– 25/07/2012
POSTED IN: ARTE E LITERATURA, CULTURA, DESTAQUES
É preciso aproveitar em sentido profundamente estético o texto literário, considerando que, para tanto, é preciso ir além da estética
Por Alexandre Pilati
Como abordar criticamente a obra literária? Buscando ouvir o que ela fala sobre si mesma, como dimensão estética intransitiva? Ou observando-a como reflexo do mundo, sendo um veículo de fatos existentes independente dela? Se apostarmos na primeira resposta, poderemos pensar que a literatura é infensa à vida, não passando de um arranjo de técnicas estruturadas como “finalidade sem fim” e aparatadas para a fruição fetichizada da língua empoderada apenas esteticamente. Se pensarmos, diversamente, que a literatura reflete a vida como ela é, sendo registro documental de um certo tempo e de um contexto histórico, estamos reduzindo a sua potência estética, assumindo-a como representação imediata da sociedade, como documento de suas classes e de seus tipos.
Adotar de forma unilateral uma das duas perspectivas acima seria, temerariamente, diminuir o alcance de esclarecimento da totalidade histórica proporcionado pela leitura das grandes obras literárias. E a redução do alcance de totalidade das obras literárias interessa muito à crítica academicista e à flanerie descompromissada e cínica do jornalismo cultural comandado pelos interesses das classes dominantes. Enfim, esvaziar a força política e humanizadora do texto literário interessa (1) à manutenção da literatura e da arte como artefatos instrumentalizados pela lógica da mercadoria radicalmente posta a termo pela indústria cultural e/ou (2) à manutenção, não menos fetichista, da literatura dentro da jaula edulcorada do refinamento academicista, onde o literário é apenas cânone ou instituição esnobe na face, embora esboroada por dentro.
Esse o seu grande vínculo com a luta de classes. Tais atitudes de reducionismo crítico da literatura interessam às forças sociais que desejam a manutenção do capitalismo como destino último da história e não àquelas classes que acreditam que a história não terminou (como prova a atual renitente crise do sistema!) e que o seu desfecho definitivo ainda não está dado como horizonte único. A leitura da história em movimento dentro do texto literário interessa àqueles que acreditam na superação da desumanização, da alienação, da degradação do humano em favor do capital.
Falamos daqueles que precisam se apropriar da literatura como forma de interpretação de sua condição no mundo, nas periferias, nos movimentos sociais, nas classes trabalhadoras. Para eles, deve permanecer a leitura da grande literatura, muito embora a eles tenha sido reservado um contato maior com manifestações de cultura popular, não canônicas ou não eruditas. Não sendo um problema a priori festejar as diversas formas de literatura e cultura popular, restringir o alcance de leitura das classes exploradas a esse tipo de forma artística pode, no final das contas, significar fazer o jogo das classes dominantes.
Preservar esse campo significa também lutar para expandir a disposição para ler a capacidade de realismo das grandes obras literárias. A permanência da literatura em tempos de alto capitalismo é, em grande medida, a permanência do humano e da utopia. E essa é a resposta política do realismo. Mas sob que coordenadas se pode achar tal leitura politizada da obra literária? Uma longa tradição de críticos e teóricos da literatura dedicou-se a discutir o modo como esteticamente a literatura se dispõe a interpretar o mundo. Não é outra, por exemplo, a diretriz do pensamento de um Erich Auerbach, que em Mimesis, mais do que definir um conceito de realismo, circunscreve um campo de tensões entre obra e mundo nos diversos momentos da história do ocidente, de Homero e a Bíblia a Virgínia Woolf, passando por Cervantes.
Tal tensão é também a matéria do vigoroso pensamento estético-político de Gÿorgy Lukács, sempre preocupado com investigar a propriedade especificamente estética do gesto humanizador da arte e da literatura. De forma bastante diversa, mas não contraditória, algo semelhante aparece no pensamento estético de Theodor Adorno. Mais recentemente, dois dos grandes representantes dessa disposição para a crítica realista da obra literária são Fredric Jameson e Terry Eagleton. No Brasil, a esse respeito, são centrais as obras de Antonio Candido e de Roberto Schwarz, que conferiram adensamento à análise da especificidade da forma como, em terras de capitalismo periférico, a forma literária capta o movimento do processo social.
Substancialmente, poderíamos dizer que estes trabalhos unem-se pela recuperação daquela dimensão da obra de arte literária que historicamente foi negada às classes populares. Essa negação se dá em grande medida pela exclusão da verdadeira leitura literária nas escolas tradicionais. No contexto mais geral da anodinia, da recusa do humanismo e de um pretenso utilitarismo instrumentalizador dos estudos nos ensinos fundamental e médio, a leitura literária no contexto escolar tem sido completamente sonegada aos alunos. Uma ruptura com tal disposição, ela mesma um gesto político, depende da leitura material do texto literário. Trata-se de politizar a leitura dos caminhos estéticos que cada poema ou narrativa abre diante de si. Enfim, é preciso aproveitar em sentido profundamente estético o texto literário, considerando que, para que isso se dê, é preciso ir além da estética. Ao estético chegamos pelo transestético, e deste àquele, de torna-viagem. Esses são os liames da crítica dialética.
Sob essa perspectiva de abordagem política da obra literária, seria, portanto, sempre melhor a saída dialética, que poderíamos enquadrar no seguinte sintagma: a obra interpreta o mundo ao remeter o leitor para o seu próprio mundo e ao autoquestionar-se. Nesse caso, o pressuposto seria: o mundo que a obra carrega não é a história como documento, mas a história como dinâmica tensionada da luta de classes. O Lukács de “Narrar ou descrever?” exibe nesses termos algo dessa problemática: “Compreender a necessidade social de um determinado estilo é algo bem diferente de fornecer uma avaliação estética dos efeitos artísticos deste estilo.”i A análise pura dos efeitos de estilo cancela a cunha política do trabalho crítico, a qual, para resistir, depende fortemente do empenho em se entender de que forma e por que motivo o texto literário se estabelece como tal a partir das diretrizes de um estilo, tendo em vista a dinâmica desse mesmo estilo com as forças históricas de onde ele é desentranhado.
Noutros termos, o que estamos dizendo é que o realismo de uma obra literária não se encontra na sua capacidade de espelhar imediatamente os pormenores da realidade, compondo um desenho fiel da sociedade de seu tempo. O realismo da obra literária e sua força política estão na maneira especificamente estética segundo a qual uma determinada obra monta um todo relativamente autônomo em relação ao mundo. A resposta política do realismo está, pois, no potencial mediador da literatura. Logo, é fundamental saber que a obra liga-se à realidade da dinâmica histórica de seu tempo por meio de um processo que “desmonta” o mundo, valendo-se de seus pormenores, e o “remonta”, cirando uma nova hierarquização para esses pormenores. A essa nova hierarquização chamamos forma literária. Nela está seu potencial de imitação do real, porque assumido e explicitado claramente como mediação. Os pormenores buscados à realidade, os detalhes de conexão com o momento histórico, importam segundo o papel que eles cumprem na estrutura, que tem as suas próprias leis, a sua própria coerência. Nessa lógica estrutural da obra, que é relativamente autônoma em relação ao mundo, encontramos a potência de captar a realidade da forma literária.
Vejamos alguns exemplos concretos de como isso ocorre. Estamos lendo o realismo na estrutura das obras quando observamos, num poema de Drummond como “Morte do leiteiro”, o papel importante das alterações de pessoas do discurso no discurso do eu-lírico que narra o sacrifício de um trabalhador em nome da “preservação da lógica da propriedade”. Ou quando, num poema como “Nos ramos dos salgueiros”, do italiano Salvatore Quasimodo, verificamos a importante função mimética das vogais e das sibilantes, a representarem, na camada sonora do texto, os ecos do morticínio da II Guerra Mundial, realizado em nome da racionalização e da modernização. Mas está também o realismo na maneira como percebemos, num romance que tende ao mero naturalismo como O Cortiço, de Aluízio Azevedo, o destino acumulador do personagem João Romão ser narrado de modo consequente para além de determinismos, configurando-se afinal como enredo do nascimento do próprio capitalismo moderno periférico.
Ou mesmo quando, num momento de altíssima tensão poética e política de Senhora de José de Alencar, o capítulo primeiro da seção “Posse”, o personagem Fernando Seixas toma consciência de ter sido comprado pela mulher que ama e reconhece-se como coisa entre coisas, ouvindo o canto de sereia da mercadoria, numa belíssima ilustração do fetichismo segundo Marx. Vemos o realismo também fluir com técnicas claramente anti-realistas, como quando a oscilação de estilos em Memórias póstumas de Brás Cubas, que fazem o despautério de elite escravista brasileira do defunto narrador revelar toda uma estruturação social pautada na radicalização da restrição da liberdade e de consequente degradação da vida dos não-proprietários do Brasil do século XIX. Ou, por fim, como último exemplo, quando o poeta Ferreira Gullar, no poema “O açúcar”, faz revelada a lógica da mercadoria na produção de um determinado produto, expondo as camadas de trabalho necessárias para a sua existência cotejadas com um processo estruturante de autocrítica do trabalho poético.
Citamos esses exemplos, sem desenvolvê-los à exaustão, pois nada pode substituir a liberdade do leitor de construir para si mesmo o sentido do realismo a partir das relações que os diversos elementos da obra podem sugerir como dinâmica interna que capta uma dinâmica externa. Citamos essas obras como convite e provocação ao leitor. Esperamos que na insubstituível experiência da leitura delas seja possível perceber o que as grandes obras literárias têm a nos dizer: o seu conteúdo de resposta política e de resistência ao mundo do fetichismo e da reificação. Ler o realismo na literatura, nesses tempos de capitalismo tardio em crise é resistir ao espetáculo, é recuperar na arte aquilo que ela ainda pode fornecer de interesse permanente para um possível novo mundo. Não há utopia sem humanização e não poderá haver humanização sem a entrega sincera, livre e, por isso mesmo, política, dos homens à força reconciliadora da arte. Portanto, qualquer hipótese de superação do capitalismo deve considerar a apropriação da grande arte pelas classes exploradas.
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Alexandre Pilati é professor da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009).
i LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p 158.
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