”, acredita Augusto.

“A maior parte das pessoas que tem acesso às escolas de medicina são de classe média e classe média alta. Um pobre numa universidade particular não consegue se sustentar pelo alto preço das mensalidades. Sem contar que hoje temos mais universidades privadas do que públicas na área da saúde, dificultando ainda mais o acesso”, diz a médica formada em Cuba Andréia Campigotto, que também é militante do MST.

Revalidação

A necessidade dos médicos brasileiros formados no exterior e estrangeiros passarem por uma prova para verificar se estão capacitados a exercer a profissão é um tema frequentemente pautado pela comunidade médica brasileira.

Independentemente do curso, todos os estudantes brasileiros que realizam um curso fora do país precisam passar por uma revalidação do diploma. No entanto, há falhas nesse processo no caso da medicina.

Um dos principais problemas é que não existe um padrão para o conteúdo dessas provas. Cada universidade federal pode abrir sua prova de reconhecimento de títulos no exterior. Com isso, o conteúdo não é uniforme. 

Além disso, o custo dessas avaliações é alto. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) cobra uma taxa de inscrição de R$1.172,20. Outras universidades pelo país têm preços similares.

Preconceito

“As provas são injustas, porque têm um nível de médicos especialistas, e não de 'generalistas', que é o que somos após nos graduar. Isso causa uma desaprovação considerável dos estudantes que vem de fora”, acredita Andréia.

“O que a categoria médica não divulga é que 50% dos estudantes da USP reprovaram na prova feita pelo Conselho de Medicina de São Paulo. Foi uma prova para médico generalista, muito mais fácil que a de revalidação”, revela.

Para Andréia, há um “grande preconceito” por parte dos profissionais brasileiros em relação aos médicos formados em outros países, o que cria um entrave para a revalidação dos diplomas.

“Seria justo se os profissionais que se formam no Brasil fizessem as mesmas provas que nós, para ver se realmente se comprova uma suposta má formação de nossa parte, bem como discursa a categoria médica brasileira”, observa.

Os dois médicos defendem a realização de uma avaliação dos conhecimentos dos profissionais graduados no exterior, mas destacam que as provas atuais não cumprem esse papel, porque não são aplicados testes adequados para auferir o conhecimento.

“As provas teóricas e práticas atuais não levam em conta as complexidades. Seria muito melhor colocar esse médico para trabalhar sob um tutor e, a partir daí, se instaurar uma avaliação rigorosa e permanente. Mas isso não tem sido pensado”, pontua Augusto.

Formação

A concepção de medicina ensinada nas universidades impede também que os estudantes vejam a luta pela saúde além do tratamento de doenças.

“Nas universidades de medicina, só se vê doença. Não se fala em saúde. Como você pode lutar pela saúde se só vê doenças? Também é saúde lutar pelo direito à cidade e por um sistema público de saúde de qualidade”, destaca Augusto.

De acordo com o militante, a concepção de saúde deve ultrapassar uma formação técnica. “O médico deve exercer a medicina a favor da construção de um país mais saudável, sem esperar que as pessoas ou uma comunidade adoeça para depois intervir sobre ela, pois é o modo de vida que vivemos que gera as doenças do país”, defende.

Andréia quer se tornar professora de medicina para colaborar para a mudança da forma de ensinar das universidades. Ela se classificou na primeira fase do concurso para lecionar na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

Segundo ela, o campo da educação deve ser ocupado por aqueles que querem democratizar a educação. “Precisamos formar profissionais com um novo perfil, realmente voltados para atender o povo, para se fixar nos locais de difícil acesso, não só nos grandes centros como hoje. É um campo interessante de atuação”.

O declínio de Detroit é um fracasso típico do capitalismo


O declínio de Detroit é um fracasso típico do capitalismo

Detroit está aí para nos provar: a estrutura hierárquica das empresas capitalistas proporciona aos acionistas majoritários e aos conselhos diretores os recursos necessários (lucros corporativos) para cortar as boas condições que os sindicatos às vezes conquistam. É assim que o sistema funciona.

O capitalismo é um sistema que deve ser julgado por suas falhas assim como por seus sucessos.

O crescimento econômico dos anos 1950 e 1960, conduzido pela indústria automobilística, fez de Detroit um símbolo global da renovação capitalista após a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Os altos salários nas indústrias, com segurança e benefícios exemplares, eram tidos como a prova da habilidade do capitalismo de gerar e sustentar uma ampla "classe média", que poderia incluir até os afro-americanos. Os trabalhos na indústria automobilística se tornaram o modelo de emprego que os trabalhadores norte-americanos buscavam.

O fato é que estas condições de trabalho foram impostas aos capitalistas através de duras lutas sindicais, especialmente nos anos 1930. Uma vez derrotados nessas lutas, rapidamente reescreveram a história para que os bons salários e boas condições de emprego se tornassem algo que os patrões ''deram" aos trabalhadores. De qualquer forma, Detroit se tornou uma cidade vibrante e mundial nos anos 1950 e 1960, e sua cultura profunda e peculiar inspirou a música mundial tanto quanto seus carros influenciaram o mundo industrial.

Nos últimos 40 anos o capitalismo transformou esse sucesso em um fracasso abjeto, culminando agora na maior falência municipal da história dos EUA.
Aqueles que tomavam as decisões chaves - os acionistas majoritários da General Motors, Ford, Chrysler, etc, e o conselho diretor que eles mesmo selecionaram - fizeram escolhas desastrosas. Eles não conseguiram competir com os capitalistas europeus e japoneses e consequentemente perderam uma fatia do mercado. Eles reagiram de maneira inadequada e com atraso à necessidade de desenvolver tecnologias que poupassem combustível. Mas o que causou o maior impacto foi o fato de terem reagido a seus próprios fracassos decidindo deslocar a produção para longe de Detroit, para que pudessem pagar aos trabalhadores salários mais baixos. 

Os fracassos competitivos das companhias automobilísticas, assim como suas mudanças de domicílio, tiveram duas consequências econômicas centrais. A primeira: destruíram as fundações da economia da cidade de Detroit. A segunda: acabaram com as possibilidades de se constituir uma classe média duradoura nos EUA. Os últimos 40 anos revelaram a incapacidade ou a falta de vontade do sistema capitalista de reverter esta situação.

Os salários reais deixaram de crescer nos EUA nos anos 1970, e não cresceram desde então, mesmo que o aumento da produtividade dos trabalhadores tenha gerado ainda mais lucros aos patrões. O aumento da dívida dos consumidores e o trabalho em excesso postergaram em alguns anos o impacto da estagnação dos salários reais no consumo. 

Mas, em 2007, com a estagnação dos salários e o esgotamento da possibilidade de endividamento do consumidor, uma crise longa e profunda chegou. Os patrões usaram o desemprego resultante para atacar a segurança e benefícios trabalhistas além do setor público, que fora construído nos anos 1950 e 1960 para dar suporte à classe média (por exemplo, o ensino superior público de baixo custo).

Os capitalistas da indústria automobilística se tornaram líderes e Detroit expressou o declínio econômico resultante dessa liderança. Na crise profunda que enfrenta desde 2007, a General Motors e a Chrysler conseguiram resgates financeiros do governo federal, mas Detroit não. As companhias automobilísticas conseguiram estabelecer reduções salariais (através de um sistema de salários diferenciados, baseados na produtividade) o que fez com que a economia de Detroit, baseada nos salários, não conseguisse se recuperar, enquanto os lucros e produção das companhias conseguiram. Os fracassos do capitalismo privado obtiveram a cumplicidade do governo federal.

Apesar das vitórias do passado, obtidas a partir de heroicas greves e outras ações da União dos Trabalhadores Automobilísticos (United Auto Workers, em inglês), os poderes decisórios das companhias se mantiveram nas mãos dos acionistas majoritários e seu conselho diretor. Eles usaram esse poder para enfraquecer e até mesmo desfazer o que as lutas sindicais conseguiram conquistar. Os sindicatos se provaram incapazes de parar esse processo. Os capitalistas de Detroit então minaram as condições trabalhistas que os trabalhadores arrancaram deles - e assim destruíram a cidade do "sucesso capitalista" construída sob essas condições.

O declínio de Detroit, como o declínio paralelo da União dos Trabalhadores Automobilísticos, nos ensina uma lição inevitável. Os mesmos contratos que os sindicatos militantes conquistaram deram aos patrões grandes incentivos para que eles encontrassem caminhos por fora desses contratos. 

A estrutura hierárquica das empresas capitalistas proporciona aos acionistas majoritários e aos conselhos diretores os recursos necessários (lucros corporativos) para cortar as boas condições que os sindicatos às vezes conquistam. É assim que o sistema funciona. Detroit está aí para nos provar isso. A solução não está mais nos contratos.

Se os trabalhadores tivessem transformado as companhias em cooperativas de trabalhadores, Detroit teria evoluído de maneira diferente. As cooperativas não teriam deslocado a produção, o que acabou com seus trabalhos, famílias e comunidade. O deslocamento da produção, uma estratégia tipicamente capitalista, foi a chave para a queda populacional de 1,8 milhão em 1950 para 700.000 pessoas hoje. 

As cooperativas de trabalhadores talvez tivessem encontrado alternativas ao deslocamento da produção que poderiam ter salvado Detroit. Elas teriam, por exemplo, pago menos em dividendos aos proprietários e salários aos gerentes. Essas economias, se transferidas a um custo mais baixo para o consumidor, teriam possibilitado melhor preço em relação às montadoras japonesas e europeias do que aquele conseguido pelas Três Grandes de Detroit.

Não podemos saber exatamente o quanto a mais as indústrias de Detroit teriam se beneficiado do progresso técnico se elas tivessem se organizado como cooperativas de trabalhadores. Podemos supor que os trabalhadores possuem mais incentivos para melhorar a tecnologia em cooperativas que eles possuem e operam do que como empregados em empresas capitalistas. Por fim, cooperativas teriam produzido (e ajudado a promover) veículos de transporte coletivo ou outras alternativas aos automóveis, uma vez que eles viam que uma produção continuada de automóveis não garantiam as prioridades - emprego e o bem-estar dos trabalhadores - às cooperativas.

Que tipo de sociedade dá a um número relativamente pequeno de pessoas a posição e o poder para fazer decisões corporativas que impactam milhões dentro e no entorno de Detroit, enquanto excluem esses mesmos milhões de participarem das decisões?

Quando as decisões capitalistas condenam Detroit a 40 anos de um declínio desastroso, que tipo de sociedade alivia esses capitalistas de qualquer responsabilidade na reconstrução da cidade? 

A resposta mais simples a essa pergunta: nenhuma economia genuinamente democrática poderia funcionar dessa forma.

Tradução de Roberto Brilhante

Dilma anuncia R$ 8 bilhões para mobilidade urbana em SP


Dilma anuncia R$ 8 bilhões para mobilidade urbana em SP

"É a primeira vez que anunciamos de forma concentrada esse montante de recursos. E anunciamos a possibilidade de essas obras ocorrerem em curto prazo", destacou a presidenta. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, ressaltou a importância da parceria com o governo federal.

São Paulo - A presidenta Dilma Rousseff e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, anunciam neste momento na capital paulista a destinação de R$ 8 bilhões de recursos para mobilidade urbana. "É a primeira vez que anunciamos de forma concentrada esse montante de recursos. E anunciamos a possibilidade de essas obras ocorrerem em curto prazo", destacou a presidenta.

Haddad ressaltou a importância da parceria com o governo federal. "Testemunhei o esforço em feito pela Federação em proveito dos investimentos necessários para melhoria das condições de vida da população e das cidades, contemplando estados e municípios com muitos investimentos."

De acordo com o ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro, serão destinados R$ 3 bilhões exclusivamente para corredores de ônibus e terminais de integração. Além disso, será R$ 1,4 bilhão para drenagem, R$ 2,2 bilhões para recuperação de mananciais e R$ 1,5 bilhão para construção de moradias do Programa Minha Casa, Minha Vida.

Segundo Haddad, é difícil investir porque há obstáculos institucionais, leis, órgãos de controle e ritos que devem ser seguidos. "A maior frustração é anunciar um empreendimento e não vê-lo se realizar. O maior desafio hoje pra a administração pública é colocar os interesses os cidadãos acima dos interesses partidários, deixar divergências do período eleitoral", disse. "Fizemos parcerias com o governo do Estado e estamos anunciando aqui talvez o maior pacote de medidas na área de mobilidade urbana", completou.

O prefeito disse ainda ser um erro acreditar que por São Paulo ser uma cidade de grandes dimensões e de importância para ao país não precisa de investimentos ou parcerias. "O maior equívoco do passado foi acreditar que nossa grandeza nos dava a possibilidade de isolamento. Temos que nos alinhar, buscar parceria para crescer ainda mais, porque o sucesso de São Paulo faz parte do sucesso do Brasil e vice-versa."


Fotos: Prefeitura/SP 

Caso Snowden está mudando o mundo digital


Caso Snowden está mudando o mundo digital

O caso Edward Snowden nos levou a mudar de mundo, a modificar nossos hábitos no mundo digital e a exigir dos poderes públicos uma intervenção mais decisiva nesta área. É isso o que disse à 'Carta Maior' Isabelle Falque-Pierrotin, a presidenta da Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNIL), organismo francês encarregado de cuidar da proteção dos dados pessoais. Por Eduardo Febbro, de Paris

Paris – A história de Edward Snowden marca uma fronteira definitiva entre as ilusões e a confiança na tecnologia e a crua realidade de nosso comportamento inocente: ninguém mais poderá dizer que “não sabia”. Agora sabemos todos, não só que estamos sendo constantemente espionados, mas sim e, sobretudo, que essa espionagem é realizada com a cumplicidade dos operadores privados em quem havíamos depositado nossa confiança: Google, Skype, Microsoft, Apple e seus demais aliados na empresa planetária da vigilância e da violação da intimidade. A era digital, do seu modo, era a idade da inocência: éramos perfeitamente capazes de fechar as portas com chave, de fechar as janelas, de colocar grades na varanda ou na janela, de ficar atentos ao andar em bairros perigosos em certas horas da noite. Mas, ao mesmo tempo em que existia essa consciência do perigo do meio ambiente físico, deixamos entrar em casa um espião, um espoliador de dados, um bandido teleguiado desde os escritórios de inteligência do grande império.

Na América do Sul conhecemos bem os resultados dessa prática: o Plano Condor montado pelas ditaduras de Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai funcionou com base em um sistema de comunicações, de armazenamento e tratamento de dados chamado Condortel e cujo eixo foram computadores da IBM que processavam as informações sobre os suspeitos. Hoje, o programa espião Prisma permite elaborar um “perfil” planetário de suspeitos. Um exemplo basta para compreender um dos numerosos alcances dessa produção de perfis em massa: se alguém viaja pela primeira vez para os Estados Unidos em classe executiva ou primeira classe pode ser tratado com atenção especial pelos serviços de segurança. Como os assentos da classe executiva e da primeira classe estão perto da cabine dos pilotos, os passageiros sem histórico nesse tipo de viagem serão, sem dúvida alguma, vigiados com atenção.

Para além da curiosa trama do caso, Edward Snowden nos levou a mudar de mundo, a modificar nossos hábitos e a exigir dos poderes públicos uma intervenção mais decisiva. É exatamente isso o que pensa Isabelle Falque-Pierrotin, a presidenta da Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNIL). Este organismo do Estado francês é encarregado de cuidar da proteção dos dados pessoais, Criada em 1978, a Comissão nacional de informática e Liberdades tem hoje uma missão mais essencial do que nunca: a construção de uma ética digital, a capacitação para fazer frente aos desafios e excessos dos operadores e dos Estados e, acima de tudo, a proteção da privacidade dos indivíduos.

O caso Snowden tem muitas leituras, desde a policial até a informática. Para você, o que significam as revelações que ele fez ao mundo?
O caso Snowden quer dizer que entramos em uma nova era, quer dizer que a era digital é uma era na qual há dados pessoais por todas as partes, por todos os usos. Quer dizer também que, a partir disso, devemos permanecer atentos a nossa vida individual. Não podemos nos apoiar unicamente nos demais, devemos nos responsabilizar com nosso comportamento e com nossa utilização da internet. Não se trata de montar uma censura individual, isso seria contra- produtivo. Hoje estamos todos concernidos pelo mesmo problema. A partir da agora é preciso adaptar os comportamentos. O caso Snowden mostra igualmente que a transparência entrou em uma nova fase e que, talvez, seja necessário aportar respostas mais institucionais que a resposta de Snowden. Devemos construir controles democráticos, tanto dos poderes públicos como das empresas, que são extremamente poderosas. 

Tivemos um grande choque com o que ocorreu com Snowden. O que esse caso mostra é que existe uma aliança objetiva entre os grandes grupos da internet e os poderes públicos estrangeiros para colocar os indivíduos sob vigilância. De fato, a vigilância dos poderes públicos existe há muito tempo. Mas essa vigilância era feita, digamos, em relação a pessoas más. Agora, em troca, estamos potencialmente em um sistema onde somos potencialmente vigiados em nosso uso cotidiano e banal da internet. Isso dá medo aos indivíduos, ao mesmo tempo em que acentua a necessidade de construir garantias jurídicas importantes e reais frente aos grandes grupos.

O que se pode exigir concretamente de gigantes como Google, Facebook, Microsoft, Skype e outros?
É preciso exigir que abram suas caixas-pretas e digam o que fazem com nossos dados pessoais, como os utilizam e a quem permitem o acesso dos mesmos. O período atual é decisivo porque a Europa está elaborando seu novo marco jurídico e é evidente que o caso Snowden nos obriga a cerrar fileiras e a avançar em grupo para dizer aos atores internacionais e aos Estados estrangeiros: “aqui vocês devem atuar desta forma”.

E que estratégia deve se adotar frente ao grande público. Já sabemos que a questão da espionagem não é uma fantasia, ou uma paranoia dos adeptos das teorias da conspiração, mas sim uma realidade universal.
Não creio que manejar esse tema mediante o medo seja algo bom. O caso Snowden reforça a inquietude dos cidadãos e a vontade de transparência. Nós queremos fazer circular a ideia de que o universo digital é extraordinário porque todas essas ferramentas nos oferecem uma potencialidade de ação considerável. O problema está em que, no fundo, não compreendemos bem essas ferramentas. Por isso esse caso nos incita a desenvolver a educação digital. Isso é o que estamos fazendo agora na França: lançamos a educação digital como uma causa nacional. Essa é, creio, a resposta positiva ao caso Snowden. Mais amplamente, creio que na França e na Europa não se tomou plena consciência da magnitude do fenômeno digital. Snowden é, a sua maneira, o ponto culminante de uma evolução que se constata há um ano.

O mundo digital entrou na vida das pessoas com suas preocupações, a vigilância, por exemplo, mas também pelos aspectos positivos de sua utilização. Há, ao mesmo tempo, muito apetite por esses instrumentos e, também, um medo latente que só espera a circunstância certa para se cristalizar em um ou outro ponto. Hoje é Snowden, amanhã será outra coisa. A resposta deve ser a pedagogia e a responsabilização dos atores econômicos pedindo-lhes oficialmente garantias de parâmetros obrigatórios, transparência e a permissão para que os clientes escolham realmente, o que não é o caso hoje.

Como funciona a Comissão e quais são suas atribuições?
A CNIL é uma autoridade administrativa independente cujo trabalho consiste em proteger os dados pessoais dos indivíduos, ou seja, todos os dados que circulam no mundo digital e que dizem respeito à vida das pessoas. O trabalho da CNIL consiste também de uma tarefa pedagógica, que é acompanhar o uso dos instrumentos, controlar as empresas e os responsáveis públicos para proteger os dados pessoais dos indivíduos. Trata-se, em resumo, de garantir a vida privada e as liberdades digitais neste universo. É uma tarefa ambiciosa. A Comissão é um instrumento muito potente: temos um orçamento substancial e há 148 pessoais trabalhando aqui. Nosso trabalho permite às empresas a construção de um modelo econômico mais legítimo.

Quanto aos atores públicos, nós fixamos limites e marcas para eles. No universo atual isso é muito útil. Somos uma instância que é consultada sobre os textos de lei e os decretos cada vez que o tema da proteção dos dados pessoais está em jogo. Temos também outros poderes como, por exemplo, a aprovação da utilização da biometria. Temos igualmente um poder de controle e sanção sobre tudo que possa violar a proteção dos dados pessoais. 

Contamos com todo o arsenal necessário para um regulador. Se o responsável pelo tratamento de dados não está em conformidade com nossa lei podemos aplicar sanções. Atualmente estamos nesse processo de sanção com Google. A empresa tem três meses para cumprir o que exigimos. Se não o fizer, temos a possibilidade de discutir sanções financeiras.

Tradução: Katarina Peixoto

Brasil: geopolítica e desenvolvimento


Brasil: geopolítica e desenvolvimento

Apesar da posição do governo, existem divisões e resistências profundas, dentro de suas elites e de suas agências governamentais, que seguem retardando a consolidação efetiva da nova estratégia brasileira. Como se o sistema político, a sociedade e a intelectualidade brasileira ainda não estivessem preparados para assumir os objetivos definidos pelos documentos oficiais. Por José Luís Fiori

“A impotência dos economistas não é culpa da economia, é culpa do “desenvolvimento” que não cabe dentro dos limites estreitos da própria economia.”
J.L.F. “Poder, Geopolítica e Desenvolvimento”, Editora Boitempo, SP, 2013, pg 21, (no prelo)




1. Na primeira década do século XXI, o Brasil começou a trilhar uma estratégia de afirmação internacional que retoma iniciativa proposta e interrompida na década de 60. De maneira ainda titubeante, o Brasil vem expandindo sua presença em alguns tabuleiros geopolíticos e vem tentando aumentar sua capacidade de defesa autônoma de suas reivindicações internacionais. A nova estratégia foi definida pelo Plano Nacional de Defesa, e pela Estratégia Nacional de Defesa, aprovados pelo Congresso Nacional, em 2005 e 2008, respectivamente. Nos dois documentos, o governo brasileiro propõe uma política externa que integre suas ações diplomáticas, com suas politicas de defesa e de desenvolvimento econômico, e ao mesmo tempo, introduz um conceito inovador na história democrática do país, o conceito de “entorno estratégico”, onde o Brasil se propõe irradiar, de forma preferencial, a sua influência e a sua liderança, incluindo a América do Sul, a África Subsaariana, a Antártida, e a bacia do Atlântico Sul.

2. Um país pode projetar o seu poder e a sua liderança, fora de suas fronteiras nacionais, através da coerção, da cooperação, da difusão das suas ideias e valores, e também, através da sua capacidade de transferir dinamismo econômico para sua “zona de influência”. Mas em qualquer caso, uma política de projeção de poder exige objetivos claros e uma coordenação estreita, entre as agencias responsáveis pela política externa do país, envolvendo a diplomacia, a defesa, e as políticas econômica e cultural. Sobretudo exige uma sociedade mais igualitária e mobilizada, e uma “vontade estratégica” consistente e permanente, ou seja, uma capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos internacionais de longo prazo, junto com a capacidade de planejar e implementar ações de curto e médio prazo, em conjunto com os atores sociais, políticos e econômicos relevantes. 

3. Ao contrário de tudo isto, desde a II Guerra Mundial, e mesmo depois do fim da Guerra Fria, até o início do século XXI, a política externa brasileira oscilou no tempo, mudando seus objetivos imediatos segundo o governo, apesar de que tenha mantido sempre seu alinhamento – quase automático – ao lado das “grandes potências ocidentais”. E mesmo hoje, apesar da posição do governo, existem divisões e resistências profundas, dentro de suas elites e dentro de suas agências governamentais, que seguem retardando a consolidação efetiva da nova estratégia brasileira. Como se o sistema político, a sociedade e a intelectualidade brasileira ainda não estivessem preparados para assumir os objetivos definidos pelos documentos oficiais. A própria universidade brasileira só expandiu recentemente sua capacidade de pesquisa e formação de recursos humanos na área internacional. E algumas universidades do país não possuem nem centros nem unidades especializadas, como é o caso surpreendente da UFRJ, a maior universidade federal do país. Além disto, existe uma carência acentuada de instituições ou think tanks que cumpram o papel de reunir as informações e as ideias indispensáveis para o estudo e a escolha de alternativas, e para a orientação inteligente da inserção internacional do país. 

4. De qualquer maneira, se o Brasil conseguir sustentar suas novas posições, terá que se enfrentar inevitavelmente com uma regra fundamental do sistema: todo país que se propõe ascender a uma nova posição de liderança regional ou global em algum momento terá que questionar os “consensos éticos” e os arranjos geopolíticos e institucionais que foram definidos e impostos previamente, pelas potências que já são ou foram dominantes, dentro do sistema mundial. Esta regra não impede o estabelecimento de convergências e alianças táticas, entre a potência ascendente com uma ou várias das antigas potencias dominantes, mas exige que a potência ascendente mantenha seu objetivo permanente de crescer, expandir e galgar posições, dentro do sistema internacional. Isto não é uma veleidade ideológica, é um imperativo do próprio sistema interestatal capitalista: neste sistema, “quem não sobe cai” (nota). 

5. Mesmo assim, sempre existirá um imenso espaço de liberdade e de invenção revolucionária para o Brasil: descobrir como projetar seu poder e sua liderança fora de suas fronteiras sem seguir o figurino tradicional das grandes potências. Ou seja, sem reivindicar nenhum tipo de “destino manifesto”, sem utilizar a violência bélica dos europeus e norte-americanos, e sem se propor conquistar qualquer povo que seja, para “convertê-lo”, “civilizá-lo”, ou simplesmente comandar o seu destino.

Nota
Elias, N. (1993), O Processo Civilizador, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, pág. 94


Fotos: Fundap/SP