terça-feira, 27 de novembro de 2012

Ciência islâmica herdou métodos gregos, persas, hindus e chineses


Texto publicado no Jornal Folha de S. Paulo em março de 1996, no caderno espacial sobre o Islã

ROSHDI RASHED
Desde o nascimento da história da ciência, no século 18, a ciência árabe não parou de ser invocada por filósofos e historiadores das ciências. Para aqueles, assegura a continuidade do progresso do Iluminismo durante esse período dominado por "superstições e obscuridades"; para estes, essa ciência é necessária não para traçar um quadro histórico, mas para estabelecer os próprios fatos da história das disciplinas matemáticas.
Mas filósofos e historiadores receberam da ciência árabe não mais do que ecos, que lhes chegaram por meio de traduções latinas antigas. Mas é preciso evitar generalizações abusivas. A astronomia, pelo menos entre as ciências matemáticas, é a mais solidariamente ligada a sua história, mesmo que apenas pelos valores das observações nos livros. A astronomia árabe também foi privilegiada, tendo desde cedo atraído atenção dos historiadores.
Mais tarde, a imagem da ciência árabe começa a se transformar e adquirir nuances. A escola do romantismo alemão acabou por conferir às disciplinas filológicas e históricas impulso e extensão. A história da ciência árabe beneficiou-se desse impulso, antes de tornar-se sua vítima: o estudo dos textos científicos gregos ou latinos não podia mais omitir as obras árabes; mas a armadilha da história pelas línguas se arma, e arrasta a história da ciência árabe num movimento de recuo. De direito, ela perde seu direito à existência, enquanto de fato se impõe aos historiadores.
Esse paradoxo apenas exprime uma necessidade profunda: o historiador da ciência clássica não pode evitar a ciência árabe. Ele pode, na esteira da doutrina da ocidentalidade da ciência clássica, enxergar nela um conservatório da ciência helênica, uma ciência helênica algo tardia: a ciência enquanto teoria é grega, e enquanto método experimental ela nasceu no século 17.
Segundo tal doutrina, a ciência árabe seria um terreno de investigações sobre os traços de helenismo, onde o historiador seria o arqueólogo. Essa prática muitas vezes resultou na distorção dos resultados da ciência helênica e do século 17. E levou a equívocos famosos.
Mesmo que as fontes sejam majoritariamente helenísticas, elas compreendem também escritos siríacos, sânscritos e persas. O peso dessas diferentes contribuições é desigual, mas sua multiplicidade foi essencial para a gênese da ciência árabe; e, mesmo quando se evoca a matemática -que podemos afirmar, sem temor, ser "herdeira" da ciência grega-, o retorno às fontes se impõe. Veremos na astronomia, por exemplo, a importância das raízes indianas e persas.
A novidade desse fenômeno é que ele não é fruto do acaso dos encontros, da passagem regular ou imprevista de caravanas ou navegadores; é o resultado deliberado de um movimento maciço de tradução científica e filosófica, realizada por profissionais -às vezes rivais-, sustentada pelo poder e suscitada pela própria pesquisa.
Desse movimento nasceu uma biblioteca com as dimensões do mundo da época. Assim, as tradições de origens e línguas diferentes, doravante elementos de uma mesma civilização cuja língua científica é o árabe, encontraram meios de agir umas sobre as outras para desembocar em novos métodos, às vezes em disciplinas imprevistas, como a álgebra. Algum dia talvez cheguemos a compreender como correntes científicas independentes puderam se conjugar.
Essa característica, marcante nos primórdios da ciência árabe, acentuou-se mais tarde. Os estudiosos dos séculos 11 e 12 continuaram a discutir os resultados obtidos em outros lugares, e integrá-los às estruturas teóricas. Esse fenômeno, observável na medicina, farmacopéia ou alquimia, atinge também as ciências matemáticas. Prova disso são trabalhos de Al-Biruni ou de Al-Samaual sobre métodos indianos de interpolação quadrática, ou a formulação, por Ibn Al-Haytham, do teorema chinês do resto.
Com a ciência árabe torna-se possível ler numa mesma língua as traduções e a produção científica dos antigos, assim como toda a pesquisa avançada dos modernos. Isso era feito em árabe tanto em Samarcanda quanto em Granada, passando por Bagdá, Damasco, Cairo ou Palermo. Mesmo quando acontecia de um estudioso escrever em sua língua materna, especialmente o persa -caso de Al-Nasaui ou de Nasir al-Din al-Tusi-, ele mesmo se encarregava de traduzir seus próprios escritos ao árabe.
Em suma, a partir do século 9, a ciência tinha o árabe como língua, e este, por sua vez, assumiu uma dimensão universal: não é mais a língua de um povo, mas a de vários; não é mais a língua de uma cultura, mas a de todos os saberes.
Duas práticas vivem crescimento sem precedentes. Primeiro, as viagens científicas -basta ler biografias: Ibn al-Haytham entre Bassra e Cairo, Maimônides, de Córdoba ao Cairo, Sharaf al-Din al-Tusi, de Tus a Damasco, passando por Hamadhan, Mossul e Aleppo.
A correspondência científica, novo gênero literário, é instrumento de colaboração e difusão da pesquisa. Percebe-se que essa ciência se cerca de um cortejo de transformações: as relações entre as tradições antigas se modificam, a biblioteca científica muda de composição, a mobilidade dos sábios e das idéias adquire outra escala.
Pode ser espantoso que uma característica tão fundamental da ciência árabe tenha ficado esquecida e escapado da atenção dos historiadores. Alguns evocam o olhar oblíquo de uma ideologia histórica que via na ciência clássica apenas o feito de europeus. Mas é preciso acrescentar duas considerações: uma diz respeito à história, outra à historiografia, às ciências.
Trata-se, em primeiro lugar, de vínculos que unem a ciência árabe a seus prolongamentos latinos e, de maneira geral, à ciência da Europa Ocidental até o século 17. Nada se pode compreender a ciência latina a partir do século 12 sem as traduções do árabe; não se apreciará melhor a pesquisa sem fazer referência a al-Khwarizmi, Abu Kamil e Ibn al-Haytham. Esses elos atraíram os historiadores e mantiveram na sombra as relações entre a ciência árabe, Índia e China.
O fato historiográfico é a preeminência da ciência do século 17. Esta, considerada -aliás, sem razão- ininterrupta e revolucionária de parte em parte, se viu investida de uma transcendência anti-histórica, referência absoluta para situar toda ciência anterior. Apresentada como postulado, essa preeminência absoluta abriu um vazio antes dos trabalhos do século 17 e, com isso, modelou a ciência árabe ao mesmo tempo que achatava seus destaques mais notáveis.
Um bom conhecimento da ciência árabe não reduz o grau de inovação de Kepler em astronomia, de Galileu em cinemática ou de Fermat na teoria dos números. Pelo contrário, permite situá-la mais exatamente, buscando-a onde está e não, como frequentemente acontece, onde não está. O progresso desse conhecimento nos leva a uma percepção mais rigorosa das atividades científicas. Incita-nos a rever representações e métodos e protege-nos de conceitos de validade duvidosa, notadamente o de Renascimento científico, nos levando a dialetizar outros, como o de Revolução científica.
Mas a ciência árabe deve recuperar seu caráter por assim dizer cosmopolita; será preciso acompanhá-la em seus prolongamentos latinos e italianos, mas também hebraicos, sânscritos e chineses, sem falar das realizações nas línguas de civilização islâmica, notadamente o persa. Para que o conhecimento da ciência árabe seja satisfatório, será preciso, enfim, restituí-lo a seu contexto, à sociedade que a viu nascer, com seus hospitais, observatórios, mesquitas, escolas etc.
Como compreender de verdade seus desdobramentos, se nos esquecemos da cidade islâmica e suas instituições? Reflexão necessária, e que não tardará a dissipar opiniões resultantes da ignorância, ainda hoje vivas, que fecham a ciência numa suposta marginalidade nos confins dessa cidade, ou observam uma decadência científica ilusória a partir do século 12.
Foi apenas a esse preço que a história da ciência árabe cumpriu suas duas tarefas principais: abrir caminho para uma verdadeira compreensão da história da ciência clássica, do século 9 ao século 17, e contribuir para o conhecimento da própria cultura islâmica, conferindo-lhe uma dimensão que sempre teve: a de cultura científica.
Tradução de Clara Allain

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