quarta-feira, 4 de julho de 2012

Danos colaterais e terror


Danos colaterais e terror
No inicio do século XX, 5% das vítimas de guerra eram civis, na Primeira Guerra Mundial,
15%; na Segunda Guerra Mundial o valor saltou para uma taxa de mortalidade de 65%; na
década de noventa, 75% das mortes da guerra eram civis. Hoje, a cifra atinge os 90% sendo
que a maioria é composta por mulheres e crianças. Quando um Estado realiza um ataque em
outro país e, previsivelmente, mata não combatentes pode ser isento de culpabilidade
simplesmente porque não manifestou a intenção de matar inocentes?
Reginaldo Nasser (*)
Aumenta a cada dia o número de civis que morrem nas guerras sobre a rubrica "danos colaterais".
No inicio do século XX, 5% das vítimas de guerra eram civis, na Primeira Guerra Mundial, 15%; na
Segunda Guerra Mundial o valor saltou para uma taxa de mortalidade de 65%; na década de
noventa, 75% das mortes da guerra eram civis. Hoje, a cifra atinge os 90% sendo que a maioria é
composta por mulheres e crianças.
Quando um Estado realiza um ataque em outro país e, previsivelmente, mata não combatentes pode
ser isento de culpabilidade simplesmente porque não manifestou a intenção de matar inocentes? O
jurista Richard Goldstone que presidiu uma comissão nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos
da ONU para apurar violações aos direitos humanos em decorrência dos ataques de Israel à Faixa de
Gaza, em 2009, escreveu em seu relatório que tanto as forças militares israelenses, como o grupo
Hamas, eram culpados de crimes de guerra no conflito. Por volta de 1.400 palestinos (900 civis) e
13 israelenses (10 soldados e 3 civis) morreram no mesmo período. Recentemente, Goldstone
escreveu, em uma coluna do Washington Post (01/04/2011) que: "sabemos atualmente muito mais
sobre o que aconteceu em Gaza do que no momento quando fizemos o relatório ... Se eu soubesse
o que sei agora, o Relatório teria sido diferente". Pois, a comissão de inquérito, de acordo com
Goldstone, não tem provas para explicar as circunstâncias em que os civis em Gaza foram alvo, o
que, provavelmente, teria influenciado a avaliação sobre a “intencionalidade dos crimes de guerra”.
Um ponto-chave no artigo e no amplo debate desencadeado pelo relatório Goldstone é a questão da
intenção criminosa. Nos julgamentos de crimes de guerra, a acusação deve provar não só que o
argüido cometeu um delito, mas também que manifestou a intenção, ou estava plenamente ciente
das conseqüências do que poderia resultar. Essas ações são tradicionalmente avaliadas em duas
categorias: ação intencional contra civis por parte de militares, o que caracterizaria como “crimes de
guerra"; ou morte não intencional de civis no decurso de operações militares que é muitas vezes
referida como "danos colaterais". São os danos colaterais, e não os crimes de guerra, que
constituem, atualmente, a maioria das mortes de civis nas guerras.
A proporção de vítimas de danos colaterais aumentou dramaticamente desde o fim da Guerra Fria
(cerca de 59%). Num primeiro momento podemos saudar como uma boa notícia uma diminuição
nos ataques direto aos civis ao longo do tempo. Mas o que é mais importante notar é que o
aumento em termos absolutos dos “danos colaterais” ocorre num contexto de diminuição do número  “Revoluções no Mundo Árabe e Islâmico: Regimes Políticos, Síria e Irã - 2012
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de guerras interestatais e no momento em que a modernização tecnológica e a utilização de armas
de grande precisão deveriam reduzir a probabilidade de danos colaterais.
Apesar dos ataques realizados se justificarem como legíitima defesa quando as tropas estão sob
ataque ou quando estão na iminência de serem atacadas as perguntas quanto ao uso de força
excessiva e os danos colaterais em termos de vítimas civis permanecem. Nesses casos, os ataques
exigem um vasto trabalho de inteligência para a identificação do alvo e da sua constante vigilância.
Assim, em muitos casos não houve tempo para elaborar um plano para o ataque, bem como
planejar uma operação especial para atingir o alvo. Essa avaliação, por sua vez, deve sustentar o
critério da proporcionalidade, pesando vantagem militar antecipada contra mortes de civis, bem
como o princípio da necessidade e da distinção.
Como se sabe cada vez mais, as chamadas armas de precisão têm um raio de destruição muito
grande. Os ataques aéreos sempre têm um alto custo em vidas humanas. Relatos recentes revelam
que, para cada indivíduo alvo, há em torno de 50 vítimas colaterais (sem falar de outras
conseqüências como o alto de número de feridos, destruição de propriedades e etc).
Um documento elaborado por uma comissão de especialistas sob os auspícios da secretaria geral da
ONU apresentou a seguinte definição de terrorismo: “qualquer ato, ademais dos atos já
especificados nas convenções vigentes sobre determinados aspectos do terrorismo... destinado a
causar a morte ou lesões corporais graves a um civil ou a um não combatente, quando o propósito
de tal ato, por sua natureza ou contexto, seja intimidar uma população ou obrigar a um governo ou
a uma organização internacional a realizar um ato ou a abster-se de fazê-lo”.
Embora essa definição reconheça que os Estados possam ser responsabilizados, a questão relativa
ao propósito do ato é essencial, deixando sempre amplas possibilidades aos Estados alegarem que
sua intenção nunca é causar danos a civis. Quando isso acontece há um conceito - “danos
colaterais” - esperando para ser usado, encobrindo a trágica conseqüência dos verdadeiros motivos
da ação. Por que essas ações que ocasionam a morte de civis não poderiam ser qualificadas como
terrorismo?
No Afeganistão e Iraque, os EUA utilizam deliberadamente métodos que se sabe, de antemão, que
irão causar a morte de um grande número de não combatentes, dado o alto poder destrutivo das
armas, porém a justificativa é que não se trata de terrorismo já que não há a intenção manifesta de
matar civis. É preciso desvincular a questão da ocorrência de danos colaterais dos problemas de
tecnologia, de erro humano, ou de inteligência militar e entender que, se trata de uma questão
ideológica. Nunca se viu na história das guerras e do direito internacional a quantidade e variedade
de eufemismos humanistas empregados atualmente, justamente para encobrir verdadeiros
assassinatos.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC (SP) e do Programa de Pós-Graduação San Tiago
Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

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