Qual das guerras ditas necessárias, das muitas em curso hoje pelo mundo, apresentadas como urgentes, indispensáveis, resolveram, até hoje, os problemas que se propunham a resolver?
France Info
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Jornalista: Obrigado por estar conosco, hoje, ao vivo. Desde 6ª-feira passada, há quase unanimidade nacional sobre a intervenção francesa no Mali. Por que o senhor diz que em sua opinião, pessoalmente, a intervenção é discutível?
Jean-Luc Melenchon (JLM): Temos de começar com um pensamento em memória dos nossos que já morreram nessa operação. São nossos. Serviram e obedeceram até o sacrifício supremo. Falamos de uma guerra que se impôs. Já começou. E a França está em guerra, o que altera a natureza de qualquer comentário.
Mas nada nos libera do dever de pensar. O que se deve dizer? Qual das guerras ditas necessárias, das muitas em curso hoje pelo mundo, apresentadas como urgentes, indispensáveis, e que, como nos disseram, resolveriam o problema, resolveram, até hoje, os problemas que se propunham a resolver? O Iraque, que foi destruído, resolveu alguma coisa? O Afeganistão, de onde estamos saindo em frangalhos, resolveu alguma coisa? A Líbia, que está na origem da propagação das armas que permitiram que esse grupo atacasse o governo do Mali, foi solução de algum problema? Nenhuma dessas intervenções resolveram coisa alguma.
Jornalista: O senhor diz, como Dominique de Villepin, que não soubemos extrair nenhuma lição daquelas guerras?
JLM: Nenhuma lição. Por isso digo que a intervenção no Mali é discutível. Também é discutível a nossa intervenção numa situação que já é conhecida há vários meses, em relação à qual tomamos a primeira medida no último instante, quero dizer, no momento em que os rebeldes já ameaçam tomar a capital. Por que a capital está sendo ameaçada? E penso aqui nos nossos muitos amigos malienses, da imensa comunidade do Mali que vive na França e que estão muito inquietos com a situação atual. Por que a capital está sob ameaça? Não será porque já houve um golpe de Estado, porque o atual presidente já estava em situação ilegítima, unicamente porque o ex-presidente foi forçado a renunciar, porque o Primeiro-Ministro foi deposto por um capitão armado? Quero dizer, não será porque o Estado maliense já estava, em vários sentidos, destruído, sem que a França tenha, até agora, movido um dedo?
E, de repente, a intervenção militar se torna urgente?
Disse e repito que, sim, espero que essa intervenção, alcance, pelo menos, o objetivo para o qual foi feita, com a urgência com que foi feita, uma vez que já aconteceu e já começou. Não implica dizer que apoio a intervenção.
Jornalista: Com os objetivos que tem, de…
JLM: Sei o que você sabe: a intervenção visa a conter um ataque armado que levava a crer que a capital do Mali estaria em vias de cair em mãos de rebeldes. Mas, também quanto a isso, recomendo sangue frio aos que nos escutam, que não se ponham a simplificar tudo. Os “islamistas”, entre aspas, os quais, parece, estariam com a iniciativa do que aconteceu no Mali, começaram, eles mesmos, por derrotar as forças que ocuparam dois terços do território do país, que caíram em mãos dos tuaregues. Tudo isso, ali, está misturado. Lembro que, por trás do problema dos islamistas persiste o problema dos tuaregues que declararam a independência de uma parte do país. Consequentemente, nenhuma força de intervenção conseguirá resolver problema algum se se puser a bombardear uns, para resolver problema criado por outros.
Jornalista: Seria o caso, então, de intervir, mas não agora, ou, seja como for, não como a intervenção foi feita? É isso?
JLM: O que temos hoje é uma situação de fato consumado. A intervenção já está em curso. A única coisa que ainda se pode discutir é como que se pode evitar, para o futuro, que, como aconteceu, mais uma vez, ninguém tenha pensado em levar a discussão ao Parlamento. Não digo que se devesse discutir o momento de uma intervenção militar no Parlamento. Mas, pelo menos, deveria ter havido, no Parlamento, alguma discussão sobre a situação no Mali, para que se analisassem vários cenários.
Lembro que a França não está atuando com mandato da ONU. Não é verdade. O mandato da ONU ordenou que uma força africana interviesse. O que aconteceu? Os africanos não seriam capazes de cumprir um mandato da ONU?
Jornalista (lê algumas linhas da Carta da ONU).
JLM: Essa é a Carta da ONU. Não é o texto da Resolução da ONU. A resolução ordena expressamente que “uma força africana” intervenha no Mali. Então… O que se passou, entre a Resolução da ONU e a intervenção francesa? Não encontraram, em toda a África, exército à altura? A Argélia, ao lado do Mali, tem exército tecnicamente moderno. O que aconteceu?
Jornalista: Seria papel da Argélia, então…
JLM: Seria papel dos africanos. A resolução da ONU fala em “forças africanas”. Os africanos são adultos. Os países africanos não são países folclóricos. São nações, verdadeiras nações.
Temo que estejamos retomando o velho hábito de intervir aqui, ali, às vezes na Costa do Marfim, para estabelecer um governo cuja legitimidade é por muitas razões muito discutível.
Jornalista: O senhor está dizendo que o governo da Costa do Marfim, de France-Afrique, não seria legítimo?
JLM: Não tenho dúvidas. Digo-lhe, olhos nos olhos que a legitimidade do governo do Sr. Alassane Ouattara na Costa do Marfim é muito discutível. E a França interveio ali militarmente para cassar um presidente legítimo, francês, nosso compatriota, que está hoje na cadeia na Costa do Marfim, o Sr. Laurent Gbagbo, pelo único crime de ter Gbagbo no sobrenome. E nenhum governo francês manifestou por isso qualquer incômodo. Temo é que estejamos voltando a esses velhos hábitos.
E gostaria muito de que a França não voltasse a um tipo de comunicação [orig. volonté de communication, “vontade de comunicação”] , como se vê hoje no jornal Libération, que escreveu hoje que “uma guerra não é jamais má notícia para um chefe de Estado”. Espero que não se trate disso.
Jornalista: Posso dizer talvez que há aí uma fratura a mais entre o senhor e o presidente…
JLM: Não sei. Cada caso é estudado separadamente. Uma atitude não determina a atitude seguinte. Vejo, por exemplo, hoje cedo, que Noël Mamère [jornalista e deputado dos Verdes] é até muito mais severo que eu, nessa questão. Vários socialistas eleitos também têm questões a discutir e perguntam por que o Parlamento só foi consultado depois. Lembrem que, para uma operação “de polícia internacional” – e foi assim que o presidente Mitterrand apresentou à ONU, na terça-feira de manhã, uma guerra que começou ao meio-dia.
Jornalista: Um tema no qual o senhor está de acordo com Hollande, o casamento para todos. Não deveria também começar por uma consulta aos franceses, ao Parlamento?
JLM: Os parlamentares são os franceses. De minha parte, não tenho nenhuma intenção de menosprezar a mobilização em curso, da direita. Acho que a França tem sorte. Estamos engajados nesse debate barulhento, como se dizia. A democracia opera assim. Temos de aceitar toda a densidade dessa discussão. Mas [no debate em curso sobre o casamento civil entre homossexuais, no qual a direita mobilizara, na véspera, vasta multidão contra o casamento entre homessexuais] não se trata de “a rua”.
Jornalista: Mas o que o senhor tem a dizer sobre a manifestação nas ruas, ontem?
JLM: Em primeiro lugar, o governo não é um bando de jornalistas a publicar comentários. Eu, tampouco, faço “comentários” sobre os eventos. Eu sou um homem engajado. A direita também tem suas figuras engajadas, que se manifestaram ontem a favor da “união civil” e contra o “casamento”. Tudo é política e é preciso que todos se manifestem. E o objetivo da manifestação política é convencer o maior número possível de pessoas.
Nós pregamos o casamento igual para todos. E nós também faremos nossa manifestação de rua. A coisa será votada e é preciso mobilizar a maior quantidade possível de pessoas. Nossa tarefa é política e não se trata de ficar em casa, pensando que a tal manifestação foi menor do que anunciaram, e eles que se acertem lá entre eles, que a coisa não é comigo.
Jornalista: O senhor vai se manifestar sobre o casamento de homossexuais?
JLM: Dia 27 teremos nossa manifestação pública. Não será manifestação de apoio ao governo [Hollande também apoia o casamento de homossexuais]. Os socialistas não são donos dessa questão. Este que lhe fala foi quem apresentou a primeira lei sobre o assunto. E os que são contra hoje, já eram contra. Nossa posição é que não se pode coibir o amor, o amor para todos…
Jornalista: E que diferença há entre a união civil que a direita propõe e o que o senhor está dizendo?
JLM: As associações pedem o casamento e não se satisfazem com a união civil. Mas a questão geral, de fundo, é a questão de garantir todos os direitos iguais para todos. Não se trata de os homossexuais terem direito a núpcias. Trata-se de todos terem direitos civis iguais.
Eu não partilho dessa excitação nupcialista de algumas organizações, que parecem lutar exclusivamente pelo direito burguês ao vestido de noiva. Não. A tradição da esquerda, a longa tradição de esquerda nesse campo nunca foi essa. Léon Blum dizia que a união civil livre será o que decidirmos que ela seja. Todos os seres humanos ou são iguais, ou não são. Para homem ou mulher de esquerda, a luta pela igualdade de direitos civis e a luta pela igualdade de direitos sociais são uma única e mesma batalha. Por isso tudo há quem seja a favor e quem seja contra os direitos civis para todos e há os que são contra: a união civil de que fala a direita não garante direitos iguais para todos. A batalha é a mesma de 1789: ou todos os homens e todas as mulheres têm direitos iguais, ou não têm. A união civil que a direita propõe limita direitos para alguns.
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