Muitos se põem no lugar das vítimas em Santa Maria; experimentar o sofrimento em toda sua extensão e virulência é uma das condições que nos tornam humanos
Christian Ingo Lenz Dunker
Christian Ingo Lenz Dunker
Precisamos urgência de sentido diante de uma perda em vão: existiria verdade em causa nessa perda?
Uma tragédia mostra os dois processos acontecendo de forma quase independente. Enquanto alguns clamavam por responsáveis e rogavam para que isso jamais se repetisse, outros repetiam os fatos, os nomes e os números. É o paradoxo que liga sofrimento e repetição. Queremos ao mesmo tempo inserir a perda em uma série (a série das tragédias evitáveis, previsíveis, adiáveis) e extrair a perda da série (um evento sem par, fora de série, que não se repetirá). Para aqueles que perderam entes queridos trata-se de luto, mas para os vivem a tragédia indiretamente o que se pode esperar é uma verdadeira experiência de sofrimento.
Outra maneira de suspender a experiência de sofrimento é dissolvendo-se nela, como ocorre nas grandes manifestações de identificação em massa. O sinal característico aqui é que o eu, em vez de experimentar o apequenamento, gerado pela perda, sente-se grandioso por participar de uma experiência coletiva memorável. Passamos a sofrer "por procuração", criando uma causa comum, que nos identifica ao sofrimento do outro, o que nos poupa o trabalho de tomar aquele sofrimento como realmente próprio. Substitui-se assim a tragédia pelo drama. Os sintomas típicos nesse caso envolvem o prazer em se ver no lugar do que foi perdido e a paixão por ser reconhecido como vítima. Ora, o que se encontra negado, no caso, é a distância que nos separa daqueles que viveram a perda de forma real.
Também é comum que o sofrimento, enquanto experiência potencialmente transformadora, seja substituído por um tipo de fixação defensiva, que se compraz na crítica e no rebaixamento de si. Aqui ele se torna uma forma de gratificação e de apelo amoroso, por meio do qual o sujeito enaltece sua própria impotência como forma de satisfação masoquista. Como se o sofrimento, por si mesmo, justificasse a necessidade de ser amado e reconhecido. De novo é a tragédia que não pode ser reconhecida enquanto tal, mas cede lugar ao mito tão ao gosto dos que exploram o sofrimento como catarse purificadora, na qual afetos são mobilizados, mas justamente para não serem reconhecidos.
Experimentar o sofrimento em toda sua extensão e virulência é também uma das condições que nos tornam humanos. Muitos se colocam no lugar dos jovens presos na casa noturna de Santa Maria. Tentam saber se eles sofreram ou se apenas desmaiaram rapidamente, de modo indolor. Outros não conseguem evitar pensar nas famílias, nos amigos e na própria cidade, que precisa seguir em frente, mesmo que isso agora pareça impossível. Estejamos do lado dos que querem fazer algo para não pensar, ou dos que querem pensar para não fazer, lembremos que nosso sofrimento, quando nos toca em seu teor de real e de verdade, é uma forma de estar com eles.
Não há nada de essencialmente libertador no sofrimento, e ele não melhora, necessariamente, as pessoas. Mas sabemos que uma vida na qual o sofrimento é apenas espetáculo ocasional ou obstáculo pessoal é uma vida pobre quanto a suas próprias aspirações de realização. Para além da potência ou da impotência que o drama nos causa, há a tragédia. E por meio da tragédia supomos que há um grão de verdade em jogo no sofrimento. Nem que seja a verdade de nossa mortalidade e do reconhecimento do valor simbólico da presença do outro neste momento, como na oração "rogai por nós, agora e na hora de nossa morte".
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