Em meio à especulação imobiliária, que inferniza e apequena metrópoles, livro retrata padrão urbano que homenageia espaço, circulação e diversidade
Luciana Cavalcanti
Luciana Cavalcanti
Minha mãe, dona Avany Cavalcanti, sempre dizia: "os espigões estão dominando a cidade e daqui a pouco vento e casa vão ser coisas do passado aqui em Recife"...
Infelizmente ela previa o que atualmente tem se confirmado em algumas cidades do Brasil, como por exemplo em Recife e São Paulo.
Em Recife, no início da década de 1920, o sociólogo, antropólogo, ensaísta e pensador social Gilberto Freyre volta de seus estudos realizados nos Estados Unidos e na Europa e entra em choque quando encontra, após cinco anos de ausência, uma cidade em reforma, com seu patrimônio, ruas, praças, casas sendo destroçados pelo que ele chamaria de "excesso de urbanização". Esta mudança estrutural das cidades ocorreu em muitos lugares do mundo.
A professora Helouise Costa em seu livro A Fotografia Moderna no Brasil cita um trecho do artigo de Wilson Coutinho publicado no Jornal do Brasil de 8 de abril de 1984 "Atget, um clássico da fotografia moderna" e comenta:
"O caso das reformas urbanas de Paris, levados a cabo por Hausmann, é extremamente representativo. Napoleão III, por ocasião da abertura dos boulevards, decretou uma lei que institucionalizava a documentação fotográfica como um serviço de utilidade pública. A destruição da cidade incomodou os amantes de Paris, como os homens do patrimônio. A lei oferecia francos a quem fotografasse algum aspecto das ruas de Paris, seus monumentos e logradouros, alguns que seriam devorados pela reforma urbana de Napoleão III, fotos estas que eram compradas pela municipalidade. Outro comércio era a própria adoração de Paris, havendo um mercado de colecionadores que se dedicavam a possuir em 18×24 cm, tamanho das fotos da época, pedaços da velha cidade que estava prestes a desaparecer".
Recentemente foi divulgado na imprensa pernambucana o projeto "Novo Recife" (leia-se no blog Acerto de Contas) que dentre outras transformações e ocupações desmedidas, inclui a construção de prédios gigantes na área do Cais José Estelita - uma parte do centro da cidade com vista privilegiada para o encontro do rio com o mar. Além de não colaborar para a preservação do patrimônio, o projeto detona a possilibidade de revitalização coerente, humanizada e adequada daquele espaço do Recife Antigo.
Recentemente foi divulgado na imprensa pernambucana o projeto "Novo Recife" (leia-se no blog Acerto de Contas) que dentre outras transformações e ocupações desmedidas, inclui a construção de prédios gigantes na área do Cais José Estelita - uma parte do centro da cidade com vista privilegiada para o encontro do rio com o mar. Além de não colaborar para a preservação do patrimônio, o projeto detona a possilibidade de revitalização coerente, humanizada e adequada daquele espaço do Recife Antigo.
E vê-se por todo lado obras de prédios cada vez mais altos e total descompromisso com o que ainda resta de patrimônio no país. Há uma diferença entre o Brasil que espantou Gilberto Freyre e o de hoje. Na época, a ideia era não apagar as lembranças físicas da Monarquia e erguer edificações com a cara da República. Tudo o que representasse o regime anterior deveria ser destruído.
Hoje a ocupação do espaço urbano tem se dado de maneira mais trágica. A pressão de construtoras nutre o objetivo de verticalizar as cidades em intensidade além da necessária e ética. Excluem-se moradores antigos ou casas que fazem parte da história e da memória de um lugar. É a identidade que se perde... E de forma muito mais rápida do que em qualquer outra época. Afinal, é mais gente para habitar, mais gente para pagar e mais gente sem se preocupar com o que preservar de suas lembranças afetivas, incluindo o espaço onde se vive. Vale ler o excelente artigo de Cláudia Linhares Sanz no Icônica, sobre casas e sua memória e afeto.
Nesta perspectiva de observação e convivência com esta problemática, nasce o belo e apurado trabalho do fotógrafo carioca, Fernando Martinho (participa do Coletivo Paralaxis) sobre os sobrados ainda resistentes da zona oeste da cidade de São Paulo. A obra, na forma de livro, foi lançada no dia 14, na Rever.
Morando em São Paulo há mais de doze anos, desde 2010 Fernando fotografa sobrados antigos através de sua câmera digital que capta a imagem de um vidro despolido de uma Rolleyflex, dando à foto o ar que ele precisa para revelar a nostalgia, a memória antiga de fachadas e casas que ainda conseguem sobreviver na vasta subida de novos edifícios que invade São Paulo há alguns bons anos. "A textura do visor, as sujeiras, arranhões e até o fato de a imagem estar invertida contribuíram para compor a atmosfera lírica que almejava. A ideia de memória, das lembranças, das vidas passadas, de tempo, estava tudo ali. E acho bastante poético também, é praticamente uma ode aos sobrados", conta o autor.
Seu objetivo é continuar fotografando os sobrados "até eles acabarem", afirma.
Seu objetivo é continuar fotografando os sobrados "até eles acabarem", afirma.
Fernando Martinho, do Coletivo Paralaxis: "Sobrados da Zona Oeste"
"Quando vim pra São Paulo me surpreendi com a quantidade de casas. Imaginava a cidade muito mais vertical. O Rio de Janeiro (zona sul) quase não tem mais casas. Fui morar na Vila Madalena e assisti de perto às demolições e transformações no bairro. E assim foi na cidade inteira. Hoje vejo bairros antigos totalmente desfigurados. Aquela cultura de bairro pequeno, tranquilo se foi. Hoje vivemos sob uma ditadura das incorporadoras imobiliárias, onde não se valoriza nem respeita o antigo, o histórico, o público".
Nesta pesquisa quase iconográfica, além de fazer uma vasta documentação fotográfica, Fernando tenta entender como se executa o projeto de urbanização que acontece na cidade por meio de sua árdua busca e olhar fotográfico investigador.
"É controverso: as pessoas querem morar em apartamentos de 40 metros quadrados em torres de vinte andares encravadas em ruas que não as comportam. A cidade não as comporta. O sujeito vai levar vinte minutos só pra sair da garagem do prédio. Vai acabar a cultura de bairro. Algumas empresas do ramo imobiliário vendem ‘bem estar' mas não contribuem para isso, muito pelo contrário. Sem falar que muitas, a meu ver, agem de modo criminoso. Por exemplo: várias vendem imóveis de luxo e contratam (de forma totalmente ilegal e desumana) homens e mulheres para segurarem aquelas placas-setas nas esquinas. Derrubam imóveis tombados pelo patrimônio histórico na calada da noite. Fazem terrorismo e ameaçam moradores de casas humildes. Enfim, muita picaretagem".
"Uma cidade humanizada", prossegue Fernando, "deve valorizar o coletivo. Onde existe espaço público decente, onde o pedestre seja prioridade. As pessoas devem circular por ela, devem se misturar. Segregar é desumano!"
"Eu vivi minha infância em casa e brincando na rua. Vivia em Santa Teresa, no Rio. Eram outros tempos, vivia em cima de uma goiabeira no quintal, andando de bicicleta pelas ladeiras, ia de bonde pra escola. Conhecia todas as ruas, becos, vielas e escadarias como a palma da minha mão".
"Fotografei diversas casas que já foram destruídas. Um horror! Hoje em dia a gente pisca e já derrubaram quarteirões inteiros. Já é difícil ver o horizonte nessa cidade, imagine daqui a dez anos".
Fernando Martinho sempre se dedica a uma ideia de modo intenso e instigante. Desde que iniciou este projeto, saiu andando pelas ruas; Chegava todas as vezes em nossas reuniões do Coletivo Paralaxis cansado e decepcionado com o que via. E fomos - eu, Alexandre Severo e Stefan Schmeling - acompanhando aos poucos sua evolução e espanto com o que a verticalização causou a São Paulo. Muito bom ver este projeto, que também pode ser tido como uma denúncia aos abusos cometidos contra o espaço urbano, contra a memória de uma cidade e contra a delicadeza que nela ainda existe. Triste perder esta delicadeza...
Mas mesmo com pesar que tenhamos, as fotografias podem motivar mudanças e trazem lembranças de um tempo que já não existe mais. É quando a fotografia vira patrimônio! Felizmente e infelizmente...
Parabéns, Fernando e linda Ode aos Sobrados! E que estas possam trazer luz a esta questão tão emergente e necessária à discussão...
Luciana Cavalcanti é fotojornalista e graduada em Jornalismo pela UFPE. Especialização em Direitos Humanos pela UnB atualmente é mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras no Instituto de Estudos Brasileiros - IEB - USP. Participa, juntamente com Alexandre Severo, Fernando Martinho e Stefan Schmeling, do Coletivo Paralaxis.
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