segunda-feira, 23 de julho de 2012

Poesia visual, nos vídeos sobre saraus da periferia



Cena da gravação de “Periferia Palavra Viva”, sobre o Sarau Elo da Corrente
Três documentários começam a desvendar (com pouco dinheiro, mas muita densidade e emoção) mundos da literatura periférica em São Paulo
Por Antonio Eleílson Leite, editor da coluna Leteratura Periférica
O Sarau Elo da Corrente está comemorando cinco anos de atividade. É mais um “safra 2007” da periferia paulistana. No início do mês, Michel Yakinie e Raquel Almeida realizaram uma edição especial de aniversário. São o casal que, entre outros poetas e ativistas, criou o evento, no Jardim Monte Alegre, (em Pirituba, região norte da cidade). Pouco antes, no final de junho, eles já haviam lançado, no vizinho Centro Cultural da Juventude (em Vila Nova Cachoeirinha), um presente às culturas periféricas. Apresentaram o belo vídeo Sarau Elo da Corrente: Periferia Palavra Viva,registro visual da trajetória deste que é um dos principais eventos poéticos não só da periferia, mas de toda a cidade de São Paulo.
O vídeo, que tem direção coletiva (além do casal, Divino Silva e Edu Godoy) faz jus à grandeza deste sarau – bem mais que um recital, todas as quintas-feiras, no Bar do Claudio Santista. Antes de realizarem o encontro semanal, Michel e Raquel faziam um programa na rádio comunitária do bairro e participavam de outros agitos, numa quebrada que já tinha uma cena forte no hip hop. Foi por aquelas bandas que surgiu o grupo de Rap RZO – Rapaziada da Zona Oeste. Por este grupo passaram Helião, Sandrão, Nega Li e os falecidos Sabotage e Dina Di. É muita responsa, portanto, fincar uma bandeira em um terreno marcado pelo talento de músicos tão respeitados. Mas a fruta nunca cai longe do pé. Os poetas do Elo souberam respeitar a tradição do Lado Oeste e mantêm com dignidade, e muita criatividade, um movimento cultural de periferia que já se tornou um clássico.
Poesia em vídeo
A iniciativa do Sarau Elo da Corrente junta-se a outras duas experiências de registro, em documentário, da saga de saraus poéticos de periferia. Um é da Cooperifa: ela teve sua história contada no vídeo Povo Lindo, Povo Inteligente, de Sergio Gagliardi e Maurício Falcão – uma produção da DGT Filmes, de 2007, outra joia da coroa periférica daquele histórico ano. A outra experiência é do Sarau Pavio da Cultura, de Suzano, criado pela Associação Literatura no Brasil, sob a liderança do poeta, escritor e programador cultural “Sacolinha”, ou Ademiro Alvez. O pessoal de Suzano fez sua produção com o apoio da prefeitura local no ano de 2010 quando comemoravam seu quinto ano de atividade.
Vale analisar os três trabalhos, para construir uma visão um pouco mais ampla da experiência de um sarau na quebrada. Ela deve ser contextualizada na cena literária da periferia paulistana que já produziu mais de cem livros [1], pelo menos dois CDs (um da Cooperifa, sempre pioneira, lançado em 2006 e um da Associação Literatura no Brasil, de 2011) e agora começa a formar uma videoteca. A importância que o movimento literário da periferia dá ao registro de suas experiências já é um dado de enorme relevância. Talvez este apego à preservação da memória deva-se à relação dos poetas e escritores com os livros, suporte consagrado para eternizar a criação artística. O poema que sai da boca do poeta no microfone do sarau vai para as páginas do livro, depois para o registro fonográfico em CD e ganha imagem na lente das câmeras de vídeo. É o bom e velho leia o livro, veja o filme e ouça o CD.
Povo lindo, povo inteligente!

Comecemos pelo início: o Sarau da Cooperifa. O documentário Povo Lindo, Povo Inteligente (trailler acima) tomou como título a saudação inicial do poeta Sergio Vaz aos participantes do sarau que todas as quartas-feiras acontece no Bar do Zé Batidão (no Jardim Guarujá, periferia Sul de São Paulo). O bordão do poeta não é apenas um chamado de boas vindas. É uma loa, um mantra. Vaz apenas entoa, o povo é que faz o alarido e com isso o ambiente fica permeado de excitação. A avidez por poesia começa a tomar conta das pessoas que ali se aglomeram e uma catarse se instala no boteco de quebrada.
Só essa sacada dos diretores já daria à obra um grande trunfo. Mas o vídeo não para por aí. O roteiro baseia-se no depoimento de vários de seus integrantes, todos de vida simples, trajetórias pessoais que não sugerem, à primeira vista, que esses cidadãos sejam poetas nas noites de quarta-feira. Os personagens são um taxista, Jairo; uma secretária, Rose; um operário, Sales; um aposentado, Sr. Lourival; um professor de educação física, Marcio Batista e um funileiro, Casulo. Partindo de seu local de trabalho ou morada, cada um deles chega ao sarau como se ali fosse um templo no qual se encontram com algum tipo de divindade. Energizam-se pela poesia e amizade que reina no local e seguem suas vidas com uma dose de felicidade que dura os sete dias que os separam do próximo encontro. Esse é o núcleo do filme de 50 minutos. Mas não acabou.
A narrativa do Sergio Vaz permeia toda a obra. Ele conta a história do sarau, que a época comemorava seu sexto aniversário. Fundador da Cooperifa, junto com o poeta e jornalista Marco Pezão, Vaz narra, com fluência poética, como tudo começou. Surgida como festa cultural de múltiplas linguagens, numa antiga fábrica em Taboão da Serra (município da Grande São Paulo que faz divisa com a periferia Sul da capital), a Cooperifa (que não é uma cooperativa) passou a ocupar, já na forma de sarau, um bar de nome Garajão na mesma cidade. Por lá ficou durante dois anos, até que foram despejados, boteco foi vendido sem que os poetas fossem previamente avisados. Com a permissão do clichê, há males que vêm para o bem. Rumaram para o Bar do Zé Batidão, no Piraporinha (periferia Sul de São Paulo), onde estão até hoje.
Aquele boteco havia sido do pai do Sergio Vaz durante muitos anos. A negociação foi fácil para que os poetas tomassem as dependências do local para seus encontros semanais. Zé Batidão acolheu a turma da Cooperifa e o sucesso do Sarau alavancou seu comércio. É interessante observar, no vídeo, o bar antes da reforma. Povo Lindo, Povo Inteligentetermina com o Poesia no Ar. Creio que foi a primeira edição desta iniciativa feita pela Cooperifa. Consiste na soltura de centenas de balões, com poesias presas por um barbante. “Há tantas balas perdidas por aí; a gente resolveu soltar balões com poesia”, explica o poeta Sergio Vaz. Um belo gran finale para um grande filme. Mas a Cooperifa não tem este documentário como seu, nem poderia ser. A obra é da DGT. Talvez Sergio Vaz e seus companheiros façam um vídeo próprio, já que há muito registro de imagens arquivado. Espero que sim, mas o documentário de Gagliarde e Falcão é um trabalho precioso, que merece sempre ser lembrado com honras.
O Pavio pega fogo

O documentário Pavio da Cultura – 5 Anos é um vídeo feito em 2010 pela Ateliê de Imagens com direção de Carlos Magno. Foi realizado pela Associação Literatura no Brasil, com financiamento da Prefeitura de Suzano. Registro de 35 minutos, está dividido em três partes: um clipe com depoimentos e sequência de imagens; um slideshow com fotos da comemoração dos cinco anos do sarau e um compacto com imagens do recital realizado no mesmo evento. Tudo muito simples, sem muitos recursos de captação de imagem e uma edição bastante convencional. Mas o resultado é bem interessante, tanto como registro, como produto para fruição.
Diferente do vídeo sobre a Cooperifa, que tem uma marca autoral e imagens captadas em HD, o Pavio da Cultura parece ter como única preocupação o registro. O sarau que ali se desenrola acontece como qualquer outra edição do recital, com a diferença de contar com vários convidados e atrações artísticas para além da poesia. Não há um cenário especial, luzes, nem ordenamento do público. Este espalha-se por vários cantos do Centro Cultural de Suzano, onde o evento acontece, numa noite de sábado. Nada disso, porém, tira a grandeza da obra. Ao contrário, a aparente negligência cênica confere ao documentário até um certo charme de vídeo caseiro.
Desfilam pelo slide de fotos muitos dos petas presentes ao evento e outros que não estiveram no dia, mas deram o ar de sua graça ao longo dos cinco anos de existência do sarau. Elizandra Souza, poeta e jornalista, comparece. Assim como o poeta Sergio Vaz, tendo nas mãos a edição independente de seu livro antológico, Colecionador de Pedras – exemplar raro, vendido a peso de ouro na rede de sebos Estante Virtual. Rodrigo Ciríaco é outro que aparece nas fotos, de uma época em que apenas despontava como grande escritor hoje reconhecido depois de dois livros publicados. Certamente, um importante registro.
O núcleo principal do filme é a parte com as falas dos principais protagonistas, devidamente legendados, com depoimentos muito emocionados sobre o quanto o sarau é importante para suas vidas. Chama atenção a fala da Dona Elizabete, uma senhora que diz ter superado enfermidades depois de passar a frequentar o sarau. Os recitais de poesia na periferia são assim, encontros carregados de sensibilidade e encantamento, capazes de curar e mudar a vida das pessoas – sejam velhos, jovens ou crianças. Bem que o Criolo canta no verso da canção Subirosdoistiozim: “Leva no Sarau, salva essa alma aí…”.
O que mais gostei no documentário, porém é o recital. Vale a pena. São cerca de vinte poetas de estilos muito diferentes. O filme peca por não ter legendas com os nomes dos poetas e de seus poemas. Começa com o Hugo Paz, que tem dois livros publicados: Poesias da Verdade e Rastros de Palavra. Depois vem um senhor, cujo poema é uma ode à sogra. Isso mesmo, sem gozação, o cara adora a mãe de sua esposa, a ponto de, ao menos na poesia, colocar em dúvida se gosta mais da sogra ou da filha. Na sequência, um músico cheio de suingue, canta um coco, saudando São Paulo, acompanhado pelo auxílio luxuoso do pandeiro de Sacolinha.
E assim sucedem-se as apresentações, uma melhor que a outra. Senti-me no sarau. Assinalo as melhores performances. Primeiro lugar, imbatível: Francis Gomes. Esse poeta e cordelista é um show à parte. No filme, ele não declama: interpreta um cordel no qual conta a saga de um cearense e seu irmão na noite carioca. Metem-se numa balada com um monte de gringos, confundem-se no inglês, entram em enrascadas homéricas, decidindo voltar para a terra natal no primeiro ônibus com destino ao Ceará. Segundo lugar, com louvor: Marco Pezão com seu poema Mina da Periferia. Ele mesmo – o poeta do Taboão que fundou a Cooperifa junto com Sergio Vaz – aparece no sarau de aniversário do Pavio da Cultura. Terceiro lugar, com distinção: Sacolinha, declamando um poema que julgo ser de sua lavra, tendo ao fundo uma linda melodia tirada de um violão muito bem tocado por um músico que não digo quem é, por falta da informação.
A Associação Literatura no Brasil – que mantém do Sarau e é também Ponto de Cultura e organizadora de festivais e concursos literários, entre outras iniciativas – fez este documentário com muita dignidade, presenteando-nos com um belo registro do Sarau Pavio da Cultura. Mas em termos de vídeo, esta obra fica muito aquém de uma outra fita por ela produzida no ano de 2009 de título Vídeo Literatura – Projeto Experimental. Filmado e editado pelo NCA – Núcleo de Comunicação Alternativa, este vídeo, é uma pequena obra-prima. São oito poetas declamando seus versos num cenário bacana, com imagens externas bem enquadradas e editadas, um primor. Vale a pena ver. É poesia para os olhos.
Palavra Viva

O vídeo do Elo da Corrente é um documentário de 15 minutos apenas, feito pelos próprios poetas do sarau, como já se disse. Uma obra feita com muito esmero, sensibilidade e boa qualidade de imagem. Coisa de gente grande. As fotos de Sonia Biscahain são preciosas. Um belo filme, que mostra o recital semanal e os projetos paralelos, contados por seus principais protagonistas, especialmente Michel, Raquel e Edu Godoy. Numa edição bem equilibrada, intercala as declamações com falas e imagens externas.
O filme começa com o dono do bar, o Claudio Santista. Há aqui uma curiosa semelhança com o dono do bar que serve de sede para a Cooperifa; o Zé Batidão também é torcedor do Santos Futebol Clube. Não me parece um acaso. No Santos, joga-se o futebol arte. Seus torcedores são habituados a apreciar poesia, ao ver seu time do coração em campo. Michel logo conta que, na primeira edição do Sarau, foi lançado seu livro Desencontro, uma coletânea de contos onde o jovem autor já demonstra talento para a ficção. Tenho o livro em meu acervo, outra raridade “safra 2007”.
O Sarau de Pirituba é muito musical e nordestino. Há sempre uma canção de saudação com muita percussão. O refrão diz: “Tambor, vai buscar quem mora longe…” Logo vêm os cordelistas, Zé Correia e João do Nascimento. A uma beleza de seus versos merece transcrição, para deleite do leitor:
“(…) e consagrado sou eu
na terra vivo criando
eu tenho filhos sem ter mãe
eu tenho filhos do além
hoje mesmo eu dei a luz
para a alma de ninguém”.
Ao lado dos nordestinos, há a ala dos afrodescendentes, que dá uma pegada mais soul ao sarau. O vínculo à tradição afrobrasileira e suas lutas fica acentuado com o registro de uma homenagem. O vídeo registra como o Elo da Corrente e o Sarau da Brasa (da vizinha Brasilândia) celebraram Carlos Assunção, poeta negro que estava esquecido em Franca, interior de São Paulo. Contemporâneo de Solano Trindade, membro da Frente Negra Brasileira, Assunção esteve em ambos os saraus para lançar, em 2010, uma coletânea de seus poemas. Um grande feito.
O vídeo aborda as várias iniciativas do Elo da Corrente, como o evento Abolindo a Escravidão no Brasil. Realizado sempre na semana do 13 de Maio, questiona o ato formal assinado pela Princesa Isabel em 1888. Outro projeto importante envolve as crianças. Chama-se Festa dos Ibejês. Realizada desde 2009, esta iniciativa tem caráter educativo e promove o gosto pela leitura e outras artes junto aos pequenos da comunidade. É o Elo da Corrente formando as próximas gerações.
Periferia Palavra Viva conta também com a participação soteropolitana do poeta e professor de literatura Nelson Maca. Gravado em Salvador, em pleno Pelourinho, este depoimento é primoroso. Nele, Maca, um habituê dos saraus periféricos paulistanos quando passa pela cidade, discorre sobre Fela Kuti, músico nigeriano, morto na década de 1980, criador do hoje badalado Afrobeat. Maca organiza o Felas Day no Brasil e enaltece o escritor Carlos Moore, autor da biografia de Fela Kuti, Uma Vida Puta, recentemente lançada no Brasil.
O vídeo do Elo da Corrente certamente influenciará outros saraus e movimentos cultuais a fazerem seus registros audiovisuais. Tributário de experiências passadas, como as abordadas aqui, Periferia Palavra Ativa, soube extrair ensinamentos e fez um documentário em curta metragem na media; bola num canto, goleiro no outro. Assim, a gente consegue trazer para dentro de casa, um pouco da magia de um belo sarau e seus projetos culturais e educativos. É poesia para se ouvir, ver e sentir.
[1] A pesquisadora Erica Peçanha, em sua tese de doutorado É Tudo Nosso – Produção Cultural na Periferia de Sao Paulo, catalogou 76 livros. Tenho em meu acervo 87 obras independentes e vários títulos me escaparam.


Antonio Eleilson Leite é historiador, programador cultural e coordenador do Programa de Cultura da ONG Ação Educativa

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