– 01/08/2012
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Deitaço: a tarde em que grupo de teatro fez-se mendigo na Praça da Sé, para sondar a alma de S.Paulo
Texto: Bruna Bernacchio | Vídeo: Gabriela Leite
Praça da Sé em pleno horário de almoço comercial: paulistanos em sua pressa rotineira e turistas orientais perdidos em suas fotos de monumentos, não reparam em meio à multidão – ou propositalmente não olham – aqueles sentados e deitados em cantos e muretas. Aqueles que sempre estão ali, que moram ali, em todo lugar, ou em lugar nenhum. Os moradores de rua, ou como muitas vezes também são chamados, mendigos. Ninguém os percebe mais, já fazem parte da vista do ambiente. Quem mais os observa, mas com olhos de vigia, são os homens fardados, da Guarda Civil Metropolitana, que ficam dando volta pela praça – feito mariposa em volta da “lâmpida”, como já disse Adoniran.
Mas no dia 26 de julho, desta vez bem no meio da praça, outras pessoas começam a sentar e deitar. Mas estas, aos olhos da sociedade, não são invisíveis. São brancas. E estão bem vestidas, com trajes elegantes. Calmamente esticam seus cobertores velhos, feitos de feltro cinza, os mesmos panos usados pelos tais moradores de rua – e ali se instalam. Em fração de segundos, e sobressalto, aparecem as câmeras, em quantidade surpreendente. Rapidamente um aglomerado se forma, algo como 70 pessoas ocupando metade da praça. Alguns leem livros ou papéis, tricotam, muitos conversam entre si, e outros simplesmente se sentam, deitam e se deixam estar.
Das centenas de pessoas que por ali passam, muitos observam por alguns instantes e continuam seu caminho, sem vontade de entender, ou tirando suas próprias conclusões. “Ah! Estão fazendo novela!” – uma senhora exclama para outra, aliviada por descobrir o motivo daquele inesperado alvoroço. “Vai sair na internet! Essas fotos vão sair na internet, hein!”, prevê um homem, ironizando os 15 minutos de fama que qualquer um pode ter hoje em dia graças à rede. O primeiro conceito, ou o preconceito: “Burgueses! Passem uma noite na rua pra saber como é bom!” E como deixar de lado o clássico argumento do trabalho, ainda presente: “Bando de vagabundos!”.
Me aproximo de Maria Merquido da Silva, 57 anos, que por algum tempo ficou a observar tudo aquilo, de corpo e olhos vidrados, e peço por uma pergunta: “Você sabe o que eles estão fazendo?”. Ela leva alguns segundos para voltar da onde estava até que finalmente se vira pra mim sorrindo: “Acho que sei. Eles estão protestando, não é?”. “Sim”, confirmo, “mas por quê?”. “Acho que é pela liberdade dos moradores de rua”. Maria tem o costume de cumprimentar os mais conhecidos, com a maior naturalidade da gentileza que gera gentileza. Principalmente aqueles que dormem em frente à Caixa Econômica, onde ela trabalha. Ela e seus colegas já viram muitos serem maltratados, e não concorda, procurando compreendê-los: “Nunca se sabe se algum dia sou eu quem vai estar aí, não é mesmo?”.
Maria acertou em cheio. Foi exatamente por isso que o coletivo de teatro Cia. Autoretrato tomou a iniciativa do ato. Chamado de Deitaço, contou com a participação de outros coletivos de teatro amigos, como Território B e Núcleo 1408. Como foi divulgado por email e nas redes sociais, convidava toda a sociedade a participar.
Depois de começar a frequentar mais o centro de São Paulo para ensaiar uma peça, o coletivo, formado por cerca de quinze artistas, testemunhou uma série de atitudes violentas por parte da Guarda Civil Metropolitana. Entre elas, uma registrada em vídeo, na qual guardas arrancam os poucos pertences que os moradores de rua possuem– papelão, cobertores, e até bolsas com documentos – e levam, sem saber pra onde vai.
No mesmo dia do acontecimento, o grupo foi até a Defensoria Pública para denunciar o abuso inconsciente das autoridades. Descobriram, nesse momento, que não eram os únicos que haviam feito uma denúncia, mas que isso não significava muita coisa. Segundos os advogados, a ação pública de nada adianta, se não tiver visibilidade. Foi aí que surgiu a ideia de fazer o Deitaço, com o objetivo de chamar atenção da sociedade e fazer um teste com a polícia. Também aconselhados, pretendem encaminhar e protocolar a denúncia em todas as instâncias.
Por mais que pequena e um tanto estática, a cena atraía facilmente a atenção dos que passavam, e muitos não se aguentavam de curiosidade. Construiu-se uma espécie de palco aberto, onde qualquer pessoa podia entrar e interagir como quisesse, deixando muitos à vontade para chegar, perguntar e até opinar. Pelo ouvido de Marina Carazza, atriz do coletivo Autoretrato, infelizmente os pensamentos conservadores foram os mais escutados. Ainda que muitos concordassem que existe um problema, há o juízo de que os mendigos deixam a rua feia e suja e que, por isso, precisam ser retirados dali urgente.
Como se realmente fosse algo para ser higienizado – não seres humanos que precisam e têm direito a casa, comida e trabalho. Como o que está sendo feito na gestão municipal que já contabiliza oito anos, entre José Serra e Gilberto Kassab. Tentar esconder os moradores de rua em regiões menos populosas da cidade. Empurrá-los para dentro de albergues que não tem estrutura e não dão o atendimento que deveriam, de saúde e capacitação profissional. Uma verdadeira segregação social.
O mais instigante para os observadores pareceu, entretanto, a enorme contradição proposital que ali existia, entre o comportamento daquelas pessoas, como se morassem na rua, e a aparência que elas tinham. “É lógico que a polícia não vai fazer nada com vocês! Vocês são da classe média!”, alguém disse para Marina, sem perceber que a questão central é exatamente essa. O que o coletivo imaginava e queria testar se comprovou: um grupo de pessoas que tem uma melhor situação financeira, ou pelo menos aparenta ter, pode sentar no meio da praça e ficar quanto tempo desejar; alguém em situação de miséria e abandono, não. Eles são menos cidadãos?
De qualquer forma, seja lá qual foi a natureza das reações, o que importa é que o debate tomou vida. A rua, que o governo quer esvaziar mais ainda do que ela já é, graças ao individualismo e o medo dos paulistanos, foi ocupada. A arte provou sua força de voz,com seu impacto subjetivo, às vezes muito maior do que de uma passeata, com palavras e barulhos bagunçados. E, apesar da internet ser uma das grandes culpadas pela espetacularização, ela também possui a capacidade de potencializar os pequenos acontecimentos, como diz Gabriel Medina no vídeo abaixo. É a conexão rua e rede, que pode tornar possível a reocupação do espaço público. Que já começou.
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