quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Brasil que a mídia oculta também é árabe


Uma rica mistura de povos, com seus matizes, costumes e tradições, compõe a complexa sociedade brasileira. Os árabes estão aí inseridos. Vindos em distintos períodos, provenientes de várias cidades e regiões, por razões econômicas, pela guerra ou ocupação de terras, esses imigrantes vêm dando sua contribuição desde que chegaram. Sua influência está viva na língua e literatura, nas ciências, na arquitetura, na gastronomia, nas técnicas construtivas e agrícolas, na música, no samba. Segundo escreve o professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) Oswaldo Truzzi, em artigo intitulado “Verde, amarelo, azul e mouro”, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional (edição de julho de 2009), “até mesmo o bom costume da limpeza pessoal, que muitos atribuem somente aos indígenas, deve um tributo aos árabes”. Hábito que teria sido importado em especial dos muçulmanos, cujas abluções são parte do ritual preparatório às orações.
Em sua complexidade, essa forte influência cultural, contudo, ainda é desconhecida da maioria. A grande mídia brasileira tem tido importante papel na negação dessa parte da “identidade nacional”, ao retratar os árabes de forma caricatural. Também na Revista de História da Biblioteca Nacional, em outro artigo (“Toda forma de fé”), o professor de Antropologia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Oriente Médio dessa instituição, Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, desmonta uma das confusões frequentes nas notícias sobre tais povos e que contribuem a essa representação: a de que todos seriam muçulmanos. Como aponta ele em seu texto, é um equívoco recorrente. “Os povos do Oriente Médio ostentam uma enorme diversidade de tradições e crenças cristãs, muçulmanas e judaicas. Os milhares de sírios, libaneses e palestinos que desembarcaram no País entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX contribuíram para ampliar a pluralidade religiosa na sociedade brasileira”, enfatiza.
A distorção de que se trata de uma massa homogênea, muito utilizada pela grande mídia, serve para alimentar estereótipos como o do homem violento e da mulher submissa – como se essa fosse a regra entre os seguidores do Islã, o que nem de longe é verdade. Para difundi-los e garantir que prevaleçam, é constante a desumanização dos árabes. São representados como um bando sem nome, sem lei, sem rei, sem alma. A visão orientalista, denunciada pelo intelectual palestino Edward Said em sua obra “Orientalismo”, predomina, ocultando o legado dessa cultura milenar ao Brasil, em particular, e ao mundo.
Democratizar a comunicação
O discurso único que prevalece na grande mídia brasileira não encontra contraponto à altura, dada a concentração que caracteriza o setor: são apenas seis famílias a controlar os principais meios de comunicação, sem quaisquer regras. Sua vulnerabilidade começa, contudo, a ser evidenciada, com a expansão da Internet e o cenário de convergência digital que se consolida. O risco é que suas garras se estendam também para esses espaços e que seu poder novamente impeça a diversificação de conteúdo.
Nesse sentido, a Conferência Nacional de Comunicação, a se realizar entre 14 e 17 de dezembro próximo em Brasília, se coloca como uma janela de oportunidades. Pela primeira vez, a reivindicação histórica dos militantes por uma mídia plural, livre e democrática – que dê conta da diversidade peculiar à sociedade brasileira – se reflete em uma construção coletiva capaz de pautar esse debate e dar o impulso necessário a que as propostas ali apresentadas sedimentem o caminho à mudança do modelo atual.
Um dos resultados esperados é a alteração nas representações feitas pela mídia e, consequentemente, na forma como os diversos povos são vistos pela grande massa de brasileiros. Os quais, vale destacar, além da origem indígena, portuguesa, negra, são também um pouco árabes. Do cafezinho ao pandeiro e cavaquinho, não há como negar essa influência.

A primeira vida de Hugo Chávez


As mais de 700 páginas do livro de Ignácio Ramonet são lidas com muito interesse, pela trajetória de Hugo Chavez e pela sua imensa sensibilidade política.

por Emir Sader em 31/10/2013 às 13:46




Emir Sader
Quando Ignacio Ramonet anunciou que havia começado a fazer um livro de entrevistas, as comparações não poderiam deixar de ser feitas com o excelente livro de entrevistas com o Fidel. Este resume toda a trajetória do líder cubano, pouco antes que ele se retirasse da vida política ativa, que ao mesmo tempo era uma viagem por todos os grandes acontecimentos vividos por Fidel.

O primeiro sentimento em relação ao livro com Hugo Chavez era de que “era demasiado cedo”, ele não teria vivido ainda um período suficientemente longo de tempo, além de que se suporia que viveria um período longo, incluindo acontecimentos de grande transcendência.

A doença e a morte do líder venezuelano fizeram com que a preocupação de que seria “demasiado cedo”, terminasse tendo outro sentido. O livro foi feito “demasiadamente tarde”, pela curta trajetória que terminou tendo Hugo Chavez, a ponto de que um alentado volume de 700 paginas tenha permitido apenas o relato da sua “primeira vida”- como diz o titulo do livro -, que vai apenas até a primeira vitória eleitoral de Hugo Chavez.

Apesar dessa limitação, se lê o livro com grande interesse  e com o indisfarçável sentimento de tristeza, pela perda prematura de um líder de tal envergadura. As entrevistas permitem um retrato humano de Hugo Chavez, desde sua primeira infância, de menino pobre do interior de um país do continente, que vendia doces preparados pela sua avó pelas ruas da sua cidade. 

Um menino predestinado – o que às vezes ele aceita, outras nega– pela época que lhe correspondeu viver – ele diz que “a história o absorveu”, com um caráter rebelde desde cedo, indignado pelas injustiças e pelos atos de prepotência que pôde presenciar. Lider na escola, nos jogos de beisebol, nos grupos de rua, precocemente grande leitor de literatura clássica, assim como de revistas e de almanaques, que lhe ensinavam as primeiras coisas sobre o mundo.

Um menino que pôde conviver com familiares envolvidos em epopeias históricas, em um tempo de grandes instabilidades e turbulências na Venezuela. Por esse meio – além das historias da avó, do cinema e das ruas -, ele foi se formando como ser humano, empapado pela historia da Venezuela e da América Latina. Ia se gestando ali um grande líder, das entranhas mesmas do povo venezuelano. “Eu me fui aproximando, por distintas vias, a esse rio que é a história“.

A carreira militar foi quase um caminho natural para aquele jovem rebelde, identificado com os grandes heróis nacionais venezuelanos, antes de tudo com Bolivar. Um jovem de origem popular, descendente de índios, negros e espanhóis, diante de uma das elites as corruptas do continente.

A segunda parte do livro já faz parte da historia contemporânea da Venezuela: a segunda eleição de Carlos Andres Peres, o pacote neoliberal e a reação popular chamada de “caracazo”, a primeira tentativa de sublevação militar dirigia por Hugo Chavez, o fracasso militar e a vitória politica, a prisão, a anistia, a viagem pela América Latina, o primeiro encontro com Fidel. A dura campanha para convencer a seus companheiros que valia a pena optar naquele momento pela via institucional, apresentando seu nome como candidato a presidente, a campanha e a vitória. Se vale de frases como “Os únicos que pensam que a perfeição é possível na política, são os fanáticos.”

Aí começava outra vida, a do grande estadista, dirigente latino-americano, que não chegou a ser abordada pelo livro. Suas mais de 700 páginas são lidas com muito interesse, pela trajetória de Hugo Chavez e pela sua imensa sensibilidade política. Mas também com grande tristeza, porque aumenta o sentimento de perda que sua morte deixou a todos – venezuelanos, latino-americanos, povos do mundo.

O Bolsa Família e os gastadores de gente

Hoje são 14 milhões de famílias beneficiadas em todo o país pelo Programa Bolsa Família com direito a uma transferência média de US$ 35 por mês.

por: Saul Leblon 



‘Aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais réles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessa, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores, são tidos como uma mera força de trabalho - um carvão humano-  a ser desgastada na produção. É preciso ter coragem de ver este fato porque só a partir dele, podemos romper nossa condenação ao atraso e à pobreza, decorrentes de um subdesenvolvimento de caráter autoperpetuante ...”(Darcy Ribeiro;1986)

Em janeiro de  2003, quando o programa Fome Zero foi lançado como primeiro ato do primeiro dia útil do governo Lula, havia um clima de terceiro turno no país.

Inconsolável com a derrota de seu eterno candidato José Serra, a mídia conservadora mostrava as garras.

O objetivo do cerco era acuar a gestão petista numa crise de desgoverno para, ato contínuo,  retificar o deslize das urnas de forma saneadora.

 Da universidade não faltavam contribuições obsequiosas.

Intelectuais de bico longo e ideias curtas  pontificavam o despropósito de  um programa de combate à fome num país onde, dizia-se de forma derrisória, esse era um problema menor.

O Fome Zero era o nome fantasia de uma ampla política de segurança alimentar.

Incluía duas dezenas de políticas e ações, entre as quais a recuperação do poder de compra do salário mínimo e sua extensão aos aposentados, a expansão e o fortalecimento da merenda escolar,  o fomento e o crédito à agricultura familiar, estratégias de convivência com a seca no semi-árido, reforma agrária e transferências condicionadas de renda aos excluídos.

O Bolsa Família foi um pedaço de vertebra que ganhou vida própria e assumiu a linha de frente do guarda-chuva mais geral.

Supostamente filiado ao focalismo do Banco Mundial –gastar estritamente com os miseráveis e por tempo curto— desfrutou de um espaço maior de tolerância, o que favoreceria a sua fulminante implantação.

Hoje são 14 milhões de famílias beneficiadas em todo  país com direito a uma transferência média de US$ 35 por mês.

Ninguém mais mexe nesse vespeiro vigiado de perto por zelosas abelhas rainhas.
 
As mulheres detém a titularidade de 94% dos cartões de acesso aos saques.

Gerem, portanto, um benefício que contempla uma fatia da população equivalente a 52 milhões de brasileiros: 25% do país.

Quem são essas mulheres?

O que pensam? O que pretendem do novo ciclo de crescimento brasileiro? Que papel  poderiam desempenhar na construção democrática de alternativas à encruzilhada econômica atual?

São perguntas que não deveriam mais ser ignoradas depois de dez anos.

O governo, com razão, substituiu o ‘clientelismo’ potencial em qualquer programa social por relações impessoais no caso do  Bolsa Família.

A tecnologia do cartão magnético estabeleceu uma relação sanitária direta entre o detentor do benefício e a política pública de Estado.

O cuidado  é louvável, mas não deveria interditar o potencial participativo  do programa.

Quando foi criado o Fome Zero  incluía um canal de aperfeiçoamento e engajamento de seus  participantes, rapidamente demonizado pelo conservadorismo.

Os Comitês Gestores do Fome Zero eram compostos majoritariamente por representantes das famílias beneficiadas, aglutinadas em núcleos municipais.

A virulenta oposição de prefeitos e coronéis à emergência do novo poder local levaria rapidamente  à extinção desse braço participativo.

Se o êxito do programa dá razão ao recuo pragmático feito há dez anos, hoje a ausência de um fórum democrático para as 14 milhões de famílias soa como uma aberração política.

O destino dessas famílias está no centro das escolhas do desenvolvimento brasileiro.

E vice versa.

Não apenas isso.

Esse entrelaçamento é a pedra mais incômoda no sapato da agenda conservadora nos dias que correm.

O desafio é adequar o invólucro ao novo conteúdo que  empurra a velha embalagem com os cotovelos em alça.

A opção do conservadorismo é devolver a pasta de dente ao tubo com a alavanca de um arrocho disfarçado de responsabilidade fiscal.

A tentativa progressista até agora consiste em esticar ao máximo as linhas de passagem, dando tempo ao tempo para acomodação da crise mundial e a materialização de investimentos e retornos, como os do PAC e os do pré-sal.

Não há receita  pronta.

Quem dá  coerência macroeconômica ao desenvolvimento é a correlação de forças da sociedade em cada época.

Quanto pode avançar a arrecadação fiscal sobre o estoque da riqueza para acelerar o calendário dos investimentos requeridos pelo país?

Qual a chance de se fixar uma taxa de câmbio favorável às exportações, sem anular o poder de compra popular com uma guinada  devastadora nos preços relativos?

Estados fragilizados por privatizações, déficits externos asfixiantes, obsolescência industrial, atrofia fiscal , dispersão de interesses e de energia política são ingredientes incompatíveis com um ciclo de investimentos à altura do novo mercado interno brasileiro.

A hegemonia capaz de acomodar esse conjunto requer um misto de força e consentimento ancorado em um projeto crível de futuro.

Isso não se faz sem sujeito histórico correspondente, dotado de organização mínima que institucionalize seus interesses.

A ninguém ocorre fazer de 14 milhões de famílias do Bolsa Família uma correia de transmissão de conveniências de governos. Sejam eles quais forem. 

A construção do Estado social brasileiro, porém, não avançará muito mais se menosprezar os interesses  catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos.

Dificilmente os comitês gestores do Fome Zero serão ressuscitados.

Mas a meta original de dar voz e espaço na condução do programa aos seus principais interessados pode e deve ser recuperada.

Uma Conferência Nacional das mulheres que fazem do Brasil  a referência mundial na luta contra a fome e a miséria, por certo adicionaria avanços não apenas ao programa.

Mas também à  hegemonia social  de que o Brasil necessita  para distanciar cada vez mais a sua agenda de desenvolvimento da lógica regressiva dos ‘gastadores de gente’, de que falava o desassombro  do saudoso Darcy Ribeiro.

São Paulo vai treinar jogadores marroquinos


Convênio de cinco anos firmado entre o clube paulista e a empresa OCP S.A. do Marrocos acertou a vinda de jovens de 14 a 17 anos para treinamento com as categorias de base do time.


Rubens Chiri/saopaulofc.net
Marroquinos irão treinar com atletas do São Paulo
São Paulo – O São Paulo Futebol Clube irá treinar jovens marroquinos de 14 a 17 anos no Centro de Formação de Atletas (CFA) Presidente Laudo Natel, em Cotia. O treinamento dos atletas árabes foi acertado em um convênio firmado pelo clube brasileiro com a empresa OCP S.A, do Marrocos, no início do ano, mas ainda não tem data definida para começar.
A OCP S.A é parte do Grupo OCP, estatal fundada em 1920 e principal exportadora de rocha fosfática e seus derivados no mundo. A empresa também mantém instalações e programas para o fomento de atividades esportivas no Marrocos. “É uma parceria esportiva, na qual vamos apresentar a metodologia e o conceito de trabalho do São Paulo. A OCP tem tradição na área esportiva, o que inclui tênis e atletismo. Eles estão incluindo o futebol agora. Acredito que temos muito a trocar”, explica Marcos Tadeu Novais, diretor de futebol de base do São Paulo.

A duração do convênio será de cinco anos. Neste período, vários grupos de até 20 jovens virão ao Brasil para ficar de oito a dez semanas treinando junto com os atletas são-paulinos. “Eles vão treinar dentro das próprias categorias do São Paulo para que conheçam o trabalho do clube. Não vamos trabalhar com turmas separadas”, detalha Novais.

Além do treinamento dos atletas, o convênio prevê também atividades para os profissionais das áreas técnicas do futebol marroquino. “Para trabalhar o futebol, é preciso ter conhecimento da logística em campo. Vamos apresentar o conceito que o São Paulo usa na base para uma comissão técnica que for escolhida pela OCP”, conta o diretor. O acordo também abre a possibilidade da realização de atividades no país árabe. “É possível que haja workshops do São Paulo no Marrocos”, diz Novais.

Para integrar o treinamento no Brasil, os jovens marroquinos serão pré-selecionados pela OCP. O São Paulo participará na decisão final dos atletas que virão treinar no clube. Além dos treinos, os jogadores árabes também poderão entrar em campo pelo tricolor paulista. “Eles não estarão inscritos nos jogos oficias no Brasil, mas vão participar de amistosos no País, dentro do processo de parceria”, destaca o diretor de base.

Parte da indefinição da data de início do treinamento dos atletas se deve à Copa do Mundo que será realizada no Brasil, em 2014. “Nossos centros (de treinamento) serão ocupados por equipes de outros países”, diz Novais. O calendário escolar dos jovens marroquinos, diferente do existente no Brasil, também é outro fator que está sendo considerado para definir o começo dos treinos. “Estamos discutindo como vamos operacionalizar para a Copa e fazer a adaptação do calendário escolar”, completa o diretor.

A importação do modelo urbano britânico: as cidades-jardins

A Companhia City trouxe para o Brasil o conceito de morar dos britânicos e deixou sua marca na paisagem de grandes cidades do país

Marcus Lopes
Na segunda metade do século 19, a Europa enfrentava o outro lado da moeda da Revolução Industrial. Apesar do progresso econômico, as cidadessofriam com o inchaço populacional, poluição e precárias condições sanitárias. Em contraponto à insalubridade das metrópoles, em 1898 surgiu na Inglaterra um novo modelo urbano: as cidades-jardins. Criadas pelo urbanista Ebenezer Howard, elas buscavam integrar o campo e a cidade, com população reduzida, muitas praças, desenho urbano harmônico e casas com amplos jardins. A primeira delas, Letchworth, começou a ser construída em 1902, nos arredores de Londres.
Dez anos depois, o conceito chegou ao Brasil, por meio da City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. Inspirada em Howard, a Companhia City, como ficou conhecida, foi a responsável pelos primeiros bairros planejados de São Paulo, como o Jardim América, o Alto da Lapa e o Pacaembu, que até hoje são sinônimos de qualidade de vida na metrópole. Logo, o conceito de planejamento urbano se espalhou por outros lugares, como Rio de Janeiro e Recife.
A City abriu seu escritório em São Paulo com uma meta ambiciosa: urbanizar uma área de 12,38 milhões de metros quadrados. Em 1912, isso correspondia a 37% do perímetro urbano da capital paulista. Não seriam meros loteamentos com o óbvio traçado em xadrez das ruas. O desenho tinha ruas sinuosas, seguindo a topografia do terreno, e praças internas. A ocupação dos lotes usava padrões de volumetria (a área construída não poderia ocupar mais da metade da área total do terreno) e de arquitetura, com muros baixos e veto a prédios altos. Tudo para o sossego do morador.

Alguns dos anúncios publicitários da Companhia na época
Laços com a Light

A fórmula deu tão certo que, hoje, esses bairros são "pulmões verdes" da metrópole, graças à abundância de árvores e ao baixo adensamento. O Jardim América e o Pacaembu foram tombados pelos órgãos de patrimônio histórico para impedir a especulação imobiliária. "Os padrões da City influenciaram as primeiras leis de zoneamento na cidade de São Paulo", diz o presidente da empresa, José Bicudo. A história dos bairros-jardins está diretamente ligada ao crescimento e à riqueza da cidade. Em 1890, a população paulistana era de 65 mil habitantes. Em 1900, já beirava 240 mil. Começava a surgir uma classe média emergente, formada por comerciantes, empresários e profissionais liberais, que precisavam de um lugar para morar. Um grupo de empreendedores imobiliários, liderados por Horácio Sabino e Cincinato Braga, se associou à City. A dupla já era conhecida por lotear e vender terrenos na área entre a Avenida Paulista e a Rua Estados Unidos.

A diretoria da empresa era composta de banqueiros, funcionários da Prefeitura e diretores da Light and Power, a concessionária canadense que monopolizava as linhas de bonde e os serviços de eletricidade. Uma articulação estratégica. "A Light era a peça decisiva no modo de expansão da cidade. Localizando as paradas finais de suas linhas em pontos extremos e de população rarefeita, gerou fluxos irradiados de valorização imobiliária", afirma Nicolau Sevcenko em Orfeu Extático na Metrópole. "Graças aos seus laços com a Light e com figuras-chave da política local, a City pôde usufruir do acesso, em condições privilegiadas, a serviços básicos de infraestrutura e valorização estética dos seus loteamentos", diz Sevcenko.

Elite emergente


"O fato é que Barry Parker realizou um trabalho excepcional" diz Sevcenko, referindo-se ao arquiteto e urbanista inglês que desenhou e coordenou a implantação dos empreendimentos da City. "Seu traçado para o Jardim América apresenta uma movimentação versátil e envolvente no plano de conjunto, graciosa na disposição das praças e amenidades, compondo um desenho intrincado e surpreendente nos arrua-mentos, que fugia da rotina quadriculada predominante até então na cidade, instaurando um novo padrão de equilíbrio entre funcionalidade, bem-estar, espacialidade e fluência." Projetado por Parker, o Jardim América foi o primeiro grande empreendimento da City, em 1915.

"Era um projeto direcionado à elite emergente da época. Os ricos e os barões de café continuavam morando em Higienópolis ou na Avenida Paulista", diz a arquiteta e urbanista Nadia Somekh, da Universidade Mackenzie. "Foi o primeiro projeto completo de bairro, com começo, meio e fim, além da alta qualidade de desenho urbano." Diante do sucesso de vendas, nos anos seguintes seriam criados outros nos mesmos padrões urbanísticos. "A partir do loteamento pioneiro e de seu sucesso, estabeleceu-se um padrão para ocupação de bairros exclusivamente residenciais, que se firmou e se reproduziu na cidade de São Paulo", diz a arquiteta Silvia Ferreira Santos Wolff, autora do livro Jardim América.

De São Paulo, os bairros-jardins se espalharam pelo Brasil. No Recife, o Derby foi inspirado nas garden-cities inglesas. "O Derby possui ressonâncias do urbanismo ajardinado", diz Silvia Ferreira. "As ruas de Boa Viagem foram bem projetadas, mas o Derby foi o primeiro bairro do Recife planejado como um todo", diz o historiador Leonardo Dantas Silva, do Instituto Ricardo Brennand, na capital pernambucana. "Os lotes não são tão grandes, as ruas são bem desenhadas e todas convergem para um parque central, a praça do Derby."

No Rio de Janeiro, os bairros-jardins inspiraram loteamentos como o Jardim Laranjeiras, na Zona Sul. O bairro surgiu na década de 30, quando a lei de zoneamento proibiu a instalação de fábricas na região. A Cidade-Jardim Laranjeiras brotou no terreno da antiga Companhia Têxtil Aliança Industrial. O Bairro Peixoto, outra ação do gênero, até hoje é considerado um "oásis de Copacabana".

"No caso do Rio, houve uma inversão de polaridade. Uma antiga região industrial virou bairro residencial planejado de alta renda", diz o arquiteto Nestor Goulart Reis, professor da USP e autor de livros sobre história do urbanismo no Brasil. Segundo Reis, o modelo dos bairros-jardins é demonstração de que nem tudo é caos e desorganização quando se fala em crescimento urbano brasileiro: "São Paulo, durante muito tempo, competiu com o Rio em termos de qualidade de vida, pois havia planejamento".

Erundina: 'Iludi a população e a mim mesma sobre a reforma política no Congresso'


Presidenta da Frente Parlamentar pela Reforma Política, deputada critica trabalho do grupo técnico que trata do tema, cobra compromisso do presidente da Câmara e pede participação popular

Hylda Cavalcanti

Reforma política demanda pressão e participação popular para sair do papel. Congressistas resistem a mudar regras do jogo
Desde 2002, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) preside a Frente Parlamentar pela Reforma Política, que tem a intenção de reunir propostas sobre o tema e trabalhar pela tramitação de mudanças na legislação político-partidária no país. Parlamentar respeitada pelos pares e com largo currículo na prestação de serviços à população, Erundina protagonizou na semana passada um desabafo em plena reunião do grupo técnico que aborda a reforma na Câmara, durante a discussão do financiamento de campanhas.
Em suas queixas, diante de colegas que alternaram ora satisfação, ora irritação com as suas palavras, ela questionou a produtividade e o efeito prático dos trabalhos que estavam sendo realizados, cobrou maior comprometimento por parte do presidente da Casa, Henrique Alves (PMDB-RN) com a matéria e deixou claro que o Congresso precisa, de agora em diante, apoiar o que querem as entidades da sociedade civil.
Nesta entrevista à RBA a deputada expõe os motivos que a levaram a fazer a crítica contundente e seu desestímulo e descrença em relação à real preocupação que a maioria dos parlamentares têm com a reforma política. O que, destaca, considera ser resultado de um déficit de democracia existente no Brasil.
“Estes anos todos, iludi a mim mesma e iludi a sociedade buscando sugestões e pedindo a participação de todos na discussão de propostas que tramitaram na Casa. Como nada aconteceu, só nos resta aderir ao movimento popular, partir em busca das assinaturas e trabalhar, aqui dentro, para que a mobilização por eleições limpas seja acolhida”, destacou
Leia a entrevista a seguir:
O movimento pelas eleições limpas destaca que a sociedade precisa se organizar pelas assinaturas populares para a proposta de reforma política porque as iniciativas que estão sendo observadas neste sentido, no Congresso Nacional, não funcionam. A senhora, esta semana, agiu como uma espécie de porta-voz do movimento. Como deputada e alguém inserida em todos os grupos que tratam da discussão, na Câmara, avalia a situação?
Da mesma forma que eles. Acho que esse sentimento reflete a desconsideração que o Congresso, principalmente esta Casa – a Câmara dos Deputados – demonstra com a sociedade civil, com os cidadãos brasileiros.
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No grupo de trabalho pela reforma política, onde a discussão desagrada
São 91 entidades defendendo um projeto pela reforma política, não é pouca coisa. Mas infelizmente os parlamentares não valorizam a democracia direta, a democracia participativa. Temos um dispositivo constitucional que até hoje não foi regulamentado completamente, o artigo 14, que prevê os mecanismos de democracia direta. Só que esses mecanismos não são elencados de maneira prática, recorrente, como acontece em outros países.
Por que a senhora acredita que isso aconteça, já que não se trata de um problema de hoje e sim de décadas?
No fundo é um poder autoritário, centralizador e que não corresponde à nossa posição e ao que diz a Constituição em seu parágrafo 1º, que coloca que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido indiretamente.
Existe um déficit de democracia no país e a forma como o Congresso se coloca diretamente diante de uma demanda real e concreta de toda a sociedade é prova disso. Tanto é verdade que, quando a sociedade consegue superar os obstáculos e se organizar chegando já a 300 mil assinaturas para formalizar uma proposta eles não querem essa proposta e não dão a mínima.
Por quê? Para a maioria dos parlamentares não interessa a (Lei da) Ficha Limpa, não interessa a eleição limpa, não interessa o financiamento público controlado, transparente e com teto. Isso é uma declaração muito evidente do distanciamento que existe entre a instituição Congresso Nacional e, neste momento, a Câmara dos Deputados em relação à sociedade.
Isso atenta contra a democracia, porque uma democracia equilibrada, harmoniosa, embora com disputas, tem um mínimo de coincidência e sintonia com a sociedade civil. Caso contrário, o Parlamento vai representar a quem?
Faltam poucos dias para o grupo técnico de trabalho sobre a reforma política entregar a conclusão dos trabalhos, mas a senhora disse que se sente desestimulada. Esse desestímulo atinge diretamente o grupo ?
Não somente este grupo, mas também a desconsideração geral que existe no Congresso para com o tema. Inclusive pelo fato do presidente da Casa (deputado Henrique Eduardo Alves) que recebeu os movimentos sociais dessa coalizão para conversar sobre a questão, ter se comprometido a encaminhar a proposta, ter dito que ele pessoalmente iria para uma audiência pública dentro do grupo, que a proposta de iniciativa popular de coalizão pelas eleições limpas seria recepcionada e nada disso aconteceu.
Sabemos também que existem outros "n" projetos na Casa tratando da reforma política e sequer isso teve um tratamento destacado frente a um compromisso público que o presidente da Câmara assumiu, numa audiência pública, com cobertura da imprensa e tudo. É muito descaso.
Mas a senhora acha que poderá ser tirado algo como resultado deste grupo técnico, por menor que seja?
Nem sei dizer. É um faz-de-conta muito grande manter um grupo de trabalho que sequer corresponde à representação proporcional das bancadas. Trata-se de um grupo de trabalho, não uma comissão especial, dentro das normas regimentais que devem ser seguidas quando se quer produzir alguma proposta que tenha a representatividade dos órgãos políticos da Casa.
Portanto, isso nos leva a não acreditar no resultado desse esforço. A discussão, a meu ver, é insuficiente e leva a crer que corresponde a mais uma tentativa frustrada de se protelar um debate que é tão importante para a vida do país e leva a maior desprestígio e descrédito na representatividade política brasileira.
As pesquisas estão aí e a cada vez que são realizadas comprovam o desejo popular por uma reforma política. Não podemos ficar parados, assistindo e achando que está tudo bem. Sem a reforma política não sanaremos algumas questões fundamentais e estruturais para o Brasil.
Muita gente declarou, nesta última semana, que não acredita mais numa mudança nas leis político-partidárias que não sejam por meio da pressão popular. A senhora acha isso ou ainda há uma chance de contar com os parlamentares favoráveis à ideia?
Tenho a mesma posição dos que declararam isso. Daqui da Câmara a reforma política não vai sair nunca. Já participei de três comissões especiais formais, regimentais, instaladas para tratar do assunto que trabalharam anos, redigiram propostas que até foram aprovadas (com exceção da última), mas não se chegou a um resultado final.
Fizemos viagens para discutir o tema no país inteiro em audiências com a sociedade, geramos a expectativa perante a população e até nos iludimos, também. Considero que eu mesma me iludi e iludi a sociedade, porque muitos compareceram às reuniões, contribuíram com ideias e participaram dos debates de forma entusiasmada e simplesmente não se dá satisfação, não se aprova nada da comissão especial e nada segue para plenário.
É lamentável! Agora tudo indica que acontecerá da mesma forma. É mais uma quebra de confiança entre o poder que representa a sociedade e a própria sociedade. Por isso existe esse fosso enorme, esse abismo enorme. Isso não é coisa simples quando se trata de um regime democrático, de um estado democrático de direito.
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Em 2011, em serviço pela reforma, na Câmara
Que caminhos a senhora sugere para a solução do problema?
O do fortalecimento dessa mobilização popular. Desde que estou na Câmara, em 2002, presido a Frente Parlamentar pela Reforma Política. São várias entidades reunidas, já foi redigida a proposta e há até um Projeto de Lei elaborado por eles. Temos agora que marcar, ao lado desse movimento, presença nesta Casa para dizer de forma firme que queremos que as coisas aconteçam e aconteçam da melhor forma.
No grupo técnico da reforma política que está encerrando os trabalhos não se falou até agora em organização partidária, nem na lei que trata da criação dos partidos políticos que são outros dois pontos importantes para a reforma. O financiamento de campanha foi tocado de forma muito genérica.
Fiquei aqui, participando dos trabalhos, como representante da bancada feminina, mas nem mesmo a questão de gênero chegou a ser discutida e considerada. Também não se discutiu a questão da votação em lista, nada disso.
Sobre a votação em lista e o financiamento público, qual sua posição em relação a estes dois itens?
Acho que o financiamento público exclusivo de campanhas, embora fundamental, só será eficiente se for aprovada também a votação em lista. Mas a questão não é a dificuldade para votar o financiamento público exclusivo em si e sim de como é o sistema de votações.
Até hoje, quando se trata de reforma política, os parlamentares só cuidam de colocar tecidos novos como se fossem remendos, em cima de uma velha lei e mais nada. Esses tecidos, em vez de melhorar, desagregam mais ainda o tecido velho sem resolver o problema.
Há uma preocupação constante com o poder do empresariado e a influência da iniciativa privada sobre o mandato dos parlamentares, daí a dificuldade para acabar ou inibir o financiamento privado de campanhas. O que a senhora avalia sobre isso?
Não tenho a menor dúvida de que o empresariado está com os olhos abertos, tanto na Câmara como no Senado. Se você verificar as comissões permanentes fica fácil perceber. É muito claro, basta entrar, por exemplo, numa das reuniões da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara para ver como os deputados se comportam. São só deputados que representam interesses da comunicação e da mídia na questão das concessões para rádio e TV.
Isso se reproduz da mesma forma nas outras comissões. No processo de indicação das mesas das comissões, por exemplo, normalmente os deputados que querem e trabalham para ser integrantes de cada uma delas, são os que estão atrelados a algum interesse das empresas que os bancaram, por causa do financiamento privado que receberam para suas campanhas.

Educação em guerra


O estado do Rio, assim como São Paulo, desenterrou leis de segurança nacional da ditadura para tratar estudantes e professores como prototerroristas

Vladimir Safatle

Vladimir Safatle

“Mais escolas, menos estádios.” Esta foi uma das frases mais ouvidas nas manifestações de junho. Ela indicava a consciência clara de que as prioridades de desenvolvimento estavam completamente invertidas. Mais do que isso. Que esta frase tenha sido enunciada em um contexto de revolta, eis algo a demonstrar como a população esperava mais ações e menos retórica em relação à educação. Pois esse é um tópico pitoresco da política brasileira. Não há partido ou programa que coloque a educação como a “mais prioritária das prioridades”. No entanto, vivemos atualmente um vácuo completo de propostas públicas educacionais.
Alguém poderia acreditar ser isso o resultado de conflitos intermináveis a respeito do que devemos fazer. Ledo engano. Afora alguns liberais completamente desconectados da realidade concreta das escolas, o prognóstico sobre o que deve ser feito é consensual em relação aos profissionais da educação. Ele passa pela valorização da carreira de professor a fim de atrair nossos melhores alunos para o magistério. Ela contempla também a implementação de escolas integrais e de inspetorias federais para garantir a qualidade do ensino. Não se faz nada nesse sentido porque a realização desses pontos é cara. Mas a ignorância é mais cara ainda.
Bem, o que vemos então depois de junho? Milhares de professores no Rio de Janeiro a se voltar contra um plano de carreira que, se implementado, destruiria de vez as profissões do magistério. Só mesmo alguém que nunca pisou em uma sala de aula pode apresentar à sociedade um plano como esse. Ele cria uma situação de não garantia para professores se fixarem em suas matérias específicas, o que tem um impacto decisivo na qualidade, tão debilitada, do ensino. Seu privilégio aos profissionais com dedicação de 40 horas semanais não garante que, dentro desse período, o número real de horas-aula necessárias para a pesquisa, para a preparação de aula, correção de trabalhos e outras atividades fundamentais à docência será respeitado. Ao contrário, vemos atualmente vários Estados à procura de meios para burlar o período computado fora da sala de aula, mas que faz parte do trabalho de todo e qualquer professor.
Em vez de discutir os problemas do plano em questão, o estado do Rio, assim como São Paulo, partiu para a criminalização brutal de manifestantes. Leis de segurança nacional da época da ditadura foram desenterradas para tratar estudantes e professores como prototerroristas. Setores da opinião pública conservadora recuperaram o velho mantra do corporativismo dos professores, mostrando que, no fundo, temem ver o Estado gastar o necessário com educação, em lugar de subsidiar empreiteiras e empresários com negócios da China. Ou seja, sempre vemos a mesma estratégia: quando as demandas da educação pública são colocadas na mesa, tudo o que ouvimos é a desqualificação das exigências dos professores. Talvez isso explique um pouco a razão pela qual nossa qualidade de ensino continue problemática.
Alguns desses “formadores” da opinião pública que se insurgem contra os professores gostam de falar sobre o salto educacional da Coreia ou da qualidade das escolas da Finlândia. Perguntem então quantas horas em sala de aula passam os professores finlandeses e qual o salário de um professor coreano. É algo em torno de 4 mil dólares.
É sintomático que o oferecido pelos governos para uma das pautas mais citadas das manifestações de junho seja algo para conseguir apenas acirrar os ânimos dos profissionais da educação. Isso demonstra claramente como o poder público continua a governar de costas para aqueles que têm o verdadeiro diagnóstico das situações e das dificuldades em nossas escolas. Na última greve de professores universitários, a mesma estratégia foi colocada em circulação. Tivemos de ouvir que professores seriam a “classe abastada” do serviço público. Esta é a única frase que o poder público tem a dizer quando confrontado com a inanição de suas políticas de educação.
Vladimir Safatle é professor de Filosofia da USP e colunista da Folha de S. Paulo.

O conflito capital-trabalho nas crises atuais



É surpreendente que na extensíssima literatura que se escreveu sobre as causas das crises atuais muito pouco se centrou no conflito capital-trabalho (aquilo a que se costumava chamar luta de classes) e a sua génese no desenvolvimento da crise

Vicenç Navarro

Greve Geral
Uma possível causa desta situação é a enorme atenção que tem tido a crise financeira como suposta causa da recessão atual. Mas tal atenção desviou os analistas do contexto, económico e político, que não só determinou, como configurou a crise financeira assim como a crise económica, social e política. Na realidade, não se pode analisar cada uma delas e a maneira como estão relacionadas sem nos referirmos a tal conflito. Como bem disse Marx, a história da humanidade é a história da luta de classes. E as crises atuais (desde a financeira à económica, passando pela social e política) são um claro exemplo disso.
Vejamos os dados. Durante o período pós II Guerra Mundial, esse conflito manteve-se através de um pacto entre o capital e o mundo do trabalho que determinou que os salários, incluindo o salário social (que se refletiu no aumento da proteção social mediante o desenvolvimento das transferências e serviços públicos do Estado Social), evoluíssem de acordo, predominantemente, com o aumento da produtividade. Como consequência disso, os rendimentos do trabalho aumentaram consideravelmente, atingindo o seu máximo (nos dois lados do Atlântico Norte) na década de setenta (a participação dos salários, em termos de remuneração por empregado, nos EUA foi de 70% do PIB; nos países que se tornaram mais tarde na UE-15, esta percentagem era de 72,9%; na Alemanha 70,4%; em França 74,3%; em Itália 72,2%; no Reino Unido 74,3% e em Espanha 72,4%)1.
Este pacto social foi rompido no final da década de setenta / princípios dos anos oitenta como consequência da rebelião do capital perante os avanços do mundo do trabalho. A resposta do capital foi o desenvolvimento de uma cultura económica nova baseada no liberalismo, mas com uma maior agressividade, resultado, naquele momento, da sua postura defensiva face aos avanços do mundo do trabalho. A sua versão nas políticas públicas foi o que se chamou neoliberalismo, que tinha como objetivo recuperar o terreno perdido mediante o mundo do trabalho2. A partir de então, o crescimento da produtividade não se traduziria tanto no incremento dos rendimentos do trabalho, mas sim no aumento dos rendimentos do capital. E esta resposta, mediante o desenvolvimento das políticas neoliberais (que constituíam um ataque frontal à população trabalhadora), teve muito êxito. Os rendimentos do trabalho desceram na grande maioria dos países citados anteriormente. Nos EUA passaram a representar em 2012 63,6% do PIB; nos países da UE-15 66,5%; na Alemanha 65,2%; em França 68,2%; em Itália 64,4%; no Reino Unido 72,7%; e em Espanha 58,4%. A descida dos rendimentos do trabalho durante o período 1981-2012 foi de 5,5% nos EUA, 6,9% na UE-15, 5,4% na Alemanha, 8,5% em França, 7,1% em Itália, 1,9% no Reino Unido e 14,6% em Espanha, sendo neste último país onde a descida foi maior.3
O contexto político
Estas políticas foram iniciadas pelo Presidente Reagan em 1980 e pela Primeira Ministra Margaret Thatcher em 1979, no Reino Unido. Estas políticas foram também aceites como inevitáveis e necessárias pelo governo de François Mitterrand em França em 1981, ao sustentar que o seu programa de clara orientação keynesiana (com o qual tinha sido eleito) não podia ser aplicado devido à europeização e globalização da economia, postura sustentada mais tarde pela corrente dominante dentro da social-democracia europeia conhecida como Terceira Via. A aplicação das políticas neoliberais, definidas como social-liberais dentro dessa tradição política, caracterizaram as políticas dos governos social-democratas na UE. Todas elas tinham como objetivo facilitar a integração das economias dos países da UE no mundo globalizado, aumentando a sua competitividade na base do estímulo às exportações à custa da redução da procura interna, reduzindo os salários. Daí deriva que uma consequência destas políticas tenha sido a não repercussão do aumento da produtividade em aumentos salariais, mas sim no aumento dos rendimentos do capital.
Para atingir este objetivo, o desemprego foi um componente chave para disciplinar o mundo do trabalho. Em todos estes países, o desemprego aumentou enormemente. Nos EUA, passou de 4,8% em 1970 para 9,6% em 2010. Nos países da UE-15 passou de 2,2% para 9,6%; na Alemanha de 0,6% para 7,1%; em França de 1,8% para 9,8%; em Itália de 4,9% para 8,4%; no Reino Unido de 1,7% para 7,8% e em Espanha de 2,4% para 20,1%, sendo este crescimento maior neste último país. 4
Esta polarização dos rendimentos, com grande crescimento dos rendimentos de capital à custa dos rendimentos do trabalho, foi a origem das crises económicas e financeiras. A diminuição dos rendimentos do trabalho criou um grande problema de escassez da procura privada, que passou despercebida em consequência de vários factos. Um deles foi a reunificação alemã em 1990 e a enorme despesa pública que a acompanhou (a fim de incorporar o Leste da Alemanha ao Oeste e facilitar a expansão da Alemanha Ocidental na Oriental), que se financiou principalmente na base do aumento do défice público da Alemanha, passando de estar em superavit em 1989 (0,1% do PIB) para ter défice desde esse ano, atingindo 3,4% em 1996, estando em défice todos os anos desde 1989. A Alemanha seguiu, pois, uma política de estímulo, através da despesa pública, que (como resultado do seu tamanho e centralidade) beneficiou toda a economia europeia.5
O segundo facto foi o enorme endividamento da população, endividamento que atrasou o impacto que a descida dos rendimentos do trabalho teve na redução da procura. Este endividamento foi facilitado na Europa com o estabelecimento do euro, que teve como consequência a tendência para confluir os interesses dos países da zona euro com os da Alemanha. A substituição do marco alemão e de todas as outras moedas da zona euro pela mesma moeda, o euro, teve como consequência a germanização dos interesses monetários. O caso da Espanha é um exemplo claro. O preço do crédito nunca tinha sido tão baixo, facilitando o enorme endividamento das famílias (e empresas) espanholas, passando assim despercebida a enorme perda de capacidade aquisitiva da população trabalhadora.
Por outro lado, a grande acumulação de capital (resultado do facto de a maior parte do aumento de riqueza dos países, causado pelo aumento da produtividade, ter ido predominantemente para o aumento dos rendimentos do capital em vez dos rendimentos do trabalho) explica o aumento das atividades especulativas, incluindo o aparecimento das bolhas, das quais as imobiliárias foram as mais comuns, ainda que não tenham sido as únicas. A rentabilidade era muito mais elevada no setor especulativo do que no produtivo, o qual estava algo estagnado, em resultado da diminuição da procura. O crescimento do capital financeiro foi a caraterística deste período nos dois lados do Atlântico Norte, crescimento resultante do endividamento e das atividades especulativas. Este crescimento baseava-se, em parte, na necessidade de endividamento, devido à contínua descida do crescimento anual da compensação salarial em todos estes países, uma situação especialmente acentuada nos países da UE-15. Assim, tal crescimento anual médio nos países da zona euro desceu de 3,5% no período 1991-2000 para 2,4% no período 2001-2010; na Alemanha de 3,2% para 1,1% e em Espanha de 4,9% para 3,6%.6
A explosão das bolhas
Os establishments financeiros e políticos, tanto da União Europeia como da maioria dos países da zona euro, acharam que a crise financeira tinha sido criada e originada pelo colapso do banco norte-americano Lehman Brothers e limitar-se-ia ao sector bancário dos EUA. Thomas Palley cita aquele que era Ministro das Finanças da Alemanha, o socialista Peer Steinbrück (hoje candidato à presidência do partido social-democrata) que profetizou que esse acontecimento significaria o fim do status dos EUA como grande poder financeiro, em resultado das debilidades do sistema financeiro norte-americano. O colapso do dólar, segundo ele, beneficiaria o euro.
A grande ironia destas profecias é que quem, no final, salvou a banca alemã foi o Federal Reserve Board (FRB), o Banco Central dos EUA. O modelo alemão baseado na exportação tornou a banca alemã altamente vulnerável à contaminação. Os bancos alemães estavam massivamente intoxicados com os produtos especulativos da banca norte-americana. Os grandes bancos alemães (como o Sachsen LB, o IKB Deutsche Industriebank, o Deutsche Bank, o Commerzbank, o Dresdner Bank ou o Hypo Real Está) bem como as Caixas alemãs (como BayernLB, WestLB e DZ Bank) entraram no período 2007-2009 numa enorme crise de solvência, tendo que ser todos eles resgatados, muitos dos quais com a ajuda do FRB dos EUA.
A orientação económica, baseada na exportação (algo típico do modelo liberal), tinha contagiado profundamente o capital financeiro alemão, como resultado dos seus investimentos financeiros tanto na banca norte-americana (cheia de produtos tóxicos) como na dos países periféricos chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) e mais tarde GIPSI (com a incorporação da Itália), cheias de atividades especulativas de tipo imobiliário. Na realidade, a crise financeira alemã e europeia era inclusive pior que a norte-americana e, quando a enorme bolha especulativa explodiu (paralisando a banca alemã), apareceu com toda a crueza o enorme problema de endividamento causado pela redução da procura, à qual fiz referência nos pontos anteriores.
Por que é que a crise financeira é pior na Europa?
Uma das causas disso é a arquitetura do sistema de governo do euro, resultado do domínio do capital financeiro na sua governança. Tal sistema de governo é produto de um desenho neoliberal que se baseia na diferença de comportamentos entre o Banco Central Europeu (BCE) e o FRB e no diferente tipo de modelo exportador dos EUA e da zona euro (multipolar nos EUA e centrado na própria zona euro no caso europeu).
O BCE não é um banco central. O FRB é. O BCE não empresta dinheiro aos Estados e não os protege perante a especulação dos mercados financeiros. Daí que os Estados periféricos estejam tão desprotegidos, pagando juros claramente abusivos que têm dado origem à enorme bolha da dívida pública destes países. Isto não ocorre nos EUA. O FRB protege o Estado dos EUA. A Califórnia tem uma dívida pública tão preocupante como a grega, mas isto não é uma situação asfixiante para a sua economia. Mas, é-o na Grécia.
À luz destes dados é absurdo que se acuse os países periféricos de terem causado a crise devido à sua falta de disciplina fiscal. A Espanha e a Irlanda estavam com superavit nas suas contas do Estado durante todo o período 2005-2007. Eram os discípulos prediletos da escola neoliberal, dirigida pela Comissão Europeia, sendo o Ministro Solbes, que tinha sido Comissário dos Assuntos Económicos da UE, o arquiteto de tal ortodoxia. Na realidade, a Alemanha, durante o período 2002-2007, teve défices públicos maiores do que a, supostamente indisciplinada, Espanha.
Não foi a sua inexistente falta de disciplina, mas sim a falta de um Banco Central que apoiasse a sua dívida pública, que causou o crescimento dos juros da dívida pública, na posse dos bancos alemães entre outros, que beneficiaram com a subida do prémio de risco. O fim primordial das medidas de cortes da despesa pública, incluindo a despesa pública social, é pagar os juros à banca alemã, entre outros. O enorme sacrifício dos países GIPSI não tem nada a ver com a explicação que é dada nos média e noutros fóruns de difusão do pensamento neoliberal, que atribuem os cortes à necessidade de corrigir os excessos, mas sim com o pagamento a uma banca que controla o BCE que, em vez de proteger os Estados, os debilita para que tenham que pagar maiores montantes à banca. A evidência desta situação é esmagadora. O famoso resgate à banca espanhola é, na realidade, o resgate à banca europeia, incluindo a alemã que tem mais de 200.000 milhões de euros investidos em ativos financeiros espanhóis.
Uma nova explicação da crise
Uma variação desta explicação é o argumento de que o problema da zona euro é o grau do diferencial de competitividade, com alta competitividade no centro - Alemanha e Holanda - e baixa competitividade no sul - GIPSI. Este diferencial explicaria que os primeiros tenham balanças de comércio externo positivas (exportam mais que importam), enquanto os segundos as têm negativas (isto é, importam mais do que exportam). Daí que a solução passe por um maior crescimento da competitividade dos segundos. E a melhor maneira é baixar os salários (o que se chama desvalorização doméstica).
Mas tal explicação tem sérios problemas. Em primeiro lugar, nem a Irlanda nem a Itália tinham balanças comerciais negativas quando a crise se iniciou. E mais, o crescimento da componente negativa da balança de pagamentos nos países GIPSI deveu-se predominantemente ao aumento das importações, resultado do endividamento, não da descida da produtividade ou da competitividade. E agora a melhoria da sua balança comercial deve-se à sua escassa procura. Em ambos os casos, pouco tem a ver com mudanças na competitividade. Na realidade, a produtividade laboral padronizada por atividade económica não é substancialmente diferente em Espanha e na Alemanha. O problema, pois, não pode explicar-se por um diferencial de competitividade, mas sim por um diferencial de procura, acentuado a nível europeu por um problema estrutural, resultado da descida dos rendimentos do trabalho. O motor da economia da zona euro baseia-se no modelo exportador alemão, cujo sucesso assenta na moderação salarial alemã (com salários muito abaixo do nível correspondente ao nível da produtividade), na impossibilidade dos países periféricos poderem reduzir o preço da sua moeda (beneficiando a Alemanha com isso), na enorme concentração de euros, na mobilidade de capitais da periferia para o centro e no domínio das estruturas financeiras, através da enorme influência sobre o BCE que não atua como um Banco Central. Ver a balança de pagamentos como resultado de uma diferença de produtividade é profundamente erróneo.
Na realidade, a Alemanha deveria atuar como motor estimulante da economia, não mediante o aumento das suas exportações (baseadas em baixos salários), mas sim num crescimento da sua procura interna, incrementando os seus salários e a sua escassa proteção social. O trabalhador alemão tem mais em comum com os trabalhadores dos países GIPSI do que com o seuestablishment financeiro e exportador. E nos países periféricos deveriam seguir-se também políticas de estímulo, revertendo as políticas de austeridade que estão a contribuir para a recessão, para além do mal-estar que provocam nas classes populares. A essas políticas certamente se oporão os agentes do capital, pois verão reduzidos os seus rendimentos. Marx, afinal, tinha razão.
1 ECFIN. European Comission Statistical Annex. Table 32. Autum 2011
2 Breve Historia del Neoliberalismo, David Harvey, 2007
3 ECFIN, European Commission. Statistical Annex, Table 32, Autumn 2012
4 ECFIN. European Comission. Statistical Annex. Autum 2011
5 Para uma expansão deste e de outros pontos citados nesta secção aconselha-se a leitura do excelente artigo “Europe's crise without end. The consequences of neoliberalism run amok” de Thomas I. Palley - uma das mentes económicas mais claras dos EEUU e mais desconhecidas na Europa- em IMK Working Paper. March 2013. no. 111
6 Thomas I. Palley op. cit.