domingo, 25 de novembro de 2012

No tempo em que o árabe era a língua da ciência



Texto publicado no Jornal Folha de S. Paulo em março de 1996, no caderno espacial sobre o Islã

TZVI LANGERMANN
Os séculos geralmente qualificados como Idade Média na periodização ocidental da história foram uma época de tremenda criatividade científica nos países da órbita islâmica. Um conjunto muito grande de literatura científica na língua árabe ficou disponível para ser estudado. Esse conjunto compreendia livros traduzidos do grego, sânscrito, siríaco e pérsico, além de muitos tratados originais.
Pessoas de origens étnicas e filiações religiosas diversas participaram desse empreendimento científico. Esse empreendimento foi, até grande ponto, "secular", ou seja, livre de compromissos ou preocupações com dogmas religiosos.
Apesar disso, havia um intercâmbio bastante grande com as tradições religiosas. Muitos de seus participantes (judeus e cristãos, além de muçulmanos), senão a maioria, ocupavam posições importantes em suas comunidades religiosas, e certas pesquisas, por exemplo aquelas referentes a questões relativas à natureza do tempo e da causalidade, foram abordadas do ponto de vista religioso, além do puramente científico.
Os árabes pré-islâmicos tinham uma riquíssima tradição de conhecimentos astronômicos. Em especial, prestavam muita atenção ao nascer e pôr helíaco de determinadas estrelas fixas. Esses acontecimentos, conhecidos em árabe como "anwa", ocorrem em pontos fixos do tempo no decorrer do ano.
Pela observação cuidadosa, os árabes desenvolveram algo que é um calendário solar, baseado em 28 intervalos de aproximadamente duas semanas cada. Fora isso, porém, não havia teoria geométrica, nem qualquer estudo dos movimentos planetários. Isso foi obtido a partir de traduções de livros estrangeiros, os mais importantes dos quais foram o "Almagest" de Claudio Ptolomeu e a obra indiana conhecida como "Sindhind".
Havia financiamentos governamentais consideráveis para pesquisas astronômicas, especialmente sob os governos de alguns califas abássidas. Esses financiamentos incluíam estipêndios dados a pesquisadores, para a procura e tradução de livros, a construção de instrumentos científicos e uma famosa expedição ao deserto de Sijistão com o objetivo de obter uma medida precisa da circunferência da Terra. Mas não havia qualquer coisa equivalente às universidades. A maior parte da instrução era dada de forma particular ou em pequenos grupos, fornecendo apoio financeiro a cientistas e oportunidades educacionais aos abastados.
Alguns astrônomos se especializavam na observação e concentravam seus esforços em refinar os parâmetros e produzir tabelas astronômicas mais exatas. Mas parece que os cientistas ficavam intrigados, sobretudo, por questões ligadas à teoria geométrica empregada na astronomia. No lado mais técnico, muitos esforços foram investidos no estudo da trigonometria e sua aplicação à astronomia.
Outra grande área de interesse era a aparente contradição entre os modelos geométricos utilizados na astronomia e os princípios fundamentais da física aristotélica. De acordo com os ensinamentos gregos antigos, os movimentos dos planetas e das estrelas devem ser uniformes e circulares, tendo como centro uma Terra estacionária.
Mas, como sabemos hoje, os planetas (incluindo a Terra) se movem em trajetórias elípticas; o Sol fica em um dos focos dessas trajetórias. Os gregos haviam explicado essa "irregularidade" por meio de um sistema engenhoso de círculos e epiciclos excêntricos.
Mas Ibn Roschd (Averróis), Ibn al-Haytham (Al-Hazen) e outros criticaram esses modelos por violarem as leis da física. Os modelos gregos eram conhecidos por ser muito precisos. A busca por alternativas que pudessem conformar-se às leis da física sem qualquer perda de precisão levou a alguns desdobramentos interessantes, associados em especial aos nomes de Nasir al-Din al-Tusi e Ibn al-Shatir. Pesquisas recentes sugeriram uma possível conexão entre a obra deste último e alguns dos modelos usados por Copérnico.
A crença na astrologia e sua prática eram amplamente difundidas. As exigências específicas aos cálculos astrológicos serviram para impulsionar alguns dos estudos trigonométricos. A astrologia, diferentemente da astronomia, era uma profissão que dava dinheiro.
Isso não significa, porém, que o tema não fosse fruto de controvérsias; a legitimidade das previsões astrológicas era vivamente discutida. Essa discussão tinha facetas tanto científicas quanto religiosas. No lado puramente científico, afirmava-se que a astrologia não passava de adivinhação. Não havia qualquer "banco de dados" significativo de correspondências observadas entre acontecimentos estelares e terrestres, sobre a qual pudesse se fundamentar uma ciência de previsões astrológicas.
Segundo a visão da ciência prevalecente na época, a ciência não pode ser puramente empírica. É preciso existir alguma teoria que prove rigorosamente como as estrelas fazem ocorrer os acontecimentos na Terra, e não existia nenhuma teoria desse tipo. No que dizia respeito ao componente religioso da discussão, os teólogos islâmicos, de modo geral, não se preocupavam com a questão do livre arbítrio. Apesar disso, algumas vozes se ergueram em oposição à astrologia. Uma das razões disso era que o conceito astrológico da história, no qual a ascensão e queda das religiões se dá de acordo com os ciclos estelares, era obviamente inaceitável. As conexões históricas entre astrologia e adoração das estrelas formavam outra base para a oposição religiosa à astrologia.
A interface entre preocupações religiosas e científicas era muito maior no campo da física. Mas primeiro é preciso deixar claro até que ponto a física medieval era diferente de ciência atual do mesmo nome. É preciso destacar sobretudo que ela não era nem matemática, nem experimental, nem se baseava em observações.
Havia, é claro, exceções importantes. Mas de modo geral é verdade que eles pesquisavam a física sob o ponto de vista filosófico. O movimento, a matéria e o tempo eram estudados como conceitos, a ser esclarecidos pelo raciocínio discursivo, mais do que como fenômenos naturais a ser observados e quantificados. Neste campo também os pensadores do mundo islâmico tiraram subsídios de diversas tradições anteriores, em sua maioria helenísticas, que refinaram e sistematizaram e às quais acrescentaram contribuições originais.
Duas tendências principais podem ser discernidas. Os "filósofos" ("falasifa", em árabe) optaram pela visão de mundo aristotélica. O universo é finito, completamente cheio de matéria (não existe vácuo); todo movimento é mudança, ou uma mudança de posição ou mudança de estado, e o tempo é uma construção humana.
O principal desafio dos filósofos religiosos era harmonizar o Deus conhecido das escrituras sagradas -Deus o criador, Deus cuja vontade e cujo poder são ilimitados, o Deus que recompensa e castiga- neste sistema. Já a disciplina conhecida como "kalam" (literalmente falar, discurso), em contraste, ensinava que a matéria e o tempo são atomísticos. A cada instante (isto é, a cada átomo de tempo), Deus, por vontade direta e ilimitada, recria o universo; isto é, cria a concatenação característica de átomos de matéria e suas propriedades físicas daquele momento.
Esse processo é rapidamente percebido; pode ser comparado ao cinema, no qual a rápida projeção de um quadro após outro produz a ilusão de uma imagem em movimento. Fica claro que a visão de mundo do "kalam" condiz muito bem com a teologia. Mas o kalam não era apenas uma física feita para os filósofos teológicos; e os filósofos, por sua vez, eram sinceros em suas convicções religiosas. Essas duas tendências principais (e houve diversas variantes de cada uma) eram visões alternativas do universo que, mutatis mutandis, já existiam antes do islamismo e continuaram a se manter até bem mais tarde, no período moderno. Cada uma evoluiu de modo específico no interior da cultura islâmica.
Embora a física não fosse matematizada, havia exceções. Pode-se destacar uma ciência em particular: a óptica. A ciência da visão combinava conhecimentos de disciplinas muito diferentes. A anatomia do olho e do sistema nervoso óptico foi descrita na literatura médica; a psicologia da percepção era uma questão de filosofia; a natureza da luz era questão da física propriamente dita, assim como fenômenos meteorológicos como o arco-íris; e o comportamento das linhas retas e das superfícies curvas, e assim também a refração da luz por vários meios, eram passíveis de tratamento geométrico.
Todos esses foram tratados em grande detalhe por Ibn al-Haytham (Al-Hazen). Seu tratado sistemático e muito original sobre a óptica foi traduzido para o latim e exerceu grande impacto sobre a ciência européia.

Tradução de Clara Allain 

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