Jornalista francesa denuncia crimes sexuais de Kadafi
A jornalista francesa Annick Cojean apresenta, em seu novo livro, um cenário que torna as orgias do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi brincadeiras de crianças no jardim da infância. Segundo testemunhos colhidos pela jornalista Kadafi jogou com o sexo, a vida ou a morte, sequestrou adolescentes e determinou a criação de bordeis pessoais até mesmo no interior da Universidade de Trípoli. O artigo é de Eduardo Febbro.
Eduardo Febbro - Paris
Paris - Para os admiradores do falecido Coronel Kadafi, sobretudo aqueles que gravitam na galáxia da esquerda global e tinham por ele uma devoção irretocável, o livro da jornalista francesa Annick Cojean vai cair como uma bomba. Aos demais amigos de Kadafi, ou seja, os empresários ocidentais que fizeram negócios enormes com ele nos últimos 10 anos, a obra talvez os deixem pasmos. Ao largo de uma investigação alucinante, Annick Cojean revela a densidade íntima do falecido coronel. Assim como dele, de outro presidente falecido, o iraquiano Saddam Hussein, muito se sabia sobre as andanças e as perversões de seus filhos, mas pouco de sua intimidade.
A jornalista francesa apresenta um cenário que torna as orgias do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi brincadeiras de crianças no jardim da infância. Kadafi jogava com o sexo, a vida ou a morte, sequestrava adolescentes, violava seus próprios ministros e determinava a criação de bordeis pessoais até mesmo no interior da Universidade de Trípoli. Annick Cojean não escreveu mais um desses livros formados com informação pusilânime, tirada da internet, mas com informações obtidas in loco, com testemunhos que aparecem em “Les Proies. Dans le harem de Kadhafi”[As Presas. No Harem de Kadhafi], ed. Grasset. O relato de Soraya – uma das vítimas sexuais de Kadafi – que abre o livro leva o leitor às páginas mais duras da obra do Marquês de Sade. Kadafi foi um seguidor deste que, em suas práticas, superou o divino marquês. Fez do sexo uma arma política de submissão e abuso.
A informação contida no livro deixa muito atrás os retratos caricaturais de um tirano megalômano que circulavam, de alguém que se fazia chamar de “Papa Muamar”. O chamativo Coronel mandava sequestrar jovens de 14 anos, as violava, para depois obrigá-las a presenciar suas relações sexuais com os homens. Ao final, o guia supremo de um país esmagado por suas botas utilizaria o sangue das mulheres virgens para usá-lo nas cerimônias de magia negra.
A primeira parte da investigação de Cojean contém o relato de Soraya, uma jovem sequestrada em 2004, quando tinha 14 anos, durante uma visita de Kadafi à escola de Syrte. Hoje ela tem 22. Soraya foi mantida em cativeiro sexual durante cinco anos, no subsolo da residência de Kadafi em Trípoli, Bab Al Aziza. Como tinha medo de pegar Aids, antes de sequestrar a menina ele a submeteu a um exame médico. A partir do relato de Soraya se percebe a prática metódica dos abusos e dos constrangimentos: estupros, golpes, insultos – chamava-a “cadela” ou “puta”, segundo conta Cojean. Kadafi urinava sobre ela, torturava-a com golpes e a forçava a consumir a cocaína que ele mesmo cheirava diariamente, sem descanso.
Além de autoritário, Kadafi era um drogado e alcoolista contumaz. Soraya não é mais do que uma amostra do que ocorreu a centenas de mulheres que foram sequestradas e submetidas às investidas sexuais do coronel e do seu entorno. Kadafi era um caçador. Ele mesmo escolhia as mulheres em todas as ocasiões que se lhe apresentavam: discursos políticos, banquetes, casamentos, passeios pela cidade, entrega de condecorações, recepções diplomáticas, desfiles militares. Muitas das famosas amazonas que constituíam sua guarda pessoal tinham passado antes pelas salas de tortura sexual.
Dias, meses ou anos, o destino dessas mulheres variava segundo os caprichos do coronel. Kadafi as escolhia com muito detalhe: “Passava horas revendo os vídeos dos casamentos, escolhendo entre as fotos que seus assessores tinham selecionado”, conta Cojean. A mão de Kadafi sobre a cabeça de uma mulher em alguma festa ou ato público era uma sentença de morte. Seus assessores chamavam a esse gesto de “toque mágico”.
Annick Cojean conta que “muitos diplomatas e membros dos serviços secretos ocidentais sabiam parte da verdade sobre os costumes de Kadafi. Suas vítimas se fecharam em segredo. Antes não podiam dizer nada. Kadafi comandava tudo. Hoje, depois de sua morte, falar as levaria a perder tudo. A pressão social, cultural e religiosa é tal que essas mulheres não serão jamais reconhecidas como vítimas”. E, no entanto, o horror está aí, de portas abertas, visível no subsolo da Universidade de Trípoli, onde, depois da queda do regime, os rebeldes encontraram um quarto com uma cama gigantesca, uma jacuzzi com torneiras banhadas a ouro e, ao lado, outro quarto que servia de consultório de ginecologia. Muito prático para o coronel, em caso de aborto.
Até o último momento Kadafi fez do sexo uma arma de guerra. Durante os dias da revolução que precipitou a sua queda, a Líbia importou contêineres cheios de viagra destinados aos homens das tropas que ocupavam as cidades e estupravam em massa as mulheres. O livro da jornalista do jornal Le Monde leva a investigação para muito longe. Não resta nenhum inocente, menos ainda nos serviços secretos ocidentais. Um diplomata consultado pela autora admite que os serviços secretos de Kadafi enviavam sua assessora secreta, Mabrouska, para buscar mulheres em Paris, Londres ou Roma. Ela as atraia com presentes milionários para levá-las aos braços do coronel. Sexo e governo, uma combinação utilizada ao extremo.
Um dos membros de seu staff mais próximos dele relatou a Annick Cojean que o déspota “governava, humilhava, submetia e sancionava por meio do sexo”. Não se salvava ninguém, nem seus próprios ministros, a quem estuprava regularmente, nem as mulheres dos embaixadores ou dos presidentes africanos que os visitavam. Só havia um rei e o rei era ele.
A jornalista francesa inclui em seu livro outro apavorante testemunho direto de uma das vítimas de Kadafi. Trata-se de Khadija, uma mulher jovem que passou alguns anos como escrava sexual de Kadafi até ele decidir passá-la adiante. Em vez de matá-la, Kadafi decidiu que ela iria se casar com outro militar. Khadija viu nessa outra vida uma salvação. Antes de casar-se decidiu viajar a Túnis para que reconstruíssem seu hímen. Kadafi ficou sabendo e, um dia antes de sua viagem a Túnis fez ela ir ao palácio e a estuprou mais uma vez.
Quantas foram as vítimas de um personagem a quem seus adeptos fora da Líbia qualificavam de um “sedutor compulsivo”? Antes um estuprador em série que um sedutor. “Centenas”, responde a autora do livro. O sexo, arma de guerra e arma política empregada inclusive contra os seus próprios soldados. Na Líbia de Kadafi circulava um vídeo onde se via um soldado esquartejado por dois automóveis: o militar havia ousado protestar, porque o senhor de Trípoli estuprou sua mulher.
O medo do abuso sexual era tal que até os mais fiéis servidores se cuidavam. Mansour Daw foi um deles, e não qualquer um. Mansour Daw foi o chefe da segurança de Kadafi. Hoje está na prisão e assegura, no livro, que não renega nada do que o fez o regime, menos ainda “a parte privada”. Quando seu filho se casou, Daw proibiu que na festa tirassem fotos para que as imagens não circulassem, a fim de evitar que as convidadas viessem a se tornar vítimas do coronel.
Tradução: Katarina Peixoto
A jornalista francesa apresenta um cenário que torna as orgias do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi brincadeiras de crianças no jardim da infância. Kadafi jogava com o sexo, a vida ou a morte, sequestrava adolescentes, violava seus próprios ministros e determinava a criação de bordeis pessoais até mesmo no interior da Universidade de Trípoli. Annick Cojean não escreveu mais um desses livros formados com informação pusilânime, tirada da internet, mas com informações obtidas in loco, com testemunhos que aparecem em “Les Proies. Dans le harem de Kadhafi”[As Presas. No Harem de Kadhafi], ed. Grasset. O relato de Soraya – uma das vítimas sexuais de Kadafi – que abre o livro leva o leitor às páginas mais duras da obra do Marquês de Sade. Kadafi foi um seguidor deste que, em suas práticas, superou o divino marquês. Fez do sexo uma arma política de submissão e abuso.
A informação contida no livro deixa muito atrás os retratos caricaturais de um tirano megalômano que circulavam, de alguém que se fazia chamar de “Papa Muamar”. O chamativo Coronel mandava sequestrar jovens de 14 anos, as violava, para depois obrigá-las a presenciar suas relações sexuais com os homens. Ao final, o guia supremo de um país esmagado por suas botas utilizaria o sangue das mulheres virgens para usá-lo nas cerimônias de magia negra.
A primeira parte da investigação de Cojean contém o relato de Soraya, uma jovem sequestrada em 2004, quando tinha 14 anos, durante uma visita de Kadafi à escola de Syrte. Hoje ela tem 22. Soraya foi mantida em cativeiro sexual durante cinco anos, no subsolo da residência de Kadafi em Trípoli, Bab Al Aziza. Como tinha medo de pegar Aids, antes de sequestrar a menina ele a submeteu a um exame médico. A partir do relato de Soraya se percebe a prática metódica dos abusos e dos constrangimentos: estupros, golpes, insultos – chamava-a “cadela” ou “puta”, segundo conta Cojean. Kadafi urinava sobre ela, torturava-a com golpes e a forçava a consumir a cocaína que ele mesmo cheirava diariamente, sem descanso.
Além de autoritário, Kadafi era um drogado e alcoolista contumaz. Soraya não é mais do que uma amostra do que ocorreu a centenas de mulheres que foram sequestradas e submetidas às investidas sexuais do coronel e do seu entorno. Kadafi era um caçador. Ele mesmo escolhia as mulheres em todas as ocasiões que se lhe apresentavam: discursos políticos, banquetes, casamentos, passeios pela cidade, entrega de condecorações, recepções diplomáticas, desfiles militares. Muitas das famosas amazonas que constituíam sua guarda pessoal tinham passado antes pelas salas de tortura sexual.
Dias, meses ou anos, o destino dessas mulheres variava segundo os caprichos do coronel. Kadafi as escolhia com muito detalhe: “Passava horas revendo os vídeos dos casamentos, escolhendo entre as fotos que seus assessores tinham selecionado”, conta Cojean. A mão de Kadafi sobre a cabeça de uma mulher em alguma festa ou ato público era uma sentença de morte. Seus assessores chamavam a esse gesto de “toque mágico”.
Annick Cojean conta que “muitos diplomatas e membros dos serviços secretos ocidentais sabiam parte da verdade sobre os costumes de Kadafi. Suas vítimas se fecharam em segredo. Antes não podiam dizer nada. Kadafi comandava tudo. Hoje, depois de sua morte, falar as levaria a perder tudo. A pressão social, cultural e religiosa é tal que essas mulheres não serão jamais reconhecidas como vítimas”. E, no entanto, o horror está aí, de portas abertas, visível no subsolo da Universidade de Trípoli, onde, depois da queda do regime, os rebeldes encontraram um quarto com uma cama gigantesca, uma jacuzzi com torneiras banhadas a ouro e, ao lado, outro quarto que servia de consultório de ginecologia. Muito prático para o coronel, em caso de aborto.
Até o último momento Kadafi fez do sexo uma arma de guerra. Durante os dias da revolução que precipitou a sua queda, a Líbia importou contêineres cheios de viagra destinados aos homens das tropas que ocupavam as cidades e estupravam em massa as mulheres. O livro da jornalista do jornal Le Monde leva a investigação para muito longe. Não resta nenhum inocente, menos ainda nos serviços secretos ocidentais. Um diplomata consultado pela autora admite que os serviços secretos de Kadafi enviavam sua assessora secreta, Mabrouska, para buscar mulheres em Paris, Londres ou Roma. Ela as atraia com presentes milionários para levá-las aos braços do coronel. Sexo e governo, uma combinação utilizada ao extremo.
Um dos membros de seu staff mais próximos dele relatou a Annick Cojean que o déspota “governava, humilhava, submetia e sancionava por meio do sexo”. Não se salvava ninguém, nem seus próprios ministros, a quem estuprava regularmente, nem as mulheres dos embaixadores ou dos presidentes africanos que os visitavam. Só havia um rei e o rei era ele.
A jornalista francesa inclui em seu livro outro apavorante testemunho direto de uma das vítimas de Kadafi. Trata-se de Khadija, uma mulher jovem que passou alguns anos como escrava sexual de Kadafi até ele decidir passá-la adiante. Em vez de matá-la, Kadafi decidiu que ela iria se casar com outro militar. Khadija viu nessa outra vida uma salvação. Antes de casar-se decidiu viajar a Túnis para que reconstruíssem seu hímen. Kadafi ficou sabendo e, um dia antes de sua viagem a Túnis fez ela ir ao palácio e a estuprou mais uma vez.
Quantas foram as vítimas de um personagem a quem seus adeptos fora da Líbia qualificavam de um “sedutor compulsivo”? Antes um estuprador em série que um sedutor. “Centenas”, responde a autora do livro. O sexo, arma de guerra e arma política empregada inclusive contra os seus próprios soldados. Na Líbia de Kadafi circulava um vídeo onde se via um soldado esquartejado por dois automóveis: o militar havia ousado protestar, porque o senhor de Trípoli estuprou sua mulher.
O medo do abuso sexual era tal que até os mais fiéis servidores se cuidavam. Mansour Daw foi um deles, e não qualquer um. Mansour Daw foi o chefe da segurança de Kadafi. Hoje está na prisão e assegura, no livro, que não renega nada do que o fez o regime, menos ainda “a parte privada”. Quando seu filho se casou, Daw proibiu que na festa tirassem fotos para que as imagens não circulassem, a fim de evitar que as convidadas viessem a se tornar vítimas do coronel.
Tradução: Katarina Peixoto
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