Quando suas certezas periclitam, os economistas conservadores sacam do coldre a arma da educação. Não exagero ao interpretar suas hipóteses monocausais e sua lógica binária como manobras destinadas a ocultar as demais condições políticas, econômicas e institucionais que cercam as experiências bem-sucedidas de desenvolvimento e de redução das desigualdades
Luiz Gonzaga Belluzzo
Luiz Gonzaga Belluzzo
Não vou repetir os argumentos já exarados na última coluna que escrevi para CartaCapital a respeito do assunto. Vou me valer de “velharias”, como diriam os comandantes da barbárie midiática up-to-date. Tirei do baú Karl Mannheim e Charles Wright Mills.
Mannheim morreu em 1947 aos 55 anos, na aurora do período mais glorioso e igualitário do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos. Entre outras obras, escreveu os clássicosIdeologia e Utopia e Ensaios Sobre a Sociologia da Cultura. No livro Liberdade, Poder e Planejamento Democrático, publicado postumamente, cuidou do papel da educação no fortalecimento das democracias que acordavam dos pesadelos totalitários dos anos 1930.
Mannheim acolhe a ideia de Ortega y Gasset sobre o homem educado: aquele que se distingue pelo conhecimento das filosofias que regem sua época. Isso deveria ser complementado, diz ele, por um conhecimento dos fatos que permitam a todos formar ideias sólidas acerca do lugar do homem na natureza e na sociedade. Cabe à educação examinar os problemas de nossa sociedade, especialmente aqueles relacionados com a vida democrática. Uma vez tratadas essas questões fundamentais para o homem moderno, o estudante vai encontrar o lugar adequado para a boa formação profissional.
Já cuidei nesta coluna de Charles Wright Mills. Morto em 1962, aos 46 anos, Mills escreveu duas obras-primas sobre a sociedade americana (A Elite do Poder e A Nova Classe Média) que anteciparam a emergência das características da sociedade de massa contemporânea nos Estados Unidos.
Mills, um intelectual do velho estilo, estava comprometido com a discussão dos problemas concretos do seu tempo e da sua gente. Crítico implacável dos estilos da ciência servil, lamentava, sobretudo, o abandono do “foco clássico nos problemas substantivos” em favor do que chamava de “ethos burocrático” e do empirismo abstrato.
Ele não escondia sua indignação com o projeto de uma ciência social, cujos propósitos são a previsão e o controle do comportamento humano. Falar com tanto desembaraço sobre previsão e controle é, observava, “adotar a perspectiva do burocrata para quem o mundo é um objeto a ser manipulado”. Mills era um típico liberal norte-americano do imediato pós-Guerra, formado no clima progressista e esperançoso do New Deal. Suas profecias sobre a trajetória da ciência e do conhecimento da sociedade não só se cumpriram como foram ultrapassadas pela capitulação humilhante das ciências sociais diante dos procedimentos pseudocientíficos da economia.
Mills imaginou com impressionante clareza: os estilos de investigação que prezava e praticava como intelectual público seriam avassalados pelo avanço da máquina monopolista, empenhada no controle do destino dos indivíduos livres e na “censura” do debate econômico, social e político. Avizinhavam-se “um período e uma sociedade em que a ampliação e a centralização dos meios de controle, de poder, incluem um uso bastante generalizado da ciência social para todos os fins que os homens no controle de tais meios possam lhe atribuir”.
Ele se dispôs a investigar dois pontos fundamentais: primeiro, as mudanças na organização econômica capitalista e nas grandes organizações sociais (inclusive nos aparelhos de produção do “saber”). Essas transformações dariam origem a uma concentração sem precedentes do poder e aumentariam a distância entre a elite e as massas. Segundo, as perspectivas mentais e ideológicas seriam criadas por um sistema de educação, de informação e de comunicações cada vez mais concentrado e centralizado. Mills não poderia, é claro, imaginar a usurpação quase completa da liberdade de opinião e de informação, prerrogativa dos cidadãos, executada de forma implacável pelos moguls da mídia, transformada, fora as exceções de praxe, em arma de desinformação e propaganda de interesses.
Nas condições de segmentação, especialização e burocratização do saber, num ambiente de brutal concentração do poder de informar e de definir temas para a discussão, é impossível cumprir a promessa moral e intelectual das ciências sociais de que a liberdade e a razão continuarão como valores aceitos e serão usados de forma séria. Para Mills, não há como separar o nascimento das ciências da sociedade das tradições do liberalismo clássico e do socialismo. O colapso dessas tradições significa o declínio da individualidade livre e da razão nas questões humanas.
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