– 22/02/2013
Fernando Haddad fez crítica do velho socialismo sem escorregar para pântano da “vida como ela é”. Nisso está sua novidade essencial
Por Milton Ohata*
Fernando Haddad é, possivelmente, a grande incógnita da política institucional brasileira. Sua vitória usou o emblema do “novo” e tanto a composição de parte de seu secretariado quanto alguns de seus atos de governo sugerem que ele busca confirmar esta marca. Como reação, vários colunistas apressaram-se a caracterizá-lo como um mero apadrinhado de Lula, como Dilma Roussef também fora, deixando de considerar que o “padrinho” é, junto a Leonel Brizola, o grande transferidor de votos da política brasileira desde a redemocratização – e transferência de votos é um indicador positivo de qualquer sistema político maduro. Ressaltou-se também que, praticando até agora uma hábil política de coalizão, Haddad estaria fazendo concessões ao “velho”.
Ainda que a muitos – entre os quais me incluo – tenha sido bastante chocante a foto do então candidato do PT entre risos e abraços com Lula e Paulo Maluf, é necessário definir melhor a “novidade” de sua eleição e, para isso, olhar longe na história brasileira, tomando como fio condutor a palavra “vergonha”. Ela estava no discurso da vitória de Fernando Haddad, que tomou como bandeira “derrubar o muro da vergonha que separa a cidade rica da cidade pobre”. Num nível elementar, vergonha pressupõe consciência dos próprios atos perante os outros. No Brasil, contudo, desde a Independência, “vergonha” teve um peso social e político para muito além do sentido meramente individual, sobretudo para intelectuais que empenharam suas capacidades no exercício do poder.
Desde 1822 até hoje, é possível notar a recorrência da mesma questão: a vergonha nacional vem do abismo que separa a elite de uma parcela enorme da população em condições de infra-cidadania ou de cidadania precária. A diferença a tirar nos aproximaria dos países centrais e nosso fuso periférico ora está regulado com eles, ora não, falseando as posições políticas, o que dá um quê de comédia ideológica ao movimento de conjunto. O drama esteve na cabeça de José Bonifácio, personagem central na transição da colônia para a nação. Os manuais de história quase nunca dão idéia da envergadura desse intelectual ilustrado que cultivou interesses múltiplos, foi mineralogista e poeta árcade sob a assinatura de “Américo Elísio”. Nesse nome composto, aliás, está explícita a divisão de consciência entre a realidade do Novo Mundo e os ideais mais caros à civilização ocidental, cujo berço fora a Grécia clássica. De fato, a contrapelo das demais nações americanas, nosso processo de independência preservara da colônia a forma monárquica de governo e, sobretudo, a escravidão (mantida também nos Estados Unidos e causa direta da Guerra de Secessão, o acontecimento mais traumático da história daquele país). Como já observou Luiz Felipe de Alencastro, a nova fase do capitalismo sacramentada em tratados de direito internacional tornava a extinção do tráfico negreiro a principal questão diplomática do primeiro reinado e do período regencial (1822-1840). Exigido pela Inglaterra, principal fiadora da jovem nação brasileira, o fim do tráfico encontrava a resistência de uma classe dominante majoritariamente escravocrata. Em uma representação à Assembléia Constituinte de 1823, sem meias palavras, Bonifácio pergunta: “Mas como pode haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão de escravos brutais e inimigos?”
O país do jeitinho deu um baita jeitão, postergou o assunto e extinguiu o tráfico negreiro apenas em 1850. Até essa data era o número 1 no rol das chamadas “nações-pirata”, aquém das civilizadas. Para Alencastro , somente a partir desse momento se coloca o problema da construção nacional: como transformar escravos em cidadãos? A política adotada, lenta e gradualista (Lei dos Sexagenários em 1865 e Lei do Ventre Livre em 1871), foi atropelada pelo movimento abolicionista, de caráter suprapartidário, à frente do qual estava um filho da classe dominante. Como tal, Joaquim Nabuco teve seus momentos de dândi e em 1893, poucos anos após a vitória do abolicionismo, escreveu, diretamente em francês, fina porcelana como os “Pensées detachées” (Pensamentos soltos). Mas dez anos antes, em “O abolicionismo”, livro a um só tempo lúcido e candente, Nabuco propõe “a Independência completada pela Abolição”, convocando para as fileiras do movimento todos os “Brasileiros que julgam seu título de cidadão diminuído enquanto houver Brasileiros escravos”.
Estrutura social mais duradoura de nossa história, a escravidão gerou o escravismo, sua justificação ideológica, com mutações que persistem até hoje. Nos engenhos e fazendas onde o poder público ia apenas até a porteira, da escravidão nasceu a hipertrofia do poder privado, na figura do patriarcalismo que tomava tudo e todos como seu, incluindo o próprio Estado. À sombra do patriarcado surge o “filhotismo”, no cortejo de agregados, sabujos e rapapés que buscam proveitos pessoais à custa da autonomia individual moderna e do igualitarismo. Não é preciso acrescentar que essas duas instituições dificultaram de saída a precária formação do espaço público e da cidadania no Brasil. Ressentidos com a Monarquia que acabara de promulgar a abolição, fazendeiros ex-proprietários de escravos ingressaram no Partido Republicano e apressaram o fim do regime. A República Velha foi, assim, um arreglo entre as antigas oligarquias rurais de diferentes regiões.
O crash de 1929, a crise interna desse modelo e a pressão crescente de camadas médias surgidas com a urbanização levaram ao Brasil moderno, que em poucos anos industrializou-se sob o comando de um estancieiro gaúcho, não hesitando em instaurar uma ditadura quando achou necessário – o ideólogo-mor dessa fase foi Oliveira Vianna, para quem as forças centrífugas do patriarcalismo pediam um Estado forte. Getúlio Vargas, em vida e depois de morto, foi também a causa do transe político só interrompido com o golpe de Estado de 1964, pois mobilizara as massas de trabalhadores nos quadros de um projeto de autonomia nacional e redução das desigualdades sociais. No ponto máximo de tensão estiveram na linha de frente instituições como o ISEB e o CPC da UNE, além de dois dos nossos mais brilhantes intelectuais: Celso Furtado e Darcy Ribeiro. Furtado foi o criador da SUDENE e sua atuação atravessou os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, pautando-se pelo fato de que o subdesenvolvimento não era um estágio em direção ao desenvolvimento e necessitava, para ser superado, de uma decisão política. Chefe da Casa Civil do governo Goulart, Darcy foi o idealizador de um novo modelo de educação superior, que tomou forma na Universidade de Brasília.
Por volta de 1968, a participação da inteligentzia na política tomou basicamente três caminhos: um publicamente favorável ao regime, caso de Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre; um institucional, por meio do MDB, partido da oposição consentida; e o terceiro, pela via não-institucional da guerrilha. No começo dos anos 70, a truculência do regime autoritário dizimara a luta armada e atingiu níveis alarmantes até para uma parte dos generais. A vitória emedebista nas eleições para o senado em 1974 e a crise internacional do petróleo, provocando o fim do “milagre econômico”, foram os sinais para uma “distensão” que só se resolve com uma costura pelo alto, após a maré fracassada da campanha pelas eleições diretas em 1984, quando inúmeros artistas e intelectuais subiram em palanques. No ano seguinte, o Congresso sela a transição elegendo indiretamente Tancredo Neves, um antigo ministro de Vargas. Durante esse período, mesmo bloqueada em vários níveis oficiais, a vida política foi progressivamente irrigada pela atividade dos grupos comunitários abrigados na Igreja Católica e de vários movimentos sociais. Expressão máxima desse fenômeno, as greves do ABC paulista em 1978-79 revelam como ator político um movimento operário já desvinculado do antigo trabalhismo da era Vargas.
A oposição havia ganho uma base social nova e organizada desde baixo. E vários intelectuais um novo espaço de atuação política. É a partir desse ponto que podemos reconhecer os atores mais importantes da política brasileira dos últimos anos, abrigados no PT e no PSDB, ambos com raízes na oposição à ditadura e programas elaborados para “derrubar o muro da vergonha”. Um núcleo importante formou-se com a colaboração de intelectuais do CEBRAP – fundado em 1969 por professores cassados da USP, tendo à frente Fernando Henrique Cardoso – nas propostas do MDB, a convite de Ulysses Guimarães. Este grupo esteve presente nas discussões que deram origem ao PT em 1980, mas parte dele preferiu continuar na via de um partido pluriclassista, do qual uma dissidência forma em 1988 o PSDB.
Na eleição presidencial de 1989, a primeira da redemocratização, o candidato do PSDB, Mário Covas, propôs ao país “um choque de capitalismo” após anos de recessão inflacionária. Foi entretanto Lula, o candidato do PT, aquele que conseguiu passar ao segundo turno, com um programa de traços abertamente anti-capitalistas. A vitória ficou com um aventureiro, Fernando Collor de Mello, que adotou um estilo mais apropriado à sociedade do espetáculo e um programa econômico de aggiornamento aos ares do tempo. Quem viveu a campanha de Lula nessa época deve lembrar os sentimentos contraditórios entre a euforia dos comícios cheios de bandeiras e palavras de ordem socialistas, as notícias do desmoronamento dos países comunistas no leste europeu e o início avassalador do neoliberalismo.
No meio de seu mandato, Collor sofreu um impechment por corrupção, mas a baliza econômica implantada em seu governo tinha infletido o país num caminho sem volta. Esse é o dado incontornável que a partir de 1994 marca a chegada de PSDB e PT à presidência da república, cujos governos são de “atualização capitalista”, na expressão do crítico Roberto Schwarz. Nos anos recentes, as danças e contradanças de vários intelectuais tucanos e petistas podem ser entendidas nessa perspectiva – o que vale também para políticos coerentes como Fernando Gabeira, cujo recente “O que resta de tudo aquilo agora?” (Companhia das Letras, 2012), expressa algo da mesma ordem. Talvez por entenderem que o antigo programa petista não era mais viável eleitoralmente, intelectuais desde sempre ligados ao partido, como Francisco Weffort, José Álvaro Moisés e Augusto de Franco, embarcaram no governo FHC. O próprio presidente, em entrevista à Folha de S.Paulo, chegou a dizer que uma parte da população pobre teria que viver de “sopão” estatal, dado que em sua nova fase o capitalismo prescindia de explorar trabalho. Excluídos do núcleo de decisões econômicas, tucanos formados na escola do desenvolvimentismo, como José Serra e Luiz Carlos Bresser Pereira, não esconderam seu desconforto. O fato é que, contrariando suas raízes históricas européias que criaram o Estado de Bem Estar Social, a social-democracia brasileira foi responsável pela implantação daquilo que o destruiu. A adoção em larga escala de um mínimo programa social-democrata pelo governo Lula, notadamente o programa Bolsa-família, pavimenta o caminho eleitoral para sua exitosa sucessão. Aos candidatos presidenciais do PSDB, Geraldo Alckmin e José Serra, com graus diferentes de constrangimento, restou apenas um espaço de polarização à direita, para a qual não há vergonha alguma no muro da vergonha mas tão somente “a vida como ela é”.
Como se sabe, a expressão é de Nelson Rodrigues, que ressurgiu em livros, no colunismo impresso e na TV durante os anos em que a esquerda como um todo foi desancada sistematicamente pela ideologia neoliberal. Tem sido a época dos “sanduíches de realidade”, título que Arnaldo Jabor deu a um de seus livros, com o predomínio do neodarwinismo social, a banalização da violência (incluindo a linguagem – basta pensar em certas letras do funk ou do rap, no tom de comentários em blogs ou colunas da imprensa), a mercantilização da cultura, a dificuldade de compromisso nas relações pessoais etc. etc., multiplicados por TV, marketing e internet onipresentes. Como notou o psicanalista Joel Birman, a vida em sociedade nos dias de hoje alia uma alta capacidade de descarga pulsional a uma baixa capacidade de elaboração simbólica. Entre parêntesis, com Jurandir Freire Costa e Renato Mezan, Birman abriu um caminho fecundo na fronteira de psicanálise e teoria social, que hoje parece ser o mais interessante nas ciências sociais brasileiras. Nele, o custo pessoal do presente revela o avesso da “vida como ela é”, explorado em trabalhos recentes como os de Maria Rita Kehl (“O tempo e o cão – a atualidade das depressões”, Boitempo, 2010), Vladimir Safatle (“Grande hotel abismo – para uma reconstrução da teoria do reconhecimento”, Martins Fontes, 2012, e “Fetichismo – colonizar o outro”, Civilização Brasileira, 2012), Tales Ab´Sáber (“Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica”, Hedra, 2012, e “A música do tempo infinito”, Cosac Naify, 2012) e do próprio Birman (“O sujeito na contemporaneidade”, Civilização Brasileira, 2012).
Desde a Revolução Francesa (1789), a política foi o espaço por excelência da elaboração simbólica das coletividades – para bem e para mal, bastando pensar nas experiências do nazismo e do socialismo real. Nos anos de hegemonia neoliberal, contudo, a política tem se limitado a um papel mofino, “realista”, de mera gestora dos interesses do capital. Aqui estaria, até onde posso ver, a “novidade” da eleição de Fernando Haddad. Como intelectual, ele cedo se perguntou sobre o sentido da experiência do socialismo soviético, um estorvo para qualquer projeto de socialismo democrático, e chegou a conclusões quando grande parte da esquerda mal esboçava perguntas. Em “O sistema soviético – relato de uma polêmica” (Scritta, 1992), Haddad passa em revista setenta anos de debate sobre a natureza do regime, chegando a conclusões muito semelhantes às do crítico alemão Robert Kurz, que na mesma época explicava o socialismo soviético como uma tentativa fracassada de transição de economias pré-modernas para o capitalismo – e não uma alternativa a ele. Haddad também fez parte do grupo da revista “Praga” (nove números entre 1996-2000), que procurou dar respostas à hegemonia neoliberal e se desdobrou no mais consistente projeto nesse sentido, a coleção “Zero à esquerda”, coordenada por Paulo Arantes. Nessa coleção, Haddad publicou dois livros. Em “Desorganizando o consenso – nove entrevistas com intelectuais à esquerda” (Vozes/Fundação Perseu Abramo, 1998), ele ouviu Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Luiz Felipe de Alencastro, José Luiz Fiori, Francisco de Oliveira, Paul Singer, Fábio Comparato, Emir Sader e Maria da Conceição Tavares, repassando a trajetória intelectual de cada um e fazendo uma análise de conjuntura dos primeiros anos do governo FHC.
Mas o livro mais ousado de Haddad é a plaquete “Em defesa do socialismo – por ocasião dos 150 anos do ‘Manifesto’”, em que estão juntos um diagnóstico do capitalismo atual e uma análise das forças, à direita e à esquerda, que podem se apresentar como alternativas ao seu predomínio depois do declínio do operariado. Não há espaço aqui para descrever esse pequeno mas mordente livrinho e nem remotamente suponho que irá pautar a gestão de Haddad. Gostaria apenas de ressaltar que, em suas páginas, não há qualquer fórmula política salvadora: a reconstrução do socialismo será um processo lento de tentativas socializantes, cuja célula está no modelo cooperativo e na troca de informações em rede. Essas estruturas já existem, notadamente entre a “classe dos inovadores” ou “tecno-científica”, ligada às novas tecnologias e ao trabalho criativo, fundamentais para o funcionamento do capitalismo contemporâneo. Durante sua campanha e na elaboração de seu programa de governo, Haddad mobilizou essa classe como há muito não se via. Premido pela lógica do seu crescimento eleitoral e por um pragmatismo “realista” que esvaziou o debate interno, o PT queimou em poucos anos seu patrimônio ético mas, sobretudo, sua capacidade de imaginar alternativas à vida como ela é. E, no caso de São Paulo, de imaginar alternativas para uma cidade que em todos os sentidos é a anti-cidade. O projeto do “Arco do Futuro” que abre o programa de governo ungido pelo voto, aponta claramente numa reversão dessa tendência. A “novidade” de Haddad talvez esteja na tentativa de unir a teoria e a prática, algo que nos últimos anos andou esquecido pela esquerda.
*Milton Ohata é doutor em história pela FFLCH-USP e coorganizador de “Um crítico na periferia do capitalismo – Roberto Schwarz” (Companhia das Letras).
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