sexta-feira, 26 de abril de 2013

Histórias sobre cerveja e mulheres



Blogueiras Feministas
Somos Mulheres e Homens de várias partes do país, com diferentes experiências de vida. Somos feministas
Adital
Por Texto de Ana Rusche.
para Iara Paiva e Luciana Nepomuceno

"Mas, Ana, não é um negócio que só tem homem?”. Foi a pergunta que ouvi dum amigo querido quando contei, toda empolgada, que estava matriculada para o curso sobre fazer cerveja em casa. No ar, aquele tonzinho de troça. Bom, nós dois sabemos que não é nenhuma rampa de temperatura que vai me desanimar. Nem uma turma de trinta pessoas, com apenas três mulheres, sendo eu a única desacompanhada. Aliás, gostei muito do curso.
Mas a pergunta é boa. Aí aproveitando que hoje a Lei da Pureza da Cerveja faz 497 anos, achei que a efeméride podia servir de desculpinha pra escrever um texto às mulheres que gostam de cerveja. No melhor espírito das impuras e vadias, você sabe como é.
Pensando ainda na parte lamentável que envolve o consumo de álcool e sexismo – na propaganda-de-mulher-pelada, no aumento do alcoolismo entre mulheres, na cultura que legitima o agressor a se ‘aproveitar’ da coleguinha embriagada, na desculpa fraca do "bebi e perdi a cabeça” sobre as agressões domésticas e paremos por aqui – levantei então algumas bisbilhotices sobre o tema, com a ideia de propagar a filosofia de beber menos e melhor. Enfim, se quiser puxar a cadeira, pode pedir: desce uma, por favor.
.
Coisa de mulher?
Embarcando num papo feminista delirante de boteco, afirmo: cerveja é coisa de mulher. Definitivamente. Devem ser uns 3 mil anos de civilização produzindo cerveja contra os últimos oito séculos, nas minhas contas ruins e leituras esparsas. Os sumérios mesmo já tinham uma deusa da cerveja: Ninkasi, há uns 4 mil anos. Ninkasi, dai-me paciência.
Do alto destas pirâmides, 40 séculos vos contemplam
A frase é do Napoleão, mas podia servir para aquelas tentativas de frase de efeito horríveis que usamos pra provar certas verdades numa mesa. Olhe, desde o Egito Antigo, as mulheres produziam cerveja. E era duro para as escravas e criadas que preparavam os grãos e executavam todas as etapas de preparo. Glamour só para as que possuíam canudos e jarros elegantes.
Cerveja, desde então, era bebida popular. Durante a construção das pirâmides, havia trabalhadores que eram remunerados com cerveja três vezes ao dia. Se você acha estranho, saiba que muitos dos trabalhadores ingleses no século XVIII também sobreviviam à fome com um meio quilo de pão e 1l a 1,5l de cerveja por dia.
(Sobre a África, conto ainda que, até hoje são produzidas cervejas tradicionais africanas, como a xhosa Umqombothi, feita de milho e sorgo malteados. Há várias marcas regionais, como a etíope Harar Beer, com inscrição em amárico. Nos rótulos, é possível também ler marcas da colonização: a cerveja moçambicana 2M faz referência à abreviatura do nome do conde Mac-Mahon, percepções que acentuam aquele travo amargo no final do gole).
Cervejeiras e taberneiras inquestionáveis
Na Idade Média, as mulheres europeias frequentavam tabernas e eram proprietárias destes estabelecimentos. E, no dote, eram incluídos os principais instrumentos para fazer cerveja. Nem preciso te contar o que se bebia na despedida de solteiro da época… Enfim, quem assa pão, brassa cerveja – palavras tão próximas em alguns idiomas. Até existia a figura da alewife na Inglaterra ("esposa da cerveja” na minha tradução tosca). Contudo, a vida não era fácil para as cervejeiras – a ilustração aí embaixo mostra uma criada carregando uma enormidade de barris enquanto a outra grita para levar os barris até a cervejaria e enche-los novamente.
A cerveja derramada
Em cada região europeia, a perda da cultura da brassagem caseira ou a produção de pequeno porte, mantida por mulheres, ocorreu de modo diferente. Por exemplo, na Inglaterra, as mulheres começaram a perder o monopólio já no século XIII – primeiro, foi proibida a venda de cerveja pelas taberneiras em alguns períodos e a compra de certos cereais em grandes quantidades. Depois, começaram a falar mal das cervejeiras, ah, mulheres difíceis. Mais tarde, com o advento da revolução industrial e a racionalização da produção, a brassagem deixou definitivamente as cozinhas… o próximo passo foi usar a estratégica propaganda-de-mulher-pelada e chamar de devassa, bem, você já conhece a história.
Fadas
Há um boato que a história da varinha mágica tem a ver com a varinha das cervejeiras. A vara, utilizada para mexer o tanque de fermentação, uma vez seca, levava as leveduras de um tanque para outro. Como nesta época ninguém tinha ainda espiado pelo buraco do microscópio, achavam que era pura mágica o início da fermentação.
As cristãs
Foi uma santa quem descobriu o lúpulo! Sim, a Santa Hildegarda de Bingen, no século XI, importante erudita e estudiosa, monja beneditina, pesquisou este conservante natural que confere à cerveja o gosto amargo característico que conhecemos hoje. Viveu até os 81 anos, uma façanha para a época. As boas línguas dizem que foi pelo consumo de cerveja.
E não eram somente as católicas que produziam cerveja. A esposa de Martinho Lutero, Katharina von Bora, cervejeira de profissão, tinha a fama de produzir uma cerveja deliciosa.
Até hoje, muitas das ordens produzem a própria bebida. Separei a foto da Irmã Doris da Congregação Franciscana em Mallersdorf – sobre sua experiência na escola técnica ela conta "no início, os colegas de meu curso estavam consternados: uma mulher com esta profissão e ainda mais freira, era um pouco demais”. Ela aprendeu a fazer cerveja com sua antecessora, que já tinha mais de já 70 anos, o que também faz a gente não esquecer o fundamental papel das idosas na transmissão das melhores receitas.
Cervejarias artesanais contemporâneas
Hoje se fala bastante sobre o florescimento das cervejarias artesanais – fenômeno que se inicia nos Estados Unidos nos anos 80 e chega ao Brasil por volta dos anos 90-2000. A famosa movida contra o "espectro pálido preso dentro de uma lata”, como diz o Garret Olivier. A agitação envolveu consumidores e pequenos fabricantes que buscavam a mercadoria "cerveja com mais gosto de cerveja” (isto é, mais próxima ao padrão europeu de produção, que foi afastado do paladar dos norte-americanos com os anos da Lei Seca).
Com este movimento, fazer cerveja em casa voltou a ser um hábito cultivado, comprar de pequenos fornecedores, experimentar marcas novas e desconhecidas, sabores mais amargos, cheiros diferentes. Embora as grandes brigas envolvendo concorrência entre cervejarias, alterações na legislação, tributação e formas de distribuição existem e seguirão existindo, você pode imaginar.
Com relação a gênero, algumas mudanças são perceptíveis – é bem mais difícil ver uma cerveja artesanal estampar a típica propaganda-de-mulher-pelada por aí, mas são mudanças tímidas. Segue sendo um domínio da masculinidade (e, antes que eu fique melancólica e comece a dizer que amo as blogueirasfeministas, peça mais uma. Ou melhor, não, que vou ali até o banheiro). Enfim, uma mercadoria é sempre uma mercadoria.
E no Brasil?
Dizem que o Brasil "não possui a cultura da cerveja”. Embora soe impactante, esta frase não diz tanto: o mercado brasileiro apenas perde, em volume, para a China, EUA e Alemanha, sabia? Aprendi esses dias. Mas é verdade: não me recordo dum carnaval ou duma copa do mundo sem assistir a trilhões de propagandas de cerveja. Por aqui até dizem: o bar é a praia do paulistano.
A repetição do mantra da tal "falta de cultura” parece uma forma bem efetiva de proteger as grandes cervejarias de serem criticadas pela mercadoria que engarrafam e ainda indicam servir estupidamente gelada. E que difícil competir! As cervejarias artesanais brasileiras empregam cerca de quatro vezes mais e pagam mais impostos. É quase a concorrência das pequenas e valentes editoras de poesia contra as editoras internacionais gigantonas com suas gôndolas nas parceiras megastores. Só que a cerveja artesanal fica com preço final bem salgado. Como o livro. Que também é comemorado hoje com o "Dia Mundial do Livro”. Quem sabe em uns anos a gente não comemora de verdade? Difícil.
Olha, pra não te desanimar por completo (tenho certa tendência ao pessimismo), vi uns grupos de mulheres cervejeiras bem legais – as Maltemoiselles, a FemAle Carioca, devem existir milhões de outros que eu, por incompetência, não consegui localizar via google. E há aquelas profissionais incrivelmente talentosas como a mestre-cervejeira Cilene Saorin e a especialista em sabores e aromas Nicole Erny, ambas respeitadas internacionalmente (por outro lado, será que só tendo este nível tão alto de sabedoria e aptidão é que elas estão por aí?).
Bom, agora tenho que ir. Sempre levanto cedo, aquela história. Tudo bem, pode baixar a saideira. Não, a gente não conseguiu responder à pergunta. Eu sei. É sempre assim, a gente desvia. Fala um monte de coisa e se desvia. Mas vou nessa, fica pruma próxima. Beijo no coração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário