segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A cronologia da crise


O capital é valor que se valoriza. A crise do capitalismo ocorre exatamente quando há uma interrupção desse processo de valorização. Dá-se, então, a desvalorização do capital. Para entender como isso acontece, é preciso acompanhar o desenrolar da crise, pois, como adverte Lênin, o marxismo é "a análise concreta da situação concreta".

Sergio Granja
O enigma do capital
As inovações financeiras, com a emergência do mercado de derivativos1, inicialmente nos EUA, geraram a eclosão da atual crise do capitalismo, levando a crescentes subvenções estatais às empresas privadas em bancarrota.
A cronologia das principais inovações do mercado financeiro2 demonstra que estas, gerando capital fictício, estão sempre antepostas aos episódios da crise econômica. Salta aos olhos que aí se verifica uma relação de causa e efeito incontornável. Mas, mais do que isso, há uma relação dialética entre a acumulação de capital, a geração de excedente de liquidez e a criação de capital fictício, engendrando a bolha financeira que, quando murcha, provoca a crise.
Os primeiros certificados de valores imobiliários lastreados em hipotecas são emitidos em 1970. No ano seguinte, a primeira Agência de Mercado de Moedas e Futuros é aberta em Chicago. E, um ano depois, tem início o comércio de capitais futuros, com a abertura da primeira Agência de Opções de Câmbio, também em Chicago.
De 1973 a 1975, os mercados imobiliários entram em colapso nos EUA e na Inglaterra. Estouram crises fiscais no governo estadunidense, nos níveis federal, estadual e municipal: a cidade de Nova Iorque beira a insolvência. O preço do petróleo sobe. E manifesta-se a recessão.
Em 1975, tem início o comércio com papeis do tesouro dos EUA e com ações de futuro baseadas em hipotecas. Dois anos depois, o comércio com ações de futuro do Tesouro estadunidense. E, em 1979, torna-se prática comum o comércio sem regulamentação e sem prestação de contas legal, especialmente nos mercados futuros de moeda, disseminando-se o "sistema bancário às escuras".
O período compreendido de 1979 a 1982 caracteriza-se por inflação em alta. É então que ocorre o choque de Volcker, elevando a taxa de juro nos EUA. O FMI, expurgado da influência keynesiana, se converte aos programas de "ajuste estrutural" e, junto com o Tesouro estadunidense, promove o resgate das dívidas dos países endividados com "ajudas" que, na verdade, socorrem principalmente os bancos de investimento dos EUA.
Novas formas de investimento em derivativos ancorados em moedas estrangeiras aparecem em 1980, os currency swap. No ano seguinte, tem-se a criação de seguros sobre os portfólios; os investimentos em derivativos vinculados a taxas de juros estrangeiras, os interest rate swape; e os mercados de futuro em eurodólares, certificados de depósito e instrumentos do Tesouro. Em 1983, se estabelecem os mercados de opção em moedas, valores de ações e instrumentos do Tesouro, assim como as obrigações de pagamento garantidas por propriedades.
Numa operação conjunta, o FED, o Tesouro e a agência de controle bancário dos EUA praticam, em 1984, o primeiro resgate bancário: o do banco Continental Illinois.
A partir de 1985, há um crescimento significativo dos mercados de opções e futuro; o comércio virtual se desenvolve e surgem novos modelos de mercado; criam-se estratégias de arbitragem estatística para derivativos. Em 1986, há a unificação dos mercados de ações, opções e moedas globais, o Big Bang.
No período de 1984 a 1992, há uma sucessão de falências de instituições estadunidenses de poupança e empréstimo, decorrência de investimentos mal sucedidos no mercado imobiliário. A crise afeta 3.260 instituições financeiras, que vão à bancarrota e são obrigadas a fechar suas portas ou só sobrevivem graças ao socorro estatal. O mercado imobiliário entra em recessão na Inglaterra em 1987. Em outubro, o desarranjo dos mercados financeiros leva o FED e o Banco da Inglaterra a fazerem injeções de liquidez maciças em instituições financeiras.
Em 1987 e 1988, surgem os CDO (Obrigações da Dívida Colaterizadas), os CBO (Obrigações de Ações Colaterizadas) e os CMO (Obrigações de Hipotecas Colaterizadas). Em 1989, surgem novos mecanismos de investimento em mercados de futuro de taxas de juro. Em 1990, criam-se mecanismos de investimentos em insolvência no crédito e índices de ações. Em 1991, são aprovados mecanismos de investimento "fora da contabilidade": as entidades de interesse especial ou veículos de investimento especial.
De 1990 a 1992, a crise financeira se alastra, atingindo bancos nórdicos e japoneses, por complicações no mercado imobiliário. Nos EUA, o City Bank e o Bank of New England recebem socorro estatal.
Assim se pavimentou o período de 1992 a 2009, propiciando um rápido e formidável crescimento do mercado financeiro. Para se ter uma ideia, o volume desse comércio, praticamente insignificante em 1990, ultrapassou 600 trilhões de dólares ao ano em 2008, o que está na raiz da atual crise econômica.
Na esteira da crise, temos, em 1994 e 1995, o socorro ao peso mexicano, para proteger os investidores estadunidenses que se arriscaram em operações especulativas com a dívida de alto risco do México. Em seguida, em 1997 e 1998, ocorre a crise da moeda na Ásia, parcialmente devida a investimentos malogrados no mercado imobiliário. A crise de liquidez provoca falências em massa e o aumento do desemprego. Isso forneceu a ocasião para que especuladores angariassem fortunas no mercado financeiro com as intervenções punitivas do FMI na Coreia do Sul, na Tailândia e em outros países da região afetados pela crise.
Nos EUA, a ajuda estatal continuou resgatando empresas privadas em bancarrota: em 1998, o FED foi ao socorro do Long Term Capital Management.
No período de 1998 a 2001, a crise se manifesta nos países emergentes. Em 1998, a fuga de capitais leva a Rússia à falência. Em 1999, a crise atinge o Brasil. E, de 2000 a 2002, a crise da dívida argentina culmina com a desvalorização do peso, seguida de desemprego em massa e revoltas sociais.
Em 2001 e 2002, acontecem os colapsos em larga escala da bolha "ponto.com" e dos mercados financeiros. Entre os fatos econômicos mais significativos do período estão as falências da Enron e da WorldCom. Nesse contexto, o FED corta as taxas de juro para tentar equilibrar o mercado de valores e futuros. E a bolha do mercado imobiliário começa a ganhar uma dimensão preocupante.
De 2007 a 2010, a crise econômica se generaliza. Pipocam as crises do mercado imobiliário nos EUA, na Inglaterra, na Irlanda e na Espanha. Na sequência, acontecem as fusões forçadas de empresas, as falências e as nacionalizações de instituições financeiras. Em toda a parte, os governos saem em socorro dos especuladores, que investiram em derivativos, fundos de cobertura, etc., e ensaiam variegados pacotes de estímulo ao estilo neokeneisiano, além das injeções de liquidez realizadas pelos bancos centrais. Tudo isso, até agora, sem êxitos muito animadores.
Finalmente, de 2011 até agora, a crise não cessa de se agravar, colocando em risco a integridade da Zona do Euro, conflagrando a luta de classes na Comunidade Europeia, instalando o mal-estar social em países do sul da Europa como Grécia, Portugal, Espanha e Itália, afetando - em maior ou menor grau, direta ou indiretamente - povos de todos os quadrantes do mundo.
Vale alertar, todavia, que esta não é a primeira nem está fadada a ser obrigatoriamente a última crise do capitalismo. A crise é da própria essência do regime do capital: desde 1854, o sistema capitalista contabiliza trinta e quatro grandes crises sistêmicas. E essas crises sempre prenunciaram grandes transformações.
A teoria política gramsciana aponta as tarefas que devem ser cumpridas para que as crises configurem conjunturas de transformações progressivas e não regressivas.
A primeira lição gramsciana é a que rompe com o economicismo e descarta que a crise econômica se transforme automaticamente em crise de hegemonia.
"Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; elas podem criar apenas um terreno mais favorável à difusão de certos modos de pensar, de colocar e resolver as questões que envolvem todo o desenvolvimento ulterior da vida do Estado."
A transformação da crise econômica em política "é essencialmente um processo que tem por atores os homens e a vontade e a capacidade dos homens". Se as forças populares permanecem inoperantes, o mais certo é que, no limite, "a velha sociedade resiste e se dá o tempo de 'respirar', exterminando fisicamente a elite adversária e aterrorizando as massas de reserva".
A segunda lição é a que alerta para a necessidade de se estar preparado para o surgimento do que se poderia chamar de conjuntura favorável.
"O elemento decisivo de toda situação é a força organizada permanentemente e preparada desde muito tempo, e que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e ela só é favorável na medida em que uma tal força exista e esteja plena de ardor combativo); assim a tarefa essencial é a de se dedicar sistemática e pacientemente a formar, desenvolver, tornar sempre mais homogênea, compacta, consciente de si mesma esta força."
Enfim, por mais grave que seja a crise do capitalismo, uma coisa é certa: o poder do capital não cairá de podre por si mesmo. Ainda que apodrecido, ele só desabará se for demolido por uma força social mais poderosa.
Notas:
1 Derivativos são instrumentos financeiros que têm seus preços derivados (daí o nome) do preço de mercado de um bem ou de outro instrumento financeiro. Por exemplo, o mercado futuro de petróleo é uma modalidade de derivativo cujo preço é referenciado dos negócios realizados no mercado à vista de petróleo, seu instrumento de referência. No caso de um contrato futuro de dólar, ele deriva do dólar à vista; o futuro de café, do café à vista; e assim por diante.
Uma operação com derivativos pode ter diferentes objetivos, mas os quatro principais são: proteção, alavancagem, especulação e arbitragem.
Hedge: é como se fosse um seguro de preço. Objetiva proteger o participante do mercado físico de um bem ou ativo contra variações adversas de taxas, moedas ou preços.
Alavancagem: os derivativos têm grande poder de alavancagem, já que a negociação com esses instrumentos exige menos capital do que a compra do ativo à vista. Assim, ao adicionar posições de derivativos a seus investimentos, você pode aumentar a rentabilidade total deles a um custo menor
Especulação: o mesmo que tomar uma posição no mercado futuro ou de opções sem uma posição correspondente no mercado à vista. Nesse caso, o objetivo é operar a tendência de preços do mercado.
Arbitragem: significa tirar proveito da diferença de preços de um mesmo produto negociado em mercados diferentes. O objetivo é aproveitar as discrepâncias no processo de formação de preços dos diversos ativos e mercadorias e entre vencimentos.
[Fonte: http://www.bmfbovespa.com.br/pt-br/educacional/iniciantes/mercados-de-derivativos/o-que-sao-derivativos/o-que-sao-derivativos.aspx?idioma=pt-br]
2 Este artigo é um arranjo com dados disponíveis no livro O enigma do capital e as crise do capitalismo, de David Hatrvey.
Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos
Revisão: Silvia Mundstock

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